O ex-ministro da Fazenda nos governos Lula e Dilma Rousseff Guido Mantega marcou a história econômica do país com várias teses furadas sobre a relação entre governo e mercados. Uma delas foi a redução forçada das taxas de juros praticadas pelos bancos públicos. O anúncio da redução das taxas feito pela Caixa há poucos dias pelo atual governo nos obriga a analisar o seu "risco Mantega".
A pressão sobre os bancos públicos começou durante a crise econômica de 2008-2009 para que eles não subissem os juros em um momento de pânico nos mercados. Desse primeiro ensaio, surgiram análises que creditavam ao fato de o governo controlar quase metade do mercado de crédito uma vantagem do Brasil para "segurar" a crise.
Essa interpretação é correta, mas valeria para um sistema privado que recebesse suporte do Estado, como ocorreu nos Estados Unidos. Uma das características de crises financeiras agudas é que há um "empoçamento" de recursos diante de um choque sobre o sistema. Uma ação pública pontual ameniza o pânico. Isso não significa, porém, que seja eficiente para a economia ter juros determinados pelo Estado.
Mas foi essa conclusão "alargada" que tirou a equipe econômica da época. Em 2010, Mantega dava entrevistas dizendo que os bancos privados poderiam sem problemas reduzir seus juros pela metade. Na sequência, Banco do Brasil e Caixa passaram a anunciar a prática do taxas bastante reduzidas diante da média do mercado. Em um anúncio de 2012, a Caixa comunicou a redução dos juros do cheque especial de 8,25% ao mês para 4,27% ao mês - uma baixa semelhante à anunciada na última semana.
Os dados do Banco Central sobre spread, a diferença entre o custo de captação e os juros praticados pelos bancos, realmente caíram na sequência - de 26 pontos percentuais no início daquele ano para 21 pontos antes da virada para 2013. Parecia que a "tese Mantega" estava correta, embora não fosse exatamente uma redução pela metade.
Essa redução nos spreads teve vida curta porque foi logo acompanhada de um aumento na inadimplência. O ritmo de expansão de crédito caiu e os bancos aumentaram a reserva de recursos para calotes. A economia em 2013 já dava sinais de que entraria em recessão, o que de fato ocorreu em 2014. O efeito rebote foi devastador: os spreads foram a 40 pontos percentuais em 2016.
A lição dessa história é que o problema dos juros ao consumidor é complexo e precisa ser encarado com uma visão de longo prazo. Os dados do Banco Central mostram que a inadimplência responde por 37% do spread. Em seguida, vêm os custos administrativos (27%), impostos (21%) e a margem dos bancos (15%). É por isso que reduções como a feita pela Caixa sempre vão levantar a questão da "tese Mantega". Como reduzir os juros à metade se a margem dos bancos não é principal fator das altas taxas?
É possível que a Caixa esteja fazendo agora um movimento "à frente da curva", ou seja, estaria adiantando novos preços porque entende que o ciclo econômico vai reduzir a inadimplência, com inflação e juros baixos por um período longo. O banco também pode estar respondendo de forma mais acelerada à regulamentação do Banco Central sobre produtos específicos - o BC promete lançar em breve novas normas para o cheque especial, assim como fez com o cartão de crédito dois anos atrás.
Se esse for realmente um movimento atrelado ao ciclo econômico e não a uma pressão política, os spreads vão cair em todo o sistema financeiro por um período possivelmente mais longo do que a onda de 2012-2013. Os spreads hoje estão em 30 pontos percentuais e ainda têm chão para voltar ao nível pré-crise.
Este seria só um primeiro passo para o Brasil passar a ter juros normais, já que mesmo spreads de 20 pontos percentuais são elevados. Produtos como cheque especial e cartão de crédito continuariam com taxas acima de 100% ao ano, e mesmo linhas mais baratas, como capital de giro e crédito pessoal, não ficariam abaixo dos 20% ao ano.
O Brasil ainda tem alguns problemas a serem atacados. Um deles é a baixa competição bancária provocada pelas fusões e aquisições das últimas duas décadas. Esse é um ponto controverso, negado pelos bancos, e que precisa ser bastante estudado. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, recomenda a adoção de medias para aumentar a competição.
Um estudo publicado pelo Banco Central, baseado em um trabalho dos economistas Gustavo Joaquim e Bernardus van Doornik, mostra que a concentração bancária tem efeitos dúbios que aumentam e reduzem o custo do crédito, dependendo de fatores geográficos. Em mercados onde não há variação no número de competidores, a concentração pode reduzir custos. Mas quando há uma redução nesse número, os juros sobem. No Brasil, a redução na competição apagou os ganhos de produtividade advindos da concentração e fez os juros subirem.
É por isso que uma das apostas do BC para lidar com o custo do crédito está em tecnologias que possam eliminar barreiras geográficas à competição. Bancos virtuais e fintechs de crédito têm o potencial de chegar a quem hoje só tem uma agência bancária como entrada tomar um empréstimo. No médio prazo, tanto BC quanto o Cade terão de observar bem o mercado para essas novas empresas não sejam simplesmente absorvidas pelos bancões.
A "tese Mantega" jamais seria bem-sucedida porque partia da premissa simples de que bancos são instituições com "lucro fácil". A experiência de 2012 mostrou que essa visão é errada. Bancos são empresas que respondem à competição dentro das regras do jogo. Sem produtos melhores e mais baratos roubando seus clientes, eles não vão fazer nada de novo pelo consumidor.
A Caixa parece estar reagindo antes antes que os outros quatro bancões que dominam mais de 70% do mercado de crédito. Vamos saber responder essa questão daqui alguns meses com base em dois fatos: a dimensão da queda dos juros em outros bancos e os resultados do balanço da própria Caixa.
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