Um dos assuntos recorrentes em nossa coluna tem sido o lugar do Êxodo na ética política. A ideia de um Deus que liberta escravos é uma das mais subversivas e férteis contribuições teológico-políticas da tradição judaico-cristã. E disso temos tanto provas históricas positivas quanto negativas. Na coluna de hoje, a escritora africana Jacira Monteiro, autora de O Estigma da Cor: como o racismo fere os dois grandes mandamentos (Editora Quitanda), fala sobre uma dessas provas negativas: a chamada Bíblia dos Escravos, um monumento ao poder libertador da Bíblia e à vontade humana de desobedecê-la.
O exemplo histórico discutido pela escritora serve de advertência contra quaisquer tentativas de forçar a Bíblia a dizer o que queremos, e especialmente em assuntos de ética social e política. Como dizia Dietrich Bonhoeffer, “deixe a Bíblia falar contra você”. E, mais do que todos os outros, ideólogos com interesses teológicos precisam ler a Bíblia com olhos bem abertos.
A palavra de Deus, pervertida para justificar a escravidão racista
Desde 2017, uma rara edição especial das Escrituras é exibida no Museu da Bíblia, em Washington, D.C.: trata-se da Bíblia dos Escravos (Slaves Bible). Existem apenas três cópias conhecidas dessa Bíblia, publicada em Londres em 1807. A versão, fortemente editada, omite todos os trechos e referências que pudessem espalhar qualquer ideia de libertação entre os escravizados. A Slave Bible foi usada por missionários britânicos nas Índias Ocidentais Britânicas e em outros lugares.
Anthony Schmidt, curador de Bíblia e Religião na América no museu, disse que cerca de 90% do Antigo Testamento e 50% do Novo Testamento estão faltando. “Em outras palavras, há 1.189 capítulos em uma Bíblia protestante padrão. Esta Bíblia contém apenas 232”, completa Schmidt. De modo geral, foram omitidas passagens que poderiam levar os escravos a entender o seu valor e passagens com relação ao tratamento fraterno e à liberdade.
Trechos escriturísticos de grande importância, que revelam o caráter amoroso do Deus da Bíblia e confirmam que, na verdade, sua mensagem é contrária à escravidão e à diminuição (ou extinção) do próximo, foram desavergonhadamente roubados
Comentando a abertura da exibição da Slave Bible no museu Catharijneconvent, em Utrecht (Países Baixos), no ano passado, Julie Gardham, bibliotecária assistente da Biblioteca da Universidade de Glasgow, observou: “omitir todas as referências à liberdade é um lembrete poderoso e arrepiante de como os cristãos brancos manipularam e usaram mal até mesmo textos sagrados para controlar os escravizados e legitimar a escravidão”.
A amputação é extensiva e revoltante. Do Antigo Testamento, o Êxodo – o livro da libertação de Deus ao povo de Israel que estava escravizado no Egito há 400 anos – foi quase totalmente suprimido, e os profetas – que chamavam o povo à santidade e também traziam mensagens de juízo ao povo de Israel pelo fato de violarem o direito dos mais fracos e marginalizados na sociedade – foram quase que completamente removidos.
No Novo Testamento a supressão é menor, mas salta aos olhos que a carta de Paulo a Filêmon tenha sido retirada. Essa carta é famosa por seu conteúdo libertador. Nela, Paulo se mostra muito à frente de seu tempo, pedindo a Filêmon que recebesse de volta o seu escravo Onésimo como irmão na fé. Além disso, o apóstolo se encarrega de pagar quaisquer dívidas que Onésimo tenha com seu senhor Filêmon. Para todos os fins práticos, Paulo intercedeu pela liberdade de Onésimo. Reza a história cristã que Filêmon ouviu a Paulo, e que o ex-escravo Onésimo teria se tornado bispo da igreja em Éfeso.
As passagens referentes à ética social cristã, com tudo o que diz respeito ao trato adequado entre as criaturas de Deus, foram suprimidas para que as consciências desses homens não se perturbassem. Para mantê-los no escuro! Trechos escriturísticos de grande importância, que revelam o caráter amoroso do Deus da Bíblia e confirmam que, na verdade, sua mensagem é contrária à escravidão e à diminuição (ou extinção) do próximo, foram desavergonhadamente roubados. A mensagem bíblica tem algo a dizer sobre as injustiças sociais, e o Deus da Bíblia promove justiça, fraternidade e amor. Ao contrário do que muitos pensam, e que vem sendo divulgado por militantes sem cultura bíblica, a Bíblia não é – e nunca foi – a favor da escravidão.
Recentemente o teólogo afro-americano Esau McCaulley publicou um importante livro sobre a leitura bíblica da comunidade cristã negra: Uma leitura negra (editora Mundo Cristão), já discutido nessa coluna. Segundo McCaulley, a verdade é que os senhores de escravos cristãos tinham uma exegese muito pobre das escrituras, e por isso eles justificaram um ato que Deus abomina, pervertendo a palavra de Deus. Assim, a santa palavra de Deus foi profanada em favor de ações violentas que Ele, claramente, nunca aprovou. Manipulou-se a palavra de Deus em benefício de uma civilização semicristã.
E essa civilização produziu um tipo singular de escravidão. É verdade que essa prática é imemorial, mas no mundo antigo ela dizia respeito ao trabalho em serviços não intelectuais, sem relação necessária com geografia ou cor de pele. Apenas a escravidão moderna e europeia tornou a cor o fator determinante para se escravizar alguém, e isso foi feito em contexto cristão. Ou seja, foi necessário ignorar ativamente a mensagem bíblica de que todos foram criados à imagem e semelhança de Deus e por isso merecem ser tratados com igualdade e fraternidade. Nesse sentido, a escravidão racista inventada pelos europeus foi teologicamente mais sofisticada e, também, mais corrupta.
A Bíblia dos Escravos é uma das histórias mais lamentáveis, repulsivas e maquiavélicas da história cristã. Escravos não puderam ter acesso às esperanças que o Evangelho traz, entendendo que eles tinham, sim, um sumo sacerdote que se compadecia de suas dores e que reprovava a violenta escravidão do século 19.
Se os grandes trechos da Escritura que falam sobre justiça e libertação tiverem pouco espaço e pouca aplicação em nossa imaginação religiosa, talvez sejamos mais semelhantes aos missionários que compilaram a Bíblia dos Escravos do que estamos prontos para admitir ou imaginar
Esse artefato assombroso tem implicações profundas para os cristãos contemporâneos. Muita gente pensa que não é necessário falar sobre escravidão e racismo nas nossas igrejas. Acham que é assunto apenas da sociedade secular. No entanto, o cristianismo ocidental tem uma “ficha corrida” nesse assunto; consta em seu histórico a manipulação da palavra de Deus para desumanização e violação do direito do outro. Isso reforça a necessidade de uma saudável suspeita crítica; é preciso que façamos avaliações constantes de nossas omissões, pois elas podem revelar as intenções de nossos corações. É preciso conferir se o nosso tratamento mútuo está de acordo com a ética social bíblica e, em especial, o quanto a herança racista ainda pesa em nossas relações. Não podemos descartar a possibilidade de sermos omissos e inertes nesse assunto. E, se os grandes trechos da Escritura que falam sobre justiça e libertação tiverem pouco espaço e pouca aplicação em nossa imaginação religiosa, talvez sejamos mais semelhantes aos missionários que compilaram a Bíblia dos Escravos do que estamos prontos para admitir ou imaginar.
São muitas as passagens que tratam sobre honrar a palavra de Deus e não distorcê-la para objetivos pessoais, mas eu gostaria de destacar Apocalipse 22,19-20: “E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro. Aquele que testifica estas coisas diz: Certamente cedo venho. Amém. Ora vem, Senhor Jesus”.
Deus não brinca com Sua palavra, e o moldar a palavra dEle para interesses pessoais é um pecado grave. A Bíblia dos Escravos é um lembrete de que cristãos ortodoxos e fervorosos podem cometer grandes blasfêmias contra a Palavra de Deus. Um lembrete para deixar todos os ideólogos que gostam de usar a Bíblia de cabelo em pé.
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