A sociedade do “reconhecimento”, que alegadamente tem na mais alta conta o respeito e a sensibilidade para com a particularidade do outro, é, paradoxalmente, a sociedade do desrespeito e da humilhação, como as mídias sociais deixam evidente todos os dias. A crise moral no âmbito de nossas palavras, discursos e comunicações é um fato público e quase normalizado. Desacostumar-se é preciso. A normalidade da indecência precisa ser contestada. Esse é o assunto de Lucas Nascimento, professor da UEFS e especialista no campo da ética do discurso, em seu terceiro e último artigo de nossa série. Boa leitura!
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Se quisermos construir uma sociedade realmente decente e comprometida com o bem comum, as pessoas precisarão ser efetivamente educadas para não humilharem umas às outras.
Há poucos dias, um vídeo circulou nas redes sociais e nos deu uma terrível amostra do que é uma humilhação por motivação racial. Um jovem entregador de delivery, um dos símbolos de nossa luta contra o coronavírus, ao fazer uma entrega dentro de um condomínio no interior de São Paulo, foi injuriado por sua cor de pele e condição social. O agressor esbravejou: “Você tem inveja disso aqui” – aponta para casas no condomínio – “você tem inveja dessas famílias, você tem inveja disso aqui” – e aponta para sua pele branca. Ora, o jovem motoboy foi vítima de injúria racial e de uma nefasta indecência discursiva.
Da humilhação cotidiana
Infelizmente, esse é um exemplo extremo do cotidiano de uma cultura em que ainda, repetidas vezes, se humilha e se é humilhado por indivíduos e instituições. E, se isso é recorrente em diferentes situações, revela como nossas instituições educadoras, da família à escola, passando pela mídia e pela religião, têm por demais falhado em ser educativas, já que nem sempre educam para o bom, o belo e o verdadeiro. Parecem carecer de fundamentos e procedimentos mais sábios, a fim de educar a todos, da criança ao idoso, do pobre ao rico, do religioso ao ateu, para o respeito, a tolerância e a sabedoria prática, ou seja, para a ética discursiva, assunto de meus dois últimos artigos nessa coluna.
Se a injúria racial, como a que relatei acima, é um ato extremo da indecência discursiva, digna de penalização judicial, existem, no entanto, numerosas maneiras menos “judicializantes” em que as pessoas sofrem humilhações verbais em suas interações cotidianas. Sobretudo no mundo digital, infelizmente, tornou-se muito comum ver alguém sofrer violência verbal e ser tratado indignamente, seja por sua posição política, ideológica, religiosa ou por orientação sexual ou de gênero. E, em um cenário de polarização e de sede por “lacração” virtual, as rotulações têm servido, na maioria das vezes, à indecente função de calar o outro e humilhá-lo: comunista, fascista, mortadela, petralha e por aí vão os insultos empregados. O discurso e a comunicação cotidianos encontram-se eivados da vontade de humilhar.
Nossas instituições educadoras, da família à escola, passando pela mídia e pela religião, têm por demais falhado em ser educativas, já que nem sempre educam para o bom, o belo e o verdadeiro
Sim, existem certas humilhações, como as de motivações racista, religiosa, homofóbica e de gênero, dirigidas a grupos vulneráveis, que devem ser foco de combate efetivo para buscarmos dirimi-las. No entanto, a problemática diz respeito a algo que se encontra ainda mais fundo, cuja causa profunda não está simplesmente numa dimensão sociológica, mas na natureza do ser humano, tendente a buscar a diferenciação discriminatória entre as pessoas, motivada por um orgulho mortal. E este é sempre “um desejo irresistível em direção ao mal”, como escrevera Cornelius Jansenius, importante filósofo e teólogo do século 17, em Discurso da reforma do homem interior.
Por isso, se não for ativa e constantemente sensibilizado ao bem, o ser humano buscará ter sempre o que usar como marca de distinção e de diminuição de seus semelhantes, de maneira a criar e alimentar estruturas sociais preconceituosas, intolerantes e discriminatórias. Ele cultivará a indecência discursiva.
Indecências
Não à toa, o discurso indecente é aquele que faz um ser humano, em certo ambiente e circunstância, sentir-se menos humano ou menos digno. Avishai Margalit, filósofo israelense, em La société décente, diz que “há humilhação toda vez que um comportamento ou uma situação dê a alguém, homem ou mulher, uma razão válida para pensar que sofreu um atentado no respeito que tem por si mesmo”. Quando um religioso, por exemplo, é atacado com injúrias por pertencer a uma religião específica, ele está sendo diminuído por sua condição religiosa, o que no Brasil é crime (do qual os religiosos de matriz africana mais são vítimas por aqui). E isso é normalmente feito por praticantes de outras religiões, de maneira que tais malignidades apontam para a necessidade de as organizações religiosas educarem de maneira efetiva para a tolerância, para o respeito e para a decência discursiva.
Já o discurso decente, como manifestação da virtude discursiva, também proposta por Marie-Anne Paveau em Linguagem e moral, “é o discurso no qual não só os agentes não se humilham mutuamente, mas que também é produzido num ambiente cujos valores não permitam a humilhação”. Nesse sentido, os valores da coletividade, e não apenas o olhar subjetivo do sujeito agente, regulam o clima axiológico de um ambiente em que a decência discursiva pode florescer.
Sabedoria e decência
A ideia de pensarmos teórica, analítica e educativamente a sabedoria no discurso é justamente a de vislumbrarmos possibilidades de educar para a construção de uma sociedade não apenas civilizada, mas também decente. A própria noção de decência discursiva proposta por Paveau é interpelada pelas ideias de Margalit, que argumenta: “a sociedade civilizada é aquela cujos membros não se humilham mutuamente, ao passo que sociedade decente é aquela em que as instituições não humilham as pessoas”.
Isso envolve, como sinalizei, não apenas a escola ou a academia, mas o engajamento responsável de diferentes esferas socioculturais para termos práticas sociais mais sábias.
Falar, portanto, de sabedoria e virtudes é compreender a dimensão moral da pessoa humana como constitutiva de seus atos, sejam eles bons ou maus. Trazer essa perspectiva para o discurso é ver, por assim dizer, como somos seres atravessados pela linguagem, e esta pela moral; de semelhante modo, é ver como nossos atos discursivos são práticas sociais moldadas por outras previamente estabelecidas, mas que por sua vez também moldam dialogicamente nossa forma de ver e agir.
Em um cenário de polarização e de sede por “lacração” virtual, as rotulações têm servido, na maioria das vezes, à indecente função de calar o outro e humilhá-lo
Ou seja, não somos apenas produto das instâncias sociais; nós também as construímos, de modo que, se queremos interações discursivas e debates públicos virtuosos, precisamos buscar a mudança dos pressupostos através dos quais interpretamos o mundo.
Ao nos propormos discutir sabedoria pública, como Guilherme de Carvalho tem oportunizado nesta coluna, colocando em questão a moralidade, temos já aqui um discurso que passa a influenciar formas de ver e agir, cujo fruto busca despertar reflexão em todos nós a fim de sermos mais virtuosos em nossos discursos e mudarmos, por assim dizer, sábia e amorosamente nossas motivações e comportamentos privados e públicos. E, como diz o filósofo neerlandês Roel Kuiper, em Capital Moral, “Todo mundo sabe o que é o amor de um modo geral; mas amor só ganha credibilidade quando recebe uma forma concreta dentro das práticas sociais”.
Lucas Nascimento é analista do discurso, com mestrado em Estudo de Linguagens (Uneb) e doutorado em Língua e Cultura (UFBA). É professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL/UEFS). Twitter: @lunascimentos
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