Ouça este conteúdo
Em agosto de 1831, Michael Faraday teve uma ideia genial, que mudaria o destino do mundo. Onze anos antes, o físico dinamarquês Hans Øersted observara acidentalmente que a passagem de uma corrente elétrica por um cabo causou uma oscilação numa bússola magnética próxima. Øersted acabou provando que a corrente elétrica num cabo produz um campo magnético circular ao redor dele. A ideia que ocorreu a Faraday foi a de testar se o contrário também seria verdadeiro. E, ao fazer um ímã se mover para dentro e para fora de uma bobina de fios, conseguiu produzir uma corrente elétrica, descobrindo com isso a indução eletromagnética. E ali, na Royal Institution, à Rua Albemarle, em Londres, foi inventado o precursor de todos os motores elétricos.
A noção geral de uma lei da indução me parece uma maravilhosa analogia para entender como a dignidade humana e a glória divina se associam, e penso que Faraday não a desaprovaria, uma vez que ele mesmo foi por toda a sua vida um fervoroso cristão. Mas o ponto da nossa analogia é bem simples: o sentimento de Deus e da importância da vida humana são experiências associadas internamente, perpendicularmente associadas – para esticar ao máximo a analogia com o eletromagnetismo. Essa paridade divino-humana tem sido objeto de inúmeras discussões teológicas e filosóficas; Roger Scruton, por exemplo, a explora em seu livro O Rosto de Deus. Antes dele, o filósofo analítico norte-americano Alvin Plantinga a desenvolveu extensivamente em sua epistemologia da crença religiosa, começando já em 1967 com a obra God and Other Minds.
A dignidade humana é um atributo de cada pessoa, reconhecido intuitivamente quando reconhecemos a face do outro como o portal de uma existência valiosa, importante e inviolável. Dessa aura de sacralidade que nasce à visão da pessoa por meio do seu rosto (para aludir, aqui, a Emmanuel Levinas), tomamos consciência de que o universo é moralmente organizado, e que há bens finitos inferiores e superiores, e que há bens finitos e infinitos.
A dignidade humana é um atributo de cada pessoa, reconhecido intuitivamente quando reconhecemos a face do outro como o portal de uma existência valiosa, importante e inviolável
Essa experiência moral básica está incorporada na noção judaico-cristã de que os seres humanos foram feitos “à imagem e semelhança” de Deus: a fé em Deus esclarece o valor da pessoa humana, e o reconhecimento da dignidade humana induz a crença em uma realidade divina. Como observamos na coluna da semana anterior: “da relação é derivada a valoração; de uma relação de importância infinita deriva-se um valor infinito”. Não por acaso Jesus diria que não há apenas um, mas dois “mandamentos mais importantes da lei”: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Não poderia ser uma coincidência; esses dois mandamentos são os mais importantes porque refletem a natureza das coisas: Deus e a pessoa humana, o seu reflexo temporal, formam a topologia moral do mundo.
Mas qual é a natureza dessa relação? Aqui a tradição judaico-cristã oferece uma resposta muito consistente: essa relação é de natureza vocacional. Ser à imagem de Deus não significa que ele tenha um nariz e duas orelhas, mas ter uma função representativa. Versões genéricas dessa noção estavam presentes no antigo Oriente Próximo entre egípcios, sumérios, assírios e cananeus, segundo os estudos de John Walton (O Pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento): a imagem de escultura representava e presentificava a divindade, como uma espécie de mediadora e como ponto focal do culto. Na imagem o povo se encontrava com seu deus. Mas, para que isso acontecesse, a imagem deveria ser construída sob uma orientação da divindade, e passar por um processo especial de consagração.
Mas as imagens não representavam a divindade de modo meramente estético. No mundo antigo os reis terrenos indicavam suas reivindicações de domínio espalhando imagens de si mesmos, como emblemas de sua soberania. Não apenas a imagem, no templo, representava a soberania do deus, mas o próprio rei era frequentemente visto como uma imagem viva da divindade, sinalizando seu poder e mediando o seu culto.
Foi nesse contexto que os hebreus emergiram com uma narrativa semelhante, mas radicalmente invertida: o Deus verdadeiro não se manifesta por meio de imagens de escultura, mas de imagens vivas; só que cada ser humano, cada homem e cada mulher, e sua união coletiva chamada Adam, é que constitui a imagem de Deus. Não há mediadores entre Deus e as pessoas, nem são os poderosos deste mundo os únicos emblemas do governo de Deus.
O biblista Richard Middleton descreve essa concepção da Imago Dei como a interpretação funcional/missional: “a imago Dei designa o ofício ou o chamado real dos seres humanos como representantes de deus e seus agentes no mundo, agraciados com o poder de compartilhar o governo ou administração divina dos recursos da terra e de suas criaturas”. Em seu contexto histórico, a visão bíblica representou uma dramática inversão dos universos pagãos. Middleton escreve, em The Liberating Image:
“O ponto de partida para uma leitura da história primeva como uma crítica da ideologia mesopotâmica é a reivindicação em Gênesis 1 de que Deus concedeu uma identidade real-sacerdotal como imago Dei a toda a humanidade na criação. Essa democratização da ideologia real mesopotâmica serve para elevar e dignificar a raça humana com um status nobre no mundo, análogo ao status da realeza no antigo Oriente Próximo.”
A dignidade humana não é algo que esteja sujeito ao arbítrio do ser humano, como muitos pensam hoje, fazendo o que querem de suas existências, e até mesmo emporcalhando-as ou dispondo delas
Essa compreensão bíblica conteria muitas das sementes da moralidade dos direitos humanos: dignidade, igualdade, direitos da pessoa; mas ela conteria muito mais que isso. A visão da imagem como unindo em si a representação do poder divino e o ponto focal do culto divino fornece um conteúdo muito definido para a dignidade humana: é a dignidade de suas funções reais e cúlticas ou sacerdotais. Como observa Middleton, o ser humano é uma espécie de rei-sacerdote. E essa interpretação, no que se refere à teologia das Escrituras bíblicas, se encaixa perfeitamente com a visão de que o universo é um templo, e que exploramos nessa coluna dias atrás. O Cosmo é um templo, e o ser humano é o administrador desse templo, não apenas para governá-lo e protegê-lo, mas para oficiar a adoração cósmica ao Criador.
O que se segue disso? Que a dignidade humana não é uma carta branca. Não é – para os antigos entre nós – um “cheque em branco”. Não é algo que esteja sujeito ao arbítrio do ser humano, como muitos pensam hoje, fazendo o que querem de suas existências, e até mesmo emporcalhando-as ou dispondo delas. Se a dignidade é o poder da representação divina, é preciso que os interesses divinos no mundo sejam compreendidos e efetivamente representados; conhecer a Deus torna-se necessário para conhecer a si mesmo e entender o próprio destino.
E, assim como a compreensão mosaica da Imago Dei, como a lemos em Gênesis, subvertia as noções egípcias e mesopotâmicas de identidade, também hoje a antropologia judaico-cristã subverterá as noções modernas de identidade. O verdadeiro Self de cada pessoa não pode ser encontrado em seus projetos, caminhos e preferências arbitrárias, e muito menos em um misticismo psicológico da busca da autenticidade, mas em uma vida vocacional, orientada para fora e para o futuro; uma vida caminhante, que jornadeia para completar uma carreira preparada por Deus. Viver a dignidade humana é viver não apenas no mundo dos direitos, mas no mundo dos deveres.
A compreensão adequada da concepção hebraica de imagem divina esclarece o próprio caminho de Jesus Cristo, como um homem que não estava “em busca de si mesmo” nem à procura de autenticidade, segundo a moderna religião do homem psicológico, mas em busca da vontade de Deus, como um emblema visível do seu Reino: “seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, é como ele orava. E isso o capacitou a curar, libertar, ensinar e anunciar aos pobres o Reino dos Céus.
Aqui eu gostaria de retornar a Faraday e sua lei da indução eletromagnética. Nos termos da analogia proposta, há uma paridade divino-humana, uma relação interna entre a consciência de Deus e da importância da vida humana. Pois é precisamente isso o que se reconhece em Jesus Cristo e, em menor grau, na vida de pessoas de grande santidade: a vida de fé induz um profundo sentido vocacional, e a visão de Deus induz uma profunda consideração pela vida humana. Inversamente, também, a vida vocacional e o reconhecimento, não apenas jurídico ou formal, mas emocional e moral, da dignidade humana evoca um estado espiritual, e o faz até mesmo na vida de quem não crê em um Deus pessoal. A fé esclarece a dignidade humana como dádiva e também como tarefa, e a sensação de que temos uma vocação nobre induz em nós a crença em algum tipo de destino divino, de alguma voz que nos convoca à ação.
Viver a dignidade humana é viver não apenas no mundo dos direitos, mas no mundo dos deveres
Evidentemente, com a exceção do próprio Jesus Cristo, os seres humanos vivem, em maior ou menor grau, num estado de alienação vocacional, precisamente na medida em que não compreendem que a existência tem um propósito divino e decidem – tolice das tolices – “inventar” um sentido para as suas próprias vidas. Sentidos “inventados” existem tanto quanto a fada do dente e o saci, e as coisas que fazem a vida valer a pena, como o amor, a ciência, a família ou a música, permanecem sempre como as peças de um quebra-cabeças que não pode ser completado.
Se a dignidade humana é a dignidade que nasce dessa relação com Deus, é claro que os seres humanos se tornaram, em suas inúmeras versões, indignos da sua dignidade. E afirmar a dignidade humana não pode ser apenas atribuir à vida humana o mais alto valor, promovendo igualdade, direitos e fraternidade; tem de ser, necessariamente, promover modos de existência à altura do que o ser humano recebeu, dignos da vocação com que eles foram chamados; modos de vida que não joguem na sarjeta as incríveis possibilidades e privilégios que foram concebidos à nossa espécie. A vida humana é digna e importante porque cada pessoa tem um destino, e ninguém tem o direito de se interpor entre a pessoa e a voz que a convocou.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos