Os acontecimentos recentes na política no Ocidente e, em particular, a estranha paridade no processo político estadunidense e brasileiro, tornam necessário debruçar-se sobre o processo histórico. Urge compreendermos as condições que produzem a polarização emocional, o esgarçamento do tecido social e o abalo institucional que ora testemunhamos, enquanto procuramos alternativas possíveis de florescimento civilizatório.
Esse quadro é hoje associado, como o foi nos EUA, a mudanças da ordem política contemporânea, com a retomada de discursos populistas e autoritários, sugerindo-se que a tolerância a tais movimentos, enquadrados como manifestações “conservadoras”, seriam estimuladores do aumento da intolerância e do desrespeito. Muito embora tal leitura tenha plausibilidade ao senso comum, carece de verdadeira consciência crítica, capaz de procurar entre as origens estruturais do fenômeno o modo de organização da sociedade moderna; e por essa inconsciência, adianta-se à politização do problema sem a necessária mediação explanatória. A origem dessa intratável polarização encontra-se para além da política e do sistema jurídico, na imaginação moral e no próprio tecido social.
Em mais de uma oportunidade recomendamos aqui o best-seller de Mark Lilla, The Once and Future Liberal (no Brasil, “O Progressista de Ontem e o de Amanhã”, 2019). Interpretando as recentes mudanças políticas nos EUA, o Dr. Mark Lilla, da Universidade de Columbia, argumentou que o reaganismo dos anos 80 foi sucedido por uma “pseudopolítica de autoestima e autodefinição excludente”, uma política psicologizada e centrada na autoexpressão, manifesta nas políticas de identidade da esquerda. Essa política “selfizada” resultou em um aprofundamento do subjetivismo e na perda de toda a consciência cívica e da capacidade de pensar no “bem comum” entre os jovens millenials e IGen. E sem um discurso e um projeto para unificar a sociedade americana, os democratas foram expulsos do governo pelo trumpismo. Trump seria, em parte, um efeito colateral da política desastrada do partido democrata; a extrema-esquerda teria ajudado a engendrar a extrema-direita. Como observamos noutra ocasião, teríamos no Brasil um caso semelhante.
O que estaria por trás dessa polarização aparentemente inexorável?
Dois tipos de inversão moral
O psicólogo social Jonathan Haidt mostrou recentemente evidência de psicologia experimental de que há de fato uma bifurcação na imaginação moral ocidental em curso. A partir de sua “Teoria dos Fundamentos Morais”, apresentada em The Righteous Mind (2012), Haidt mostrou que há um conjunto de pelo menos seis áreas de sentimentos morais que teriam emergido através da evolução biológica da espécie humana, tendo, portanto, raízes psicoevolutivas naturais. Diferentes culturas em todo o mundo, mesmo tendo seus códigos morais particulares, operariam a partir dos mesmos seis módulos cognitivos-morais. Três desses módulos “Cuidar/evitar o dano”, “Equidade/evitar injustiça”, e “Liberdade/evitar a tirania”, estariam mais ligados à individualidade e a sentimentos pessoais. Os outros três módulos, “Lealdade/evitar a trapaça”, “Autoridade/evitar a rebeldia”, “Santidade/evitar a profanação”, estariam mais associados à vida coletiva e a sentimentos comunitários.
Mas a surpreendente descoberta da equipe de Haidt foi que há uma exceção no padrão geral de imaginação moral: os indivíduos W.E.I.R.D. (em inglês, “estranho”). O acróstico foi empregado por Haidt com referência à mentalidade moral elitizada das sociedades modernas: “Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic” (Ocidental, Educada, Industrializada, Rica e Democrática). Esses indivíduos seriam pessoas com posições mais liberais nos costumes, mais preocupadas com direitos humanos, mais individualistas e mais estatistas. Um retrato do partido Democrata dos EUA e, vale observar, da comunidade internacional dos Direitos Humanos, como expusemos no artigo “A Ideologia dos Direitos Humanos”.
Segundo Haidt, diferentemente da maior parte da população mundial, esse grupo opera com os três fundamentos morais mais associados à individualidade de forma hipertrofiada, mantendo os fundamentos morais ligados à prosocialidade atrofiados ou dormentes. Ele sugere que mesmo compartilhando do mesmo paladar moral, indivíduos W.E.I.R.D. praticam uma “culinária” moral diferente dos outros. É como se fossem vegetarianos quanto aos fundamentos morais da autoridade, da lealdade e do sagrado ou religião. Ou como se fossem, na metáfora de Haidt, esquimós morais, que tem a capacidade de sentir o sabor doce, mas não tem esse sabor em sua culinária (pois não há frutas ou mel no Ártico).
O grupo detectado por Haidt é precisamente o grupo que vem encontrando dificuldades para construir uma linguagem moral e política de bem comum, e que tende a promover versões mais acentuadas de liberalismo expressivo e formas combativas de laicismo, como expusemos num artigo anterior na Gazeta.
Mas isso não é tudo; Haidt também demonstrou que, à medida em que nos movemos em direção à direita, o paladar se altera sensivelmente. A situação na qual todos os fundamentos morais são igualmente valorizados corresponde a posições políticas de centro ou centro-direita na política dos EUA. Mas se avançarmos rumo à extrema direita, o quadro se inverte. Passamos a ter pessoas com pouco interesse pelos fundamentos morais do cuidado, da equidade e da liberdade, e totalmente absorvidas pelos fundamentos morais da santidade, da lealdade e da autoridade. Exatamente as virtudes necessárias a um coletivismo de direita, e por isso preferidas pelo fascismo clássico. Esses traços estão claramente hipertrofiados na direita bolsonarista e nos adeptos de Olavo de Carvalho: devoção religiosa, dogmatismo, lealdade aos símbolos coletivos, conservadorismo social, espírito autoritário e antipluralista.
Mas o que teria causado essa bifurcação da imaginação moral ocidental? Muito embora Haidt sugira que tendências de origem evolutiva e biopsíquica possam estar por trás da inclinação de algumas pessoas para visões mais progressistas ou mais conservadoras, ele nota que a maioria das sociedades encontra meios para integrar as duas mentalidades. Mas isso não está ocorrendo mais no Ocidente. E ele mesmo menciona os novos discursos morais iluministas do deontologismo Kantiano e do utilitarismo de Jeremy Bentham como exemplares primitivos e causas parciais do paradigma W.E.I.R.D. Faz sentido: além do recorte psicológico, é necessária uma investigação arqueológica.
É importante destacar que as virtudes preferidas pelos W.E.I.R.D. não são “virtudes comunistas”, nem são as virtudes preferidas pelos coletivistas de direita, virtudes “fascistas”. Na verdade, ambas poderiam ser vistas como formas de inversão moral.
O espalhamento do niilismo moral, na segunda metade do século 19, na esteira do liberalismo político, gerou grandes massas de indivíduos espiritualmente alienados, cheios de paixões morais sem objeto
O conceito de inversão moral foi introduzido pelo cientista e filósofo da ciência Michael Polanyi em A Lógica da Liberdade (1951), para descrever o estilo fanático de mentalidade compartilhado pelos adeptos dos sistemas totalitários do comunismo e do fascismo. O espalhamento do niilismo moral, na segunda metade do século 19, na esteira do liberalismo político, gerou grandes massas de indivíduos espiritualmente alienados, cheios de paixões morais sem objeto. Esses seriam os indivíduos suscetíveis a uma solução política para o mundo e a história que pudesse canalizar essas paixões morais sem objeto para um objetivo comum de destruir a ordem vigente. A máquina ideológica marxiana foi o primeiro exemplo de tais “soluções”; o indivíduo sem virtudes e descrente da sociedade poderia se sentir parte de algo maior e muito importante, derramando seus sentimentos morais, ressentimentos e sonhos num projeto revolucionário de destruição, na expectativa de um Novo Homem e de um Novo Mundo. O nazismo seria um coletivismo de direita.
Abstraindo-se das questões de mérito, das ideologias políticas e causalidades históricas particulares, a estrutura da inversão moral seria a mesma, envolvendo esvaziamentos e contradições morais. A insensibilidade quanto a certos sentimentos morais, associada ao um niilismo absoluto ou a um universo moral pobre cria, primeiro, uma incapacidade de reconhecer esses sentimentos morais no discurso e na prática moral da sociedade, e em seguida, o imperativo apaixonado de combatê-los como se fossem vícios. Virtudes contra virtudes, virtudes tornando-se vícios. A guerra civil dos sentimentos morais.
O embate entre o “liberalismo” identitário, ou esquerda identitária, e o “liberalismo” autoritário, que no Brasil corresponde a um pensamento avesso ao bem comum, cioso das liberdades civis contra os direitos sociais mas, ao mesmo tempo, em flerte contínuo com a ruptura institucional, parece ser um embate entre duas formas de inversão moral.
Das causas da alienação
Uma das mais penetrantes análises críticas da transformação contemporânea nos foi oferecida por Patrick Deenen em Why Liberalism Failed? (2018), um livro que merecerá atenção por muito tempo.
Deenen, professor de Ciência Política em Notre Dame, sustenta que haveria uma simbiose entre o liberalismo, com sua ênfase no indivíduo às expensas da comunidade, e um Estado totalizante. O estado de natureza Hobbesiano, no qual cada indivíduo é absolutamente livre e o lobo do seu próximo, supostamente anterior ao Contrato Social que funda o “Leviatã”, não seria uma descrição arqueológica da ordem civil mas, efetivamente, um programa. O que se pressupõe como liberdade individual original nunca houve, e o Estado totalizante, o único modo de fazer a gestão da horda de lobos é, na verdade, o criador do indivíduo atomizado, o ninho dos lobos. O que fica de fora da visão contratual de mundo e da polaridade entre indivíduo e estado é, basicamente, tudo o que faz a vida social significativa, o conjunto de nossos valores e laços comunitários. Tratamos rapidamente do tema em um artigo da Gazeta.
Com essa perspectiva em mente, Deenen recupera uma sociologia e uma filosofia social honorável, desenvolvida após a Segunda Guerra mundial, que buscou compreender o que produziu a condição psicológica na qual indivíduos se vejam tão identificados com o Estado, e tão comprometidos com utopias mediadas pelo Estado, ao mesmo tempo em que tem suas vidas pessoais e comunitárias tão empobrecidas. Essas condições teriam possibilitado os totalitarismos no século 20 e a atual polarização entre liberais progressistas e liberais autoritários.
“Essas análises em obras referenciais como “As Origens do Totalitarismo” de Hannan Arendt, “Escape da Liberdade” por Erich Fromm, e “A Busca pela Comunidade” de Robert Nisbet – reconheceram, de várias perspectivas e disciplinas, que um traço indicativo do totalitarismo moderno foi que ele se ergueu e chegou ao poder por meio dos descontentamentos de pessoas isoladas e solitárias. Uma população buscando preencher o vazio deixado pelo enfraquecimento de membresias mais locais e de associações era suscetível à vontade fanática de se identificar completamente com um estado distante e abstrato.”
Patrick Deenen encontrar no sociólogo Robert Nisbet um parceiro pouco reconhecido na tarefa de desvelar o impacto do liberalismo no processo de descalcificação e atrofia da experiência social moderna, desgastando todo um universo moral e deixando os indivíduos carentes de escoras para a suas identidades. Nessas condições, grandes movimentos capazes de gerar unidade coletiva e identificação guardam aumentado potencial de sucesso; sejam eles coletivismos de direita ou esquerda, ou movimentos liberais identitários. Assim, no clássico The Quest for Community (1953) Nisbet observou:
”Essa afinidade entre o individualismo social e o poder político é, eu penso, o mais fatídico fato dos séculos dezoito e dezenove. Ele forma a própria substância da ideologia da comunidade política; compreende a maioria das ideias do humanitarianismo político. É impossível compreender as concentrações massivas de poder político no século 20, surgindo de forma tão paradoxal, como parece, logo após um século e meio de individualismo na economia e na moralidade, a não ser que vejamos claramente a relação próxima que prevaleceu durante o século 19 entre o individualismo e o poder Estatal e entre ambos com o progressivo enfraquecimento da área de associação que se encontra entre o homem e o Estado.”
Essa associação entre individualismo e estatismo, engendrada pelo liberalismo, teria esvaziado o ser humano moderno facilitando a sua conversão a sistemas de dominação, numa espécie de plot twist da narrativa iluminista e emancipatória dos modernos. Assim, como nota Nisbet, “o típico convertido ao comunismo é uma pessoa para quem os processos da existência ordinária são moralmente vazios e espiritualmente insuportáveis. Sua própria alienação é traduzida na percepção de alienação de muitos. Conscientemente ou não, ele está em busca de crenças seguras e de membresia sólida em uma ordem associativa.”
Se em Michael Polanyi temos uma hipótese psicológica para o fenômeno da inversão moral, em Robert Nisbet temos uma sociologia histórica do fenômeno. E a condição imediatamente anterior ao “salto” ou à “inversão” seria a alienação.
“Por alienação, me refiro ao estado mental que venha a considerar a ordem social como algo remoto, incompreensível ou fraudulento; além que esperança real ou desejo; o que convida à apatia, ao tédio, ou mesmo à hostilidade. O indivíduo não apenas não se sente parte da ordem social; ele perdeu o interesse em participar dela.”
Teríamos então, nessa ordem: expansão do programa liberal e bifurcação da imaginação moral; esvaziamento de valores e atrofia do nexo comunitário, ou alienação; finalmente, inversão moral, submissão a um programa messiânico e a uma guerra política utópica.
Por trás de militâncias que refletem estados de inversão moral, como o desejo de destruir a ordem social, devido às suas falhas, a aprovação da violência e do desrespeito e da incivilidade, temos processos de alienação. E o motor principal da moderna alienação espiritual é a mente liberal, o ideal de autonomia absoluta do indivíduo, acima da religião, dos valores, das responsabilidades comunitárias, e do bem comum.
A mente liberal, ao enfraquecer valores, tradições e experiências comunitárias, criou as condições históricas para a bifurcação da imaginação moral ocidental, demonstrada por Jonathan Haidt, e para a inexorável polarização entre políticas de autoexpressão individual e políticas coletivistas e autoritárias.
A tarefa histórica seria, então, atuar nas raízes da patologia histórica, aonde se deu a bifurcação da imaginação moral ocidental. Equacionar e reconciliar valores morais e sentimentos morais, balancear liberdade individual e os deveres da fraternidade. É preciso recompor o universo moral dos indivíduos e fortalecer o tecido social, de modo a protege-los da alienação e da inversão moral.
Sem novos discursos e narrativas, práticas sociais e instituições capazes de formar pessoas com espírito cívico e compromisso com o bem comum, comprometidos com alguma forma de realismo moral que as proteja do niilismo e das inversões morais, há pouca esperança de pacificação na atual guerra civil dos sentimentos morais.
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