“A frase mais politicamente poderosa da Bíblia poderia ser ‘Onde, então, está a vanglória?’” (Jonathan Leeman, As Chaves do Reino)
O mês de outubro é, para muitos protestantes, o tempo de rememorar a Reforma Protestante e seus frutos. Como se sabe, em 31 de outubro de 1517 Lutero afixou suas 95 teses na porta da capela de Wittenberg, dando à data um peso simbólico para as celebrações protestantes. O gesto e as ideias de Lutero ecoaram pela Europa desdobrando-se em uma série de movimentos reformatórios, com luteranos de vários matizes, reformados suíços, anglicanos, presbiterianos e anabatistas. Alguns eram marcadamente revolucionários, como os seguidores radicalizados de Thomas Müntzer e os puritanos progressistas de Oliver Cromwell.
Mas nessa pletora de movimentos um círculo, em especial, teria alcançado “o discernimento mais claro do princípio reformador”, na opinião do teólogo e estadista holandês Abraham Kuyper: o calvinismo. Segundo Kuyper, João Calvino teria estendido o princípio reformatório da comunhão direta com Deus, associado à redescoberta da justificação somente pela graça e pela fé, por Martinho Lutero, a uma aplicação ampla e cosmológica, estendendo-se a todas as áreas da vida. E uma das implicações dessa extensão teria sido uma de-hierarquização radical do mundo, favorecendo, na política, a liberdade e a igualdade. Daí Kuyper nega que Lutero tenha seguido até o fim as consequências de sua própria descoberta religiosa e teológica.
Pela encarnação Cristo se une conosco para partilhar de nosso destino; e na cruz ele recebe e absorve a retribuição justa dos pecados dos homens. Sendo, como homem, um representante da parte ofensora, mas também um representante de Deus, a parte ofendida, Cristo tem condições de resolver a demanda
A alegação de Kuyper sobre o calvinismo é de grande interesse, mas, se consiste realmente numa extensão e ampliação da descoberta de Lutero, é necessário que as honras aqui sejam bem-feitas. Lutero, que nem “luterano” era, seria menos ainda um “calvinista”, teria tropeçado, por uma graça divina, em uma preciosidade teológica que seria a própria origem do impulso igualitário celebrado por Kuyper. Haveria um luteranismo no coração do calvinismo.
Mas para esclarecer esse princípio não recorreremos ao próprio Lutero, aqui; eu gostaria de citar e, ao mesmo tempo, recomendar o excelente trabalho de Jonathan Leeman, recentemente publicado pela editoria Vida Nova: As Chaves do Reino: A Natureza Política da Igreja como Embaixada de Cristo. Leeman é um teólogo político batista com um trabalho inovador, correlacionando ciência política contemporânea e teologia cristã, e que merecerá discussões futuras em nossa coluna; mas hoje vamos ficar apenas com a parte do recheio que nos interessa: a sua discussão sobre a “justificação pela fé”.
A experiência protestante
O ensino protestante tradicional sobre a justificação pela graça e mediante a fé nasce de uma leitura das cartas de Paulo inaugurada por Lutero, que não vê a justiça de Deus como a mera exigência julgadora e condenatória de Deus sobre homens ímpios, por sua quebra da Lei, mas como um ato divino de reconciliação no qual ele resolve o problema da injustiça no mundo sem com isso destruir os pecadores. E o modo pelo qual Deus resolve esse dilema é enviando seu filho para morrer na cruz por nós. Pela encarnação Cristo se une conosco para partilhar de nosso destino; e na cruz ele recebe e absorve a retribuição justa dos pecados dos homens. Sendo, como homem, um representante da parte ofensora, mas também um representante de Deus, a parte ofendida, Cristo tem condições de resolver a demanda. Ele representa “as duas partes”. E assim Deus é justo e justificador; não é um juiz distante e punitivo, nem um pai pusilânime e omisso, mas aquele que cobra a dívida e ao mesmo tempo assume os custos. A justiça de Deus é isso: um milagre pelo qual a justiça e a misericórdia divina se beijam.
Mas não é só isso; o ponto mais delicado da posição protestante foi a alegação de que essa justificação divina – que tornaria Deus totalmente acessível a qualquer pessoa – seria transmitida gratuitamente, e recebida “somente pela fé”. Seria suficiente a audição da palavra de Deus e o gesto interior de confiar na graça de Deus, de dar crédito à sua promessa e considerar-se digno da presença de Deus. “Mas como um pecador indigno poderia ter tal pretensão?” A resposta protestante era de que, como diz o apóstolo Paulo em Romanos 4,5, Deus não justifica o justo, o santo ou o obediente, mas “o ímpio”. A graça de Deus alcança o crente em pleno estado de indignidade, independentemente de suas obras ou méritos pessoais.
Lutero relatou que ao descobrir isso, em sua leitura de Romanos, “os portões do céu se abriram”. Pessoas de outras religiões às vezes têm a impressão de que haveria algo de “autocongratulatório” nessa confiança, mas isso é uma ilusão de ótica. O apóstolo Paulo também “se orgulhava” da graça de Deus, ao mesmo tempo em que proclamava que ela excluía todo orgulho humano. Esse mesmo relato foi feito repetidas vezes na literatura protestante, da experiência de descobrir um Deus imediatamente acessível e presente, por meio de Cristo, quase como que recebendo um abraço do céu; mas tudo isso simultaneamente com uma profunda e nítida consciência de indignidade pessoal.
De modo que, onde começa a Graça de Deus, acaba a vanglória humana.
O crente protestante se descobre plenamente aceito por Deus e plenamente indigno disso – e, sem negar essa experiência no catolicismo romano, devo observar que ela é um distintivo protestante. Essa experiência dual, de alegria, alívio e segurança, na percepção da presença de Deus, coexistindo com uma humilhação completa, forma o coração da experiência protestante. Daí o imediato efeito psicológico – nem sempre mantido de forma consistente – de nivelamento moral. De repente cada convertido se vê como igual a todos os homens – igualmente miserável, nu e dependente de Deus. O sujeito se vê ao mesmo tempo erguido aos céus e com a cara esfregada no pó.
O problema da autojustificação
Pois bem; e o que isso implica em termos éticos e políticos? Essa é uma das questões examinadas por Leeman. E sua leitura disso é inequívoca: “os teólogos nem sempre tratam a doutrina da justificação como uma doutrina política, mas sem dúvida ela é”.
Segundo o seu argumento, muito bem fundamentado exegeticamente, a narrativa bíblica mostra um Deus interessado em fundar uma comunidade política. Esse interesse divino se revela gradualmente, por etapas; poderíamos citar, aqui, a título de exemplo, o momento em que Deus tira o seu povo do Egito, por meio de Moisés, e estabelece com ele uma espécie de pacto constitucional. O propósito de Deus, revelado gradualmente na história de seus atos salvadores, seria formar uma sociedade capaz de representá-lo na história, anunciando e antecipando aquele momento, no futuro, em que Ele fará novas todas as coisas. Essa sociedade divina, que operaria como uma espécie de “embaixada” do céu e da esperança, seria, enfim, a comunidade de Jesus Cristo.
De algum modo, então, a religião e a política seriam correlatas; e um dos engates cruciais dessa correlação seria a questão da legitimidade, ou do reconhecimento. Em toda sociedade humana o lugar de cada indivíduo depende de um julgamento coletivo sobre a sua identidade e sua legitimidade. Alguém diz quem nós somos e qual é o nosso devido lugar. Em sociedades menos reflexivas, esse lugar social é determinado coletiva e hierarquicamente; em sociedades mais individualistas e reflexivas, cada indivíduo precisa construir sua identidade e sua legitimidade pessoal, por um trabalho não apenas exterior, mas também interior. Pensemos, por exemplo, nas culturas da “honra”, como eram os gregos antigos; ou nas lutas identitárias contemporâneas. Além de buscar subsistência e direitos, as pessoas buscam espaço de ação (poder/autoridade) e legitimidade.
O propósito de Deus, revelado gradualmente na história de seus atos salvadores, seria formar uma sociedade capaz de representá-lo na história, anunciando e antecipando aquele momento, no futuro, em que Ele fará novas todas as coisas
Em seu livro, Leeman mostra que a aliança de Deus com o antigo Israel envolvia precisamente essas questões: os meios de reconhecimento dentro da comunidade política, de conquistar legitimidade e acesso aos privilégios de cidadania na sociedade eleita por Deus, e da prerrogativa de ser “filho de Abraão” e representante divino no mundo. O grande problema da religião hebraica teria sido o erro de tentar sustentar uma comunidade política rejeitando o reinado de Deus e construindo suas identidades e sua legitimidade sem a dependência da graça de Deus. Esse seria o problema da “autoentronização” e da “autojustificação.”
A questão é que Deus havia constituído Israel para ser uma sociedade diferente, como um modelo entre todos os povos da terra, mas a nação havia abandonado essa vocação. Ao se manifestar, Jesus Cristo atacou precisamente o coração do problema: a despeito de todo o aparato religioso, seus compatriotas organizavam suas relações humanas a partir de uma busca orgulhosa e fracassada por autoafirmação e a autojustificação diante de Deus e dos outros. E essa falha em ter uma relação humilde com Deus se espalhava por todos os aspectos da vida, infectando as relações sociais e alimentando um ordenamento social injusto e desumano.
No Novo Testamento encontramos essa frequente polêmica cristã contra certas correntes do judaísmo: Jesus, por exemplo, critica duramente os fariseus que desprezavam publicanos e pecadores e se achavam preferidos diante de Deus, por seus méritos religiosos. O movimento “judaizante”, para o qual o reconhecimento dentro da comunidade cristã dependia de o convertido se circuncidar e tornar-se plenamente judeu, foi consistentemente rejeitado pelo cristianismo primitivo. Mas não devemos ver aí um problema apenas interno do judaísmo ou do cristianismo antigo; esse dilema histórico é o reflexo de um dilema existencial profundo e universal, que todas as sociedades humanas carregam consigo. Diz Leeman:
“Estamos constantemente tentando nos justificar porque não aceitamos a confirmação e a identidade que Deus nos daria se nos humilhássemos. A Lei, então, expõe o problema da autoentronização e – no solo embaixo dela – a raiz da autojustificação, algo que caracteriza indivíduos e governos, equipes esportivas e empresas, exércitos e movimentos sociais.”
A questão é que a autojustificação diante de Deus não é politicamente inócua. De fato, como lemos nos evangelhos, ela conduzia ao orgulho, à hipocrisia religiosa, ao abuso de autoridade e, finalmente, à violência contra o próprio Cristo. E, se essa interpretação estiver correta, a reversão dos processos de autojustificação teria efeitos públicos, em termos de ética social e política.
A justificação pela fé e a política
Em seus trabalhos, Leeman defende a doutrina protestante tradicional a respeito da justificação pela fé, mas acolhe uma crítica contemporânea de que ela foi acomodada a uma compreensão individualista e psicologizada do cristianismo, muito distante da Bíblia – crítica que o aproxima da comparação de Kuyper entre luteranismo e calvinismo. Leeman observa que a justificação diante de Deus representava, nas Escrituras hebraicas, o reconhecimento de participação legítima na comunidade da Aliança e nas bênçãos abraâmicas.
Em outras palavras: ser justificado era como ter o seu passaporte regularizado e sua cidadania reconhecida. Essa mesma dimensão coletiva da salvação é ensinada no Novo Testamento: ser justificado diante de Deus, pela fé, não é apenas entender que, em Cristo, eu fui declarado inocente e aceito por Deus, e então ter uma experiência religiosa pessoal, mas ganhar a cidadania em uma sociedade divina; é deixar de ser um estrangeiro. E isso tem evidentes implicações sociais e políticas. Afirma Leeman:
“A palavra performativa e forense da justificação de Cristo – seu veredito pactual – institui pessoas como cidadãos de uma nova entidade política.... O ‘sola fide’ (“somente a fé”) é o fundamento histórico inesperado da unidade política. Ele tira dos agentes políticos os incentivos à guerra e à dominação, dando-lhes aquilo que todas as pessoas, nações e exércitos buscam acima de tudo – justificação, posição, o reconhecimento da existência... Uma vez livre da autojustificação, a fé é livre para – na verdade, pode permitir-se – pensar e trabalhar inteiramente em benefício do outro, não para validar o vindicar a própria pessoa... Em uma assembleia ou reunião dos justificados pela fé, não há nem escravo nem livre, nem judeu nem gentio, nem homem hem mulher... As categorias políticas que dividem o mundo são apagadas.”
Ser justificado diante de Deus, pela fé, não é apenas entender que, em Cristo, eu fui declarado inocente e aceito por Deus, e então ter uma experiência religiosa pessoal, mas ganhar a cidadania em uma sociedade divina
E assim o perdão e a justificação criam “um novo mundo político”, no qual as diferenças e assimetrias da injustiça, da distribuição de bens e até mesmo aquelas diversidades naturais são requalificadas e desinflamadas. A consciência da falibilidade, da igualdade e da dignidade passa a ser irradiada e disseminada a partir dessa consciência renovada da graça de Deus e de sua acessibilidade universal.
E a aceitação e o perdão dos diferentes, sob uma mesma graça, e numa mesma comunhão, alimentam grande nivelamento universal. Seus efeitos imediatos seriam a criação de uma experiência de solidariedade e comunidade entre amigos, parentes e vizinhos, e seus efeitos macroistóricos incluiriam uma inclinação da balança política em direção à democracia, não apenas em favor dos cristãos protestantes, mas de todos os cidadãos em cada comunidade política.
Certamente não quero tratar um ponto teológico do cristianismo como uma panaceia para os problemas do mundo. E nem a Escritura o faz; a esperança cristã é de que o próprio Cristo, que se tornou rei pela ressurreição, é quem pode fazê-lo, e o fará em seu tempo. Mas devo afirmar que o impacto dessa crença sobre a política moderna, a partir dos lugares nos quais ela foi vivida consistentemente e não apenas confessada pro forma, foi benéfico para a democracia, e que sua valorização como princípio político é inteiramente defensável. E aqui cabe uma citação mais longa de Abraham Kuyper em Palestras sobre o Calvinismo, de 1898:
“Se o calvinismo coloca toda nossa vida humana imediatamente diante de Deus, então segue-se que todos, homem ou mulher, rico ou pobre, fraco ou forte, obtuso ou talentoso, como criatura de Deus e como pecador perdido, não têm de reivindicar qualquer domínio sobre o outro, e que permanecemos como iguais diante de Deus, e consequentemente iguais como seres humanos. Por isso, não podemos reconhecer qualquer distinção entre os homens, exceto a que foi imposta pelo próprio Deus, visto que ele deu, a um, autoridade sobre o outro, ou enriquece um com mais talentos do que o outro, para que o homem de mais talentos sirva o homem de menos, e nele sirva a seu Deus.”
“Por isso o calvinismo condena não simplesmente toda escravidão aberta ou sistema de castas, mas também toda escravidão dissimulada da mulher e do pobre. Ele opõe-se a toda hierarquia entre os homens... Assim, o calvinismo foi obrigado a encontrar sua expressão na interpretação democrática da vida; a proclamar a liberdade das nações e a não descansar até que, tanto política como socialmente, cada homem, simplesmente porque é homem, seja reconhecido, respeitado e tratado como uma criatura criada à semelhança de Deus.”
A ênfase na consciência, nas liberdades individuais e na igualdade foi intensa e os processos políticos modernos foram intensamente acelerados em todos os países da reforma, com a consequência de sólidas democracias constitucionais
O texto, já antigo, de Kuyper me parece incrivelmente atual e pertinente. E, como eu disse, defensável: a verdade é que a ênfase na consciência, nas liberdades individuais e na igualdade foi intensa e os processos políticos modernos foram intensamente acelerados em todos os países da reforma, com a consequência de sólidas democracias constitucionais. Ou melhor: isso é tanto mais nítido quanto mais a versão calvinística do princípio protestante, menos psicológica e mais cosmológica, veio a prevalecer em cada país ou localidade. Na linguagem sugestiva de Kuyper, “o calvinismo foi obrigado... à democracia”.
Mas, enfim, não se trata de um privilégio de igrejas calvinistas; esses valores foram exportados para as sociedades europeias e para todo o mundo. E o tempo permitiu que cristãos de outras confissões apreciassem o valor do princípio protestante e sua experiência da graça de Deus, como também permitiu que protestantes reconheçam o abuso desse princípio, quando ele perde sua dimensão comunitária e se retrai para uma afirmação individualista da vida. Nesse respeito, penso que é tempo de o Brasil católico e de o Brasil secularista compreenderem essa dimensão da fé evangélica. Embora tímida e às vezes reprimida, ela traz consigo a promessa de salgar a sociedade e alimentar, no longo prazo, a nossa combalida democracia.
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