“Qualquer sentimento se corrompe e se perverte quando o seu desfrute sofre de introversão.” (Dietrich von Hildebrand)
Foi uma grata surpresa a descoberta da obra The Heart (“O Coração: uma análise da afetividade humana e divina”, 1965), do conhecido filósofo católico Dietrich von Hildebrand. O nome é bem conhecido no Brasil por seu trabalho em filosofia moral e em liturgia, mas essa obra já antiga, ainda sem tradução em português, traz contribuições singulares para a compreensão do que tenho chamado de “revolução afetiva”: o desenvolvimento de um sistema cultural em que um paradigma moral sentimentalizado se torna hegemônico, capturando as estruturas sociais para se legitimar e se reproduzir.
Von Hildebrand observou que na tradição filosófica grega a esfera afetiva da vida pessoal fora profundamente negligenciada, e de um modo claramente incoerente, uma vez que a felicidade, cujo assento na alma não pode ser outro que não a vida dos sentimentos, sempre foi assunto de contínuo interesse. Em Aristóteles, por exemplo, a despeito da importância da felicidade, temos uma definição racionalista da alma humana, com os afetos sendo relegados à parte irracional do ser humano, a mesma compartilhada com os animais.
Apenas em Agostinho teria início a superação dessa tendência, com o coração e a afetividade sendo tratados como parte verdadeiramente essencial da vida espiritual. E mais: nele temos um reconhecimento de que há uma racionalidade dos afetos, uma vez que a sua natureza e qualidade é compreendida a partir de seus objetos. As respostas afetivas teriam um caráter intencional e moral. Von Hildebrand cita A Cidade de Deus, de Agostinho: “nossa doutrina pergunta não tanto se alguém está irado, mas por qual razão; por que ele está triste, e não se ele está, e assim também com o medo”.
O que aconteceu em nossa cultura, para que o corpo material se tornasse menos concreto que o sentimento?
A questão da afetividade seria inseparável, portanto, de seus porquês; não seria subjetiva, mas objetiva. E isso faria toda a diferença.
Adicionalmente, Von Hildebrand explorou a centralidade das emoções e afeições na personalidade humana. Para ele, apesar da teimosa inclinação racionalista na filosofia ocidental, as sementes de uma incorporação da vida afetiva no próprio centro da compreensão pessoal foram trazidas pelo cristianismo, não apenas de forma teórica, mas demonstrativa. E assim, ao lado da razão e da vontade, a afetividade teria sido reconhecida como um órgão integrado, embora distinto. Essa esfera afetiva da existência, onde a felicidade é experimentada como tal, é chamada de “coração” por Von Hildebrand.
Não estou totalmente convencido de que o coração humano deva ser identificado com a esfera afetiva da personalidade; ao menos, não do ponto de vista da antropologia bíblica. O filósofo calvinista Herman Dooyeweerd destacou com muito acerto, na minha opinião, que nas Escrituras o termo “coração” denota quase sempre o centro ou ponto de concentração de todas as funções da personalidade, e não apenas dos afetos, como uma espécie de centro de gravidade. Assim, o coração não apenas sente ou ama, mas também imagina, pensa e decide.
Mas essa pequena divergência não desqualifica o trabalho excepcional de Von Hildebrand, que foi elogiado por nomes como Edmund Husserl, John Haldane e Joseph Ratzinger. No ponto principal, quanto à importância da afetividade na organização da personalidade e em todos os seus níveis, do biológico ao religioso, e quanto à salutar contribuição cristã para a verdadeira afetividade, Von Hildebrand é indispensável.
O self e seu mundo “plástico”
Para dar o devido destaque a algumas de suas observações geniais, quero retomar o tema da “revolução afetiva”, que regularmente discutimos nessa coluna.
Um dos exemplos mais impressionantes dessa revolução emocional é o modo como psicólogos, educadores e juristas de inclinação progressista lidam com a questão trans. Autoexpressão e autenticidade emocional tornaram-se chaves absolutas para a construção da identidade, e de um modo curiosamente invertido; se a pessoa se “percebe” ou se “sente” X, é concebível transformar o seu corpo para alcançar um ajustamento, mesmo que isso implique em uma violência física (amputações etc.), mas não é concebível a transformação dos sentimentos para se ajustarem ao corpo, pois tal seria uma terrível violência contra a sua dignidade.
O corpo seria essencialmente “plástico”; fala-se muito, por exemplo, em “neuroplasticidade”, como fundamento tecnocientífico para a cultura trans; mas por que a alma e, particularmente, a experiência afetivo-sexual do indivíduo tornou-se tão “rígida”? O que aconteceu em nossa cultura, para que o corpo material se tornasse menos concreto que o sentimento?
Não se trata, naturalmente, apenas do corpo; a questão reside nas externalidades. Um mundo externo muito sólido e determinado significa finitude, e o Self moderno não quer saber disso. Para os modernos o mundo externo é, do ponto de vista ético, uma massa plástica que deve ser modelada para o uso do indivíduo, como um campo de expressão de suas vontades. É por isso que o moderno sistema neoliberal precisa liquefazer as coisas, torná-las maleáveis, relativas, manipuláveis.
Aqui a fé no progresso tecnocientífico e o antirrealismo construtivista se encontram, convencendo a raça humana de que a natureza pode ser completamente dominada e, em seguida, de que sua vida social pode ser revolucionada o quanto for necessário, para a felicidade de todos e de cada um. A própria natureza humana não seria algo dado, mas um conjunto de performances e construtos inventados pelo próprio homem. E então, finalmente, o próprio corpo não passaria de um apêndice do Self.
Esse ideal de liberdade tem um efeito singular sobre a vida emocional moderna, que deixa de ser entendida como uma ponte para uma realidade moralmente significativa, para se tornar um complexo de sensações que precisa ser regulado para a promoção da saúde individual. A busca do “bem” é substituída pela busca do “bem-estar”, como experiência essencialmente subjetiva.
O “pecado original” do sentimentalismo é abstrair as respostas emocionais dos objetos que as motivam e que lhes comunicam a sua carga de sentido. O “sentir-se bem” ou “sentir-se mal” é separado de qualquer discussão sobre o “bem” e o “mal”, instaurando-se uma ciência abstrata das emoções
A questão, então, seria muito maior do que os direitos de uma minoria em particular; o grupo das pessoas trans tem, na verdade, uma função sagrada e simbólica, como um caso paradigmático de um pathos disseminado e de alcance universal. A razão por que um extensivo esforço moral e político se instaurou ao redor deles é a sua função sacrifical e representativa do Self moderno, o mesmo ideal sentimental ensinado pela nossa elite cultural.
Emoções sem objeto
Exatamente aqui o trabalho de Von Hildebrand se mostra atualíssimo: à medida que se nega à realidade externa ao Self uma carga moral positiva, uma estrutura e um valor que não sejam meras projeções da mente ou meros construtos culturais, a vida emocional perde a sua ancoragem objetiva, e entra numa espécie de curto-circuito. Torna-se autorreferencial e, no mesmo passo, abstrata. Diz Von Hildebrand:
“Tão logo a resposta afetiva é privada do objeto que a engendrou e do qual brotam o seu sentido e a sua justificação, e para com o qual ela tem uma posição de subserviência, a resposta afetiva é reduzida a um mero estado afetivo, que é ainda mais inferior ontologicamente do que um estado como a fadiga ou a convivialidade alcoolicamente induzida.”
Esse seria o “pecado original” do sentimentalismo: abstrair as respostas emocionais dos objetos que as motivam e que lhes comunicam a sua carga de sentido. E assim o “sentir-se bem” ou “sentir-se mal” é separado de qualquer discussão sobre o “bem” e o “mal”, instaurando-se uma ciência abstrata das emoções. Mas tendo em vista que nossas capacidades emocionais e afetivas se evoluíram em ambientes carregados de valoração e significado moral, é claro que uma visão cientificista e tecnicista da gestão das emoções só poderia empobrecer a vida afetiva.
A coisa começa, diz Von Hildebrand, com o tema da atenção do indivíduo, movendo-se do objeto que evoca a resposta afetiva para a resposta em si. Uma falsidade surge quando uma pessoa se esquece da pessoa amada e se torna superconsciente de seus sentimentos em relação a ela. E o passo seguinte é abstrair o sentimento da relação que o fez emergir. O sujeito ama estar apaixonado, e não uma mulher específica; ele se apaixonou por um complexo de sensações, e se aproxima de outras garotas buscando repetir suas vivências emocionais. Ou, alternativamente, alguém que ama derramar lágrimas consumirá regularmente poesia kitsch com o único propósito de sentir alguma coisa.
O mesmo processo pode ser encontrado em inúmeros contextos, de baladas à busca intensa de experiências religiosas com propósitos puramente sentimentais, passando por esportes radicais e pelo consumo de drogas. Há muita gente hoje que escolhe namorados, jobs e igrejas por razões puramente sentimentais e carentes de objetividade ética. Von Hildebrand faz sobre isso uma observação sagaz:
“É impossível produzir uma genuína experiência afetiva a partir de um objeto de desfrute introvertido. É impossível experimentar sentimentos religiosos qualitativamente genuínos se alguém se aproxima de Deus não em atitude reverente, mas meramente para saborear seus próprios sentimentos enquanto a oração é tornada um meio para essa satisfação.”
Muita gente moderninha que fala de amor o tempo inteiro e nunca sai do estado de “ficante”, “pegando” todos e qualquer um, na verdade não ama ninguém
Posso testificar que muita gente hoje, em igrejas contemporâneas de estilo seeker-friendly, como se diz na literatura técnica, busca sentimentos religiosos, e não o próprio divino. De modo similar, muita gente moderninha que fala de amor o tempo inteiro e nunca sai do estado de “ficante”, “pegando” todos e qualquer um, na verdade não ama ninguém.
“Afetividade”?
Esse tipo de mentalidade atinge diretamente a terapia. Os sentimentos de “culpa” ou de “responsabilidade” não são tratados como referentes a relações objetivas ou com qualquer realismo ético, mas como estados emocionais que precisam ser modulados tendo em vista o bem-estar do sujeito.
Consideremos, por exemplo, as interações típicas entre psicólogos e clientes sobre o que fazer diante de um casamento emocionalmente insatisfatório; em nome da “ética”, boa parte da classe psicológica toma a regra do bem-estar como o critério para o julgamento das emoções do paciente, praticando com a máxima fidelidade – freudianos e não freudianos, igualmente – a ideia epicurista de felicidade como economia libidinal. E, assim, o divórcio é esvaziado de qualquer carga moral negativa. O provável sofrimento de cônjuge, filhos, amigos e do próprio cliente diante, digamos, da quebra de promessas é abstraído de qualquer sentido moral e tratado como uma dor física, um desequilíbrio amoral passível de ressignificação.
O ponto, nesse processo, é que as emoções são estudadas e tratadas abstratamente; o “como você se sente” é desligado de considerações normativas sobre “como você deveria se sentir”. É claro que há muitos psicólogos conscienciosos que não trabalham assim, mas a verdade é que a minha caricatura deixou de ser mera caricatura há muito tempo.
O que o emotivismo faz é tirar da nossa vida emocional a sua objetividade. Sem uma interpretação moral da vida as emoções deixam de ser janelas para a realidade do mundo e do outro, e se tornam meros espelhos
Von Hildebrand descreve esse modo de organizar a vida afetiva como um “desfrute introvertido”. A expressão nos ajuda a compreender a relação entre o giro emotivista e o processo de centramento subjetivo da cultura moderna, como descrito por Charles Taylor. Temos um processo duplo: não apenas o dogma da autonomia individual e o princípio da autenticidade como base para a identidade, mas o cultivo do sentimento como a chave para o autoconhecimento e a felicidade pessoal. Não apenas individualismo expressivo, mas também emotivismo. E o que o emotivismo faz é tirar da nossa vida emocional a sua objetividade. Sem uma interpretação moral da vida as emoções deixam de ser janelas para a realidade do mundo e do outro, e se tornam meros espelhos.
E foi a partir de sua discussão seminal que Von Hildebrand me trouxe a um verdadeiro dilema conceitual; seria de fato apropriado falarmos em “revolução afetiva”? Afinal, a capacidade de estabelecer laços afetivos carregados de valoração moral está em processo de atrofia, ao mesmo tempo em que investimentos emocionais efêmeros se generalizam. O Homo sentimentalis é, moralmente falando, um emotivista, mas seu mundo afetivo é muito pobre. Consideremos o exemplo já levantado nessa coluna, da nova concepção de “família eudemonista” no Direito de Família brasileiro; seu propósito, declaradamente, é o bem-estar emocional dos seus membros, e não objetivos comuns, ou o princípio da fraternidade, ou o cultivo do amor e da fidelidade como princípios éticos. Será possível que o verdadeiro objetivo do movimento dos “direitos afetivos” nada tenha de “afetivo”?
Talvez a revolução emotivista esteja nos levando, agora, ao pós-afetivo.
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