As últimas semanas viram uma degradação bastante acelerada do governo Bolsonaro. Esse processo de degradação fragmentou o suporte dado a ele pela comunidade evangélica, e criou uma espécie de limbo político temporário, uma situação de encruzilhada na qual há um conjunto de mundos possíveis. Nesse momento, líderes evangélicos precisam refletir de modo crítico, mantendo a presença de espírito e seu sentido de missão.
Blocos em fragmentação
Embora eu mesmo não tenha votado em Bolsonaro, torci pelos seus eleitores, como expliquei num artigo em meu blog pessoal, e aceitei um convite para trabalhar como diretor no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob a ministra Damares Alves.
À época fiz uma aposta: embora não pudesse acreditar em Jair Messias Bolsonaro, tendo denunciado sua inépcia já em 2018, e muito menos comprasse a grande narrativa de Olavo de Carvalho, que o empoderou, compreendi que a ascensão do homem teria sido impossível sem o suporte de uma conjugação de forças políticas e ideológicas, e que a sinergia dessas forças poderia alimentar um conservadorismo moderado. Era um mundo possível, ainda que improvável.
Do ponto de vista das agendas, tenho meu próprio mapa imperfeito: liberais, libertários e gestores pragmáticos, principalmente no Ministério da Economia, Secretaria de Governo e Infraestrutura; militares, separados em dois ou três grupos, em lugares estratégicos, como lastro de poder; católicos e evangélicos conservadores com graus variados de compromisso com a doutrina social cristã, principalmente no Ministério da Mulher, da Cidadania e na AGU; e os olavistas de várias confissões, concentrados em alguns lugares como Casa Civil, Ministério da Educação, Relações Exteriores e Meio Ambiente, e também pulverizados em todos os blocos. O lavajatismo fez-se representar, principalmente, por Sergio Moro e o ministério da Justiça e Segurança Pública. E, finalmente, temos a representação no Executivo da base parlamentar, muito menos técnica que os outros componentes. Naturalmente alguns indivíduos pertencem a apenas um desses grupos, e outros pertencem a dois ou três simultaneamente, o que torna a coisa bem complexa.
A ascensão de Bolsonaro teria sido impossível sem o suporte de uma conjugação de forças políticas e ideológicas, e a sinergia dessas forças poderia alimentar um conservadorismo moderado
O que era perceptível, e recentemente tem se tornado cada vez mais claro, era que a “cola” do governo não era forte. Diferentemente do lulopetismo, quando subiu ao poder, não existe uma liga mais forte entre esses diversos campos de aglutinação exceto um pathos antipetista com elementos conservadores dispersos, e os agentes bolsonaristas, também dispersos.
É claro que isso poderia ser administrado, ao longo do governo; pessoas e grupos mudam. O petismo mudou com a ascensão ao poder, muito embora seja difícil mudar para melhor. Mas uma decisão política de união nacional poderia gerar um processo de trocas e integração interna, de modo que tais forças pudessem reforçar seus laços, e, eventualmente, seus elementos mais extremos poderiam ser moderados por necessidade política.
O que se viu, no entanto – e essa é uma observação bastante trivial –, foi um processo de endurecimento e entrincheiramento do núcleo ideológico, progressivamente alienando a composição de forças que ascendeu com Bolsonaro. Como o tempo tem mostrado – e a Covid-19 ajudou a acelerar o relógio do processo político, nesse sentido –, os blocos de poder do governo não foram bem fundidos. Isso se deve, em grande parte, à práxis política doentia, revolucionária e conflituosa da Presidência, a principal geradora de crises institucionais e midiáticas da atual dispensação.
Em outro artigo, descrevi esse processo como uma deslegitimação sistemática de todas as autoridades e instituições. Bolsonaro, animado pelo olavismo, é o grande “desautorizador geral da República” e, nesse sentido, a ferrugem da democracia brasileira.
Assim, a despeito da incredulidade de muitos apoiadores e opositores políticos, tem se confirmado que há, sim, uma distinção entre o núcleo ideológico, ligado à Presidência, e o restante do governo, que orbita a presidência a distâncias heterogêneas. As tensões com o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e, agora, o choque frontal com o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, escancararam a falta de convergência no governo. É importante que os diferentes setores da oposição a Bolsonaro compreendam isso, do contrário não saberão construir a relação política com essas forças importantes, à medida que se afastarem do bolsonarismo.
Bolsonaro, animado pelo olavismo, é o grande “desautorizador geral da República” e, nesse sentido, a ferrugem da democracia brasileira
Seja como for, é evidente que a sinergia que eu e muitos esperavam não se realizou, e o tempo de cozimento foi ultrapassado. Talvez outro presidente à direita, e até mesmo um oriundo do baixo clero, tivesse a presença de espírito e a coragem para alimentar semelhante processo, a despeito de suas fragilidades; mas não Bolsonaro e sua família. O “bem comum” está além de sua capacidade e vontade política.
Confidenciei a amigos que deixaria o governo, no máximo, até o fim do ano. Mas, como ilustrei a coisa aos amigos, a pandemia acelerou tudo. É como se alguém chegasse do trabalho à noite e descobrisse que a geladeira quebrou pela manhã. A carne descongelou, e teria de ser preparada imediatamente, sem temperos ou complementos.
O governo Bolsonaro teve uma janela para construir a união nacional, e não a empregou. Ele continuará de pé por um tempo, mas seu futuro político foi dramaticamente encurtado.
O erro político dos evangélicos
Não repetirei aqui as críticas que já foram apresentadas, tanto por vozes evangélicas de esquerda quanto de analistas politicamente mais neutros, sobre a inadequação do suporte evangélico ao governo. Tendo a manter uma visão mais “caridosa” da coisa, e não recrimino nem eleitores de Bolsonaro, nem evangélicos que seguem trabalhando no governo – ao menos em áreas nas quais não houve intervenção do núcleo ideológico.
É claro que os evangélicos “bolsonaristas”, que insistem em tratar a política como objeto de fé e esperança, e os líderes evangélicos “conservadores” que lutam para manter de pé o circo de ilusões do bolsonarismo são dignos de pública reprovação. Essa ala doente do evangelicismo, combinando servilismo e ingenuidade ideológica, oportunismo político e pura e simples ignorância sobre a tarefa histórica da igreja cristã presta um péssimo serviço à missão e evangelização do Brasil. Mas a grande maioria dos líderes e fiéis evangélicos apoiou Bolsonaro como antes apoiou Lula: de boa fé, e sem dogmatismo. Não faltam evidências, nesse momento, de que o suporte evangélico a Bolsonaro está desvanecendo.
O momento de crise e frustração torna-se, no entanto, o momento de oportunidade, tempo de reorientação, porque permite ver, com máxima clareza, o erro genético, primordial e radical da prática política cristã no Brasil. E esse erro consiste em cair na tentação, sempre presente, de andar a reboque de projetos políticos seculares, subcristãos, pseudocristãos e até anticristãos.
O governo Bolsonaro teve uma janela para construir a união nacional, e não a empregou
É importante deixar claro o seguinte: não me oponho à participação cristã em governos de diversas matizes. Eu não seria contra a participação de cristãos num governo de esquerda, de centro ou de direita, por exemplo. A questão é outra: quais são os termos dessa participação? Regularmente vemos composições políticas adotarem a prática de ignorar completamente os cristãos, em geral, e suas crenças e valores fundamentais – embora frequentemente estabelecendo conchavos com lideranças denominacionais, muito distantes da base popular – usando fragmentos da linguagem moral cristã para mobilizar votos. Nesse arranjo, os cristãos são ou ignorados, ou usados como massa de manobra, e não são nunca convidados a participar, como coproponentes, de um projeto nacional.
De modo que, em meu julgamento, é necessária uma grande “revolta” cristã. Não uma revolta cristã “revolucionária”, muito menos “contrarrevolucionária”. Quero, aqui, apaziguar os amigos leitores que não compartilham da fé cristã, ou de nenhuma fé: não tenho em mente uma revolução integrista para tomar conta do país. Tenho em mente, antes, uma participação real, e não virtual, propositiva, e não passiva, em nosso sistema de pluralismo democrático. Não proponho que a fé cristã seja a única voz, mas que ela tenha uma voz, que tem sido negada pela política tradicional, com a conivência da academia e a imprensa dominante.
Nesse sentido, quero destacar que o Cristianismo não é apenas uma sensibilidade religiosa que possa estar a serviço de ideologias políticas seculares, como o conservadorismo, o socialismo, o liberalismo e o libertarianismo, por exemplo. Certamente cristãos podem apoiar aspectos de todas essas bandeiras; a bola da vez foi o conservadorismo. Muitos se apaixonaram por nomes como Russell Kirk e Roger Scruton, entre outros. Mas, sem negar nem por um segundo a contribuição desses homens, preciso dizer que eles não podem ser a fonte e a regra da presença cristã pública. Pois o Cristianismo tem a sua própria doutrina social, sua visão sobre valores e sobre a terra, e sobre os limites da autoridade política, sua compreensão da natureza e da personalidade humana, e da esperança no futuro.
Não proponho que a fé cristã seja a única voz, mas que ela tenha uma voz, que tem sido negada pela política tradicional, com a conivência da academia e a imprensa dominante
Os cristãos precisam interpelar os políticos que querem seu apoio e enquadrá-los nesse sentido. Devem formar e recomendar representantes políticos de sua visão de mundo, e devem fazer suas opiniões pesarem na arena política. A força gravitacional do Cristianismo deve alterar positivamente o espaço político. E devemos dar um fora em políticos que querem apenas nos usar.
Penso que, nesse momento, os católicos romanos que não foram engolidos pelo pseudoconservadorismo de Olavo de Carvalho precisam recuperar os fundamentos da Doutrina Social da Igreja, e alimentar ainda mais a presença política que já tiveram no passado, e que está em processo de reflorescimento. E os evangélicos deveriam fazer o mesmo: ler os documentos constituintes da Doutrina Social da Igreja Católica, desde a Rerum Novarum, de 1891, passando pela Quadragesimo Anno e pela Centesimus Annus, e por outros documentos mais recentes dos irmãos romanistas. E também recorrer aos grandes pensadores sociais protestantes, como o teólogo e estadista Abraham Kuyper, um dos fundadores da tradição democrata-cristã europeia, que também em 1891 escreveu sobre A Questão Social. A tradição cristã-social anglicana e metodista precisa ser recuperada, o pacto de Lausanne precisa ser revisitado, e as contribuições recentes de filósofos, eticistas e teólogos políticos como Herman Dooyeweerd, Oliver O’Donovan e John Milbank precisam receber a atenção que merecem. Devemos abandonar as migalhas de Olavo de Carvalho, da Teologia da Libertação e das teologias pós-modernas, e de outros ideólogos manipuladores para buscar uma presença pública cristã das raízes aos ramos.
A força gravitacional do Cristianismo deve alterar positivamente o espaço político. E devemos dar um fora em políticos que querem apenas nos usar
Eu compreendo o voto em Bolsonaro e até a cooperação com Bolsonaro; mas a crença em Bolsonaro? O “Bolsonarismo” evangélico é uma loucura, uma idiotice tão idiota quanto o “lulismo” evangélico. Como é possível que nos contentemos com essas bolotas, essas comidas de porcos? Somos cristãos, e cristãos protestantes. Temos princípios. E quem não se lembra de seus princípios deveria se perguntar sobre a natureza de seu Cristianismo.
Estamos agora entrando numa encruzilhada histórica. Não vamos nos iludir; os caciques denominacionais, principalmente os neopentecostais, continuarão manipulando números e se entregando a negociatas. Mas os cristãos evangelicais, o núcleo duro do protestantismo evangélico, precisam ter o seu próprio rosto e a sua própria voz, sem servilismo político. Precisam deixar o Egito do sucesso eleitoral incondicional e se levantar como firmes e teimosos anteparos morais diante do fluxo dos interesses de poder. Como o patriarca Abraão, eles poderão até mesmo lutar ao lado do rei de Sodoma, mas não farão pactos nem se venderão a ele. Por que é difícil entender que é possível cooperar com governos sem vender-lhes a alma?
Enfim, a história demandará isso dos cristãos evangélicos: a presença fiel. Não importa tanto se eles tiveram sucesso. Importa é que eles tenham sido, na teoria, no coração e na práxis política, cristãos.
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