“Como tal, ao menos em parte, o relatório é realmente um ataque à liberdade de religião ou crença assim como da liberdade de consciência.”
Arcebispo Ivan Jurkovič, Observador Permanente da Santa Sé na ONU-Genebra
Conheci o Dr. Ahmed Shaheed em novembro passado, em Haia, durante o 7º encontro do “Processo de Istanbul”, estabelecido em 2011. Esse processo visa promover a liberdade de religião ou crença e combater a intolerância, a estereotipificação negativa, estigmatização e discriminação de pessoas por motivo de religião ou crença, e foi estabelecido em seguida ao colapso da tese do “Combate à difamação das religiões”, assunto de nosso último artigo sobre a “crítica do sagrado”. Shaheed, relator especial sobre liberdade de religião ou crença do Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC) foi um dos panelistas.
O centro de gravidade do Processo de Istanbul encontra-se na Resolução 16/18 do UNHRC, e a Resolução 66/167 da Assembleia Geral da ONU, ambas sobre o combate à intolerância religiosa adotadas em 2011, bem como o Plano de Ação de Rabat, de Outubro de 2012, e a mais recente Resolução 40/10 de Março de 2019, que reafirmou a importância global do tema da liberdade de religião ou crença, diante da crescente perseguição religiosa no mundo.
De modo que não foi sem alguma surpresa e indignação que muitos militantes e estudiosos de Direitos Humanos e Liberdades Civis Fundamentais receberam o Relatório 43/48 que o Dr. Shaheed apresentou na 43ª sessão do Conselho (24/02 a 20/03), no dia 27 de Fevereiro. O relatório, que propõe uma submissão do tema “liberdade religiosa” ao tema “igualdade de gênero” foi amplamente reconhecido por defensores da liberdade religiosa como um retrocesso e uma ameaça ao recente movimento global em defesa da liberdade religiosa.
Vamos discuti-lo no artigo de hoje.
O PROBLEMA DE MÉRITO
O interessante e inteiramente válido objeto do relatório é de fácil compreensão: a “violência baseada em gênero e a discriminação em nome da religião ou crença”. Diante de numerosos documentos e resoluções internacionais, mas especialmente do 25º aniversário da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim sobre direitos e igualdade da mulher (1995), é imperativo examinar como a liberdade de religião ou crença – assunto específico do relator Shaheed no HRC – incide sobre a discriminação por motivo de gênero.
Shaheed celebra os avanços na área, mas nota que o estado geral dos direitos da mulher, primeiramente, mas também de todos os direitos relacionados à diversidade de gênero, direitos reprodutivos, de orientação sexual e de identidades LGBT+ seguem com progresso insuficiente sendo, uma das causas desse atraso, a religião:
“Em cada região do mundo, o Relator Especial identifica leis estabelecidas com o propósito de impor padrões de conduta alegadamente demandados por uma religião particular que efetivamente negam às mulheres e a outros indivíduos o direito à igualdade e não-discriminação com base em seu sexo, orientação sexual e identidade de gênero.”
O relatório reuniu situações que já vinham sendo acompanhadas pelo HRC nas quais leis opressivas e discriminatórias eram inspiradas ou justificadas por religião, como criminalização da união homoafetiva, do adultério, do aborto, e de identidades sexuais, práticas como a circuncisão feminina, casamentos infantis, casamentos forçados, abusos de natureza psicológica e supressão de direitos. Foram ouvidos indivíduos interessados, acadêmicos, especialistas, defensores, juristas, e oficiais de governos lidando com o tema dos Direitos Humanos em 42 países, em uma série de consultas regionais, que também incluíram representantes das grandes agências do Sistema Internacional de Direitos Humanos e outros representantes da sociedade civil.
O relator apresentou ampla evidência de que haveria, de fato, uma participação significativa da religião na legitimação de desigualdades e discriminações. E diante da evidência reunida, Shaheed defendeu que os Estados devem encontrar meios de garantir tanto a liberdade de manifestar a religião ou crença, quanto “a proteção da igualdade e a não discriminação de todas as pessoas”.
Trata-se de uma questão similar à que motivou o “Processo de Istanbul”: como correlacionar a liberdade de religião ou crença e, particularmente, de expressar a religião por meio de culto, e a liberdade de expressão?
Em minha opinião, a Resolução 16/18 e o Plano de Ação de Rabat apresentaram uma excelente solução ao dilema, eliminando a linguagem problemática do “combate à difamação da religião”. A questão, agora, seria de como lidar com a sobreposição entre as demandas da liberdade religiosa e da igualdade entre as pessoas. Teria Shaheed uma resposta?
UMA LISTA CHEIA DE “JABUTIS”
Quando o relatório começa a especificar os casos de “discriminação”, começam os problemas. Sob o cabeçalho “Violência e discriminação resultante de leis de estado e políticas baseadas em “justificativas” religiosas”, encontramos entre casos legítimos, como diminuição de status pessoal ou legislações de família que enfraquecem ou invisibilizam a mulher, ou que criminalizam o comportamento homossexual, ou que permitem pena de morte em caso de adultério, dois terríveis jabutis: a negação do casamento igualitário, a pessoas homoafetivas, e do acesso a direitos sexuais e reprodutivos:
“Nas consultas realizadas na América Latina, foi afirmado que editos religiosos discriminatórios informam leis e políticas que restringem direitos sexuais e reprodutivos na região, incluindo-se, mas não apenas, banimentos parciais ou totais de acesso ao aborto e à contracepção, proibições a tecnologias de reprodução assistida e de cirurgia de redesignação de gênero, e limites à provisão de educação sexual baseada em evidências.”
Há, como sabemos, um mundo de debates sobre aspectos morais de cada um desses itens, acima; debates que não existem, no caso de apedrejamento de adúlteros, por exemplo. Mas esses debates são solenemente ignorados como se as objeções nos temas citados, por terem suporte religioso, não passassem de bloqueios religiosos arbitrários ao “progresso” da igualdade e da não-discriminação. O texto chega a citar depreciativamente a exigência de “proteger igualmente a vida da mulher e do nascituro desde a concepção.”
Em seguida o relator passa à violência e discriminação “por atores privados com motivações religiosas.” Dessa vez, o alvo são instituições religiosas que promovem ou perpetuam interpretações de crenças religiosas de modo a promover violência e discriminação de gênero “contra mulheres, meninas e pessoas LGBT+”, incluindo danos físicos, sexuais e psicológicos. O aspecto “emocional” é de grande importância aqui, e merecerá reflexões no futuro:
“O Relator Especial está profundamente preocupado com numerosos relatórios que recebeu e por informações proporcionadas por outros mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas, alegando que grupos de interesse religiosos estão engajados em campanhas caracterizando defensores de direitos humanos que trabalham para combater discriminações baseadas em gênero como atores “imorais”, buscando solapar a sociedade por esposar uma “ideologia de gênero” que é danosa a crianças, famílias, tradição e religião.”
Essa observação é aplicada especificamente à Polônia, mas se aplicaria também a outros países associados ao enfraquecimento da educação sexual e reprodutiva, como Brasil, Chile, Colombo, Equador, Paraguai (na América Latina), aos EUA e a vários outros. A “boa notícia” seria que muitos grupos religiosos, nos mesmos lugares, defendem os direitos de gênero e abraçam o movimento LGBT+.
A citação não deixa de ser algo irônica; a resistência religiosa à cultura W.E.I.R.D., que claramente domina os atores mais importantes do movimento internacional de Direitos Humanos, aparece apenas como força negativa, e nenhum gesto é realizado para tentar compreendê-la. Temo, no entanto, que ela esteja fundamentalmente correta: há, sim, muitos defensores de direitos humanos engajados com a promoção da “ideologia de gênero”, com a desconstrução da religião e com a reengenharia moral da sociedade. A citação de Shaheed é, em minha opinião, uma confissão de culpa.
E assim, o Relator cita, entre violências terríveis como assassinatos pela “honra”, casamentos forçados, mutilação genital de meninas, e não tão terríveis como as “terapias de conversão”, nada menos que... a objeção de consciência por pessoas e instituições contra a prática de aborto, por motivos religiosos.
Nesse ponto o que já estava ruim começa a se tornar realmente horrendo. O instituto da objeção de consciência passa a ser debatido e relativizado por Shaheed sob o argumento absolutamente pragmático e utilitarista de que, no caso de a maior parte dos profissionais e instituições religiosas o invocarem, tal implicará na efetiva indisponibilidade de acesso ao “aborto legal” – e, por extensão, a outros serviços, como a redesignação de gênero. Esse seria um exemplo de excepcionalização a medidas antidiscriminação que acomodam liberdade de religião e consciência a leis progressistas, de um modo que o “progresso” acaba não acontecendo – ou seja, os tais direitos reprodutivos e sexuais não decolam. A solução seria, então, o Estado restringir e suspender o direito à objeção de consciência. Em outros termos: se não estamos ganhando, mudem-se as regras do jogo!
Entre muitas declarações problemáticas, penso que, nesse momento, o Relator para a liberdade de religião ou crença desceu a um nível terrivelmente baixo.
INTERFERINDO NAS COMUNIDADES RELIGIOSAS
Mas é sempre possível piorar um pouco mais. Entre as reclamações ouvidas pelo Relator, estaria a de que mulheres e pessoas LGBT+ “seriam limitadas em suas oportunidades de contribuir para o conteúdo de sua religião ou crença”, sofrendo violência ou discriminação ao tentar fazê-lo. Essa limitação seria “um sério desafio ao avanço global da igualdade”. Seria o caso, então, de limitar as religiões! Ele cita o fato de que o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais já teria negado a instituições dirigidas por igrejas a discriminação contra empregados não eclesiásticos com base em crença religiosa, orientação sexual e identidade de gênero, e “reitera que a liberdade de religião ou crença pertence a indivíduos, não a religiões...”. A essa altura fica bem claro que, na opinião de Shaheed, Estados poderiam intervir nas religiões para ajustá-las às suas normas de gênero:
“... o princípio da autonomia institucional não se estende à deferência pelo Estado a normas danosas de discriminação de gênero. Nem obriga os Estados a deixar de intervir para prevenção de práticas danosas por conta de tais práticas serem informadas por um “ethos religioso”, incluindo atos discriminatórios cujo propósito seja a nulificação ou aleijamento do reconhecimento, desfrute ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais em igual base.”
A justificativa é que leis “religiosas” seriam, também, “políticas” e que, portanto, estereótipos de masculinidade e feminilidade e visões sobre sexualidade seriam inerentemente políticas, caindo sob o escopo de interesse de feministas e defensores de direitos de gênero.
Assim, para a liberdade de religião ou crença de mulheres, meninas e pessoas LGBT+ se efetivar, seria necessário garantir sua aceitação, em termos iguais, dentro de suas religiões de origem. Alegações de que elas poderiam mudar de religião seriam inválidas, uma vez que a religião é necessária para a vida comunitária e a identidade. Na prática, não seria possível a elas deixar sua comunidade de fé. Incrivelmente, portanto, a solução seria obrigar suas comunidades religiosas a mudarem suas crenças e adotarem o igualitarismo feminista e LGBT+! Porque, segundo ele, a lei internacional protege o direito das pessoas de participar igualmente no processo de definir a própria comunidade religiosa.
E ao apresentar um exemplo positivo de tais interferências, como não poderia deixar de ser, Shaheed aponta uma “Coalizão Religiosa para a Escolha Reprodutiva”, uma sociedade abortista. Assim o Conselho de Direitos Humanos da ONU, não apenas interfere nos Estados, mas deseja agora interferir na vida e no imaginário interno das religiões, não apenas em situações nas quais há violência de gênero, mas em qualquer situação na qual a liberdade “absoluta” do indivíduo conflita com a religião.
É impossível não observar aqui que essa compreensão sobre como a experiência, a doutrina e as estruturas de uma comunidade religiosa se erguem é surpreendentemente ahistórica e dependente de uma visão voluntarista e liberal da religiosidade. Como se ela fosse uma experiência “democrática”.
O ARGUMENTO LEGAL
Ao especificar o suporte para seu argumento no sistema legal internacional, o Relator observa que há situações nas quais a manifestação da religião ou crença pode ser restringida, e que “nenhum direito humano pode ser invocado para destruir outro direito humano. As descobertas chave desse relatório evidenciam a sobreposição entre o direito à liberdade de religião ou crença e o direito à não discriminação no contexto de gênero.”
A partir daí, Shaheed mostrará que a discriminação por motivo de gênero é proibida no sistema internacional, que regras originalmente aplicadas à discriminação por sexo se aplicam também à orientação sexual e à identidade de gênero, e a toda discriminação que nasce “de papéis socialmente construídos, comportamentos, atividades e atributos que uma dada sociedade considera apropriados para sexos diferentes.” E ainda, que embora a não-discriminação não seja um direito sem qualificações, havendo situações nas quais ele pode ser acomodado a outros direitos, esse não seria o caso para a igualdade de gênero.
Seu exemplo para tanto é, previsivelmente, como veremos mais adiante, o Canadá:
“No Canadá, acomodações quanto à manifestação da religião ou crença devem consentir com outros padrões de direitos humanos, em particular com a igualdade de gênero e o princípio da neutralidade religiosa do Estado.”
Esse é um ponto crucial do argumento jurídico. Shaheed corretamente compartilha dos princípios de universalidade, indivisibilidade, interdependência e inalienabilidade de todos os direitos humanos, e sustenta que tal concepção holística deve guiar a solução do conflito de direitos. Mas segundo ele, o direito à igualdade supera o direito de manifestar a religião ou crença:
“... o direito universal à igualdade é não-qualificado de um modo que a obrigação de promover o direito à manifestação da religião ou crença, que pode ser sujeito a limitação quando necessário, para proteger os direitos de outros, não é.”
A admissão, logo depois, de que uma colisão entre reivindicações de liberdade religiosa e de não-discriminação deve levar a uma análise proporcional, para maximizar a proteção de ambos os conjuntos de direitos, não suaviza a peremptória afirmação de uma superioridade do princípio da igualdade sobre o da liberdade. Essa afirmação, associada à afirmação da obrigação – e, assim, do direito – dos Estados de não apenas promover a igualdade de gênero no mundo público, mas no interior da própria vida religiosa, constitui claramente uma ameaça global à liberdade religiosa, vinda do seio do próprio Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Ao final, em suas considerações, o Relator propõe que reservas a tratados de direitos humanos por razões religiosas sejam suspensas, sem mais (emudecendo totalmente a religião no grande debate sobre Direitos Humanos), que os direitos reprodutivos e educação sexual “integral”, segundo o moderno discurso de gênero, sejam admitidos por todos os países, e que os Estados interfiram diretamente nas religiões para garantir os padrões de igualdade, com a ajuda da “sociedade civil” e de líderes religiosos alinhados.
E sua recomendação final ao sistema ONU é que se produza um “comentário geral sobre as interseções entre o direito à liberdade de religião ou crença e o direito à igualdade e não discriminação com base em gênero, incluindo no contexto de serviços privados” – claramente aludindo a processos judiciais nos EUA e no Canadá, como o caso Masterpiece Cakeshop versus Colorado Civil Rights Comission, e ao universo de argumentos de objeção de consciência que vem se multiplicando nos países desenvolvidos.
MOVIMENTOS NO TABULEIRO
Não vejo outra forma de descrever o péssimo trabalho do Relator Especial para equacionar esses direitos, a não ser descrevendo-o como um consumado desastre.
Em Julho de 2019 eu participei do 2º Ministerial to Advance of Religious Freedom, convocado pelo Departamento de Estado dos EUA em Washington D.C., juntamente com antigo Secretário Nacional de Proteção Global, Sérgio Queiroz; e entre os diversos encontros importantes, coube-nos a participação em uma reunião fechada, na Embaixada do Canadá em Washington, com diplomatas de um grupo de países – EUA, Reino Unido, Alemanha, Itália, França, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Holanda, Chile, Egito, se não me engano, e mais alguns.
O tema central? Exatamente o mesmo tratado por Ahmed Shaheed: o incômodo de diversos países desenvolvidos com o avanço global da defesa da liberdade de religião ou crença, e a crescente consciência da ameaça global das perseguições religiosas, especialmente contra Cristãos, e do aumento das restrições estatais contra religiões, segundo vinha sendo reportado por institutos como a PEW Research. Após a exposição inicial, vários países se manifestaram para reclamar do risco que isso representava para os direitos reprodutivos das mulheres, e para o movimento LGBT+.
Sim, é isso mesmo que você leu: esses países se mostraram preocupados com o avanço da liberdade religiosa. E, não por acaso, o evento foi hospedado na embaixada do Canadá, uma das principais fontes do discurso atual do UNHRC, e dirigido por um político canadense que é, também, um pastor protestante e um homossexual casado, segundo as leis do país.
Em sua participação na conversa, o Secretário Sérgio lembrou-se de observar que, no Reino Unido, o Dr. John Finnis, renomado teórico da lei natural e defensor do casamento tradicional, fora recentemente punido pela Universidade de Oxford por se opor ao pensamento e gênero. Iriam esses países garantir a liberdade de pensamento e expressão, diante da expansão do feminismo e do movimento de gênero? Não tivemos resposta.
O fato é que a ONU se sentia cada vez mais pressionada a admitir o problema da perseguição religiosa e do sofrimento dos Cristãos, em particular. A pressão cresceu com o primeiro “Ministerial” em Washington (2018), reunindo pessoas de mais de cem países e muitas religiões, e com o Relatório do Bispo de Truro, no princípio de 2019, provando que o Cristianismo seria a religião mais perseguida do mundo. Eventualmente, a ONU cedeu e “juntou-se” ao movimento, com a Resolução 40/10, em Março do ano passado.
Mas a pressão da Ideologia dos Direitos Humanos, que domina o Sistema ONU, não deixaria de atuar. Shaheed detém o cargo de relator especial de religião ou crença desde 2016, e não foi a sua influência pessoal o que forçou o tema da perseguição ao Cristianismo. A ideologia dominante, acuada por um momento, já estava se articulando desde o segundo “Ministerial”, como pudemos constatar, e eventualmente mostrou os dentes. E a recondução de Shaheed ao cargo, em março do presente ano, para outro mandato, mostra com clareza o pathos do atual Conselho de Direitos Humanos.
Mas voltando ao argumento de Shaheed, penso ser interessante deixar alguns apontamentos.
DA IGUALDADE ENTRE LIBERDADE E IGUALDADE
Em primeiro lugar, algo deve ser dito sobre a questão da relação entre igualdade e liberdade de religião ou crença. O Relator alega que a “manifestação” de religião ou crença seria secundária em relação à liberdade religiosa pessoal, sendo que, por conseguinte, a igualdade de gênero prevaleceria sobre qualquer prática religiosa pessoal ou coletiva baseada em religião. Afastando-se da abordagem de seu antecessor no UNHRC, o Dr. Heiner Bielefeldt, Shaheed praticamente derrete a liberdade de religião ou crença para levantar em seu lugar o bezerro de ouro da teoria de gênero.
É preciso observar, aqui, que tal distinção entre a religiosidade pessoal e a manifestação da religião é apenas teórica e abstrata, sendo que o problema efetivo da liberdade religiosa consiste, inescapavelmente, no problema da expressão da religião. Não há como o expediente retórico adotado por Shaheed funcionar aqui: ou a liberdade religiosa é a liberdade de expressar a religião, ou não existe.
E isso nos leva ao verdadeiro problema de fundo: como equacionar igualdades e liberdades? Tal não poderá ser feito sem admitirmos que ambas são mutualmente qualificáveis. Não se pode tratar a igualdade como não-qualificável, mas ao mesmo tempo tratar uma das liberdades mais fundamentais, historicamente e axiomaticamente, como a liberdade de religião ou crença, como algo facilmente qualificável. Direitos de igualdade de gênero não se sobrepõe ao direito da liberdade de religião ou crença.
O que o relator não admite, aparentemente, é que a manutenção das liberdades possa significar uma limitação das igualdades. Isso certamente tem relação com o fato de que, ultimamente, a defesa dos chamados “direitos sociais, econômicos e culturais” tem prevalecido sobre as “liberdades fundamentais”. No entanto, segundo o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, “todos os seres humanos nascem livres e iguais e dignidade e direitos. Tendo razão e consciência, tem o dever de agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” A liberdade é tão fundamental quanto a igualdade. A questão, nesse caso, seria: quando um ou outro direito deve ser limitado? Shaheed não oferece resposta convincente, e de fato não é possível responder à questão apelando apenas a definições desses princípios.
Mas penso que há uma resposta para isso no terceiro princípio: o princípio da fraternidade, o qual é acessado por meio da razão e da consciência. Isso pode ser traduzido em termos de acesso a uma ordem moral real, a qual está ligada aos limites e demandas intrínsecas à efetivação da vida social, ou da vida comunitária. Em termos bem simples: concepções e liberdade e de igualdade que rompem o tecido social, dissipam o sentido de bem comum, e ignoram relação moral de cuidado e responsabilidade entre as pessoas, a que chamamos de fraternidade, são concepções distorcidas. Nenhum ideal de igualdade ou de liberdade deveria nos colocar em combate contra a finitude e contra os limites impostos pela realidade humana, seja ela biológica, psíquica, social ou econômica.
Nesse sentido, é preciso considerar a mediação da fraternidade, para equacionar liberdade e igualdade e fundá-la na realidade humana concreta. E essa mediação se dá considerando, de um ponto de vista histórico, como a fraternidade social pode ser ampliada e aprofundada, tendo em vista cada sociedade em seu momento, e quais são os limites sociológicos e psicossociais para a expansão de liberdades e igualdades. Isso é importante para que utopias libertárias, que exageram os sonhos emancipatórios, e utopias socialistas, que desprezam a liberdade, sejam consistentemente evitadas.
Isso levaria, por exemplo, a um equilíbrio melhor entre o reconhecimento de que há um aspecto socialmente construído nos estereótipos de gênero mas que, por outro lado, as diferenças biológicas e psicobiológicas entre homem e mulher não podem ser simplesmente ignoradas, por medo de implicarem uma naturalização de desigualdades. Enquanto esse equilíbrio não é abraçado, o discurso de gênero vem se enveredando pelas perigosas águas do negacionismo científico e por utopias liberais.
Mas além do “front” do equacionamento dos três princípios, há uma segunda questão, que constitui um erro grave da ideologia dos direitos humanos: o fato de que ela não se reconhece como doutrina e crença.
DE NOVO, A IDEOLOGIA DOS DIREITOS HUMANOS
A expressão “liberdade de religião ou crença” surgiu quando, à época da “Cortina de Ferro”, os soviéticos se sentiram pouco representados no artigo 18 da DUDH. E solicitaram que, ao lado da expressão “religião”, houvesse algo como “convicção” ou “persuasão”. E assim foi introduzido o termo “crença”, que eventualmente se consagrou no campo.
Mas como o socialismo soviético era uma “crença”, embora de caráter moral e político e apenas tacitamente religiosa, as crenças do liberalismo expressivo ou identitário são, também, sistemas de crença moral e política, cuja genealogia e natureza vem sendo debatidas há muito. Já tratei do tema aqui na Gazeta antes, citando gente como Patrick Deenen em “Why Liberalism Failed” e, falando sobre identidades, lembrando Charles Taylor em “As Fontes do Self”. Tenho, também, uma palestra disponível sobre o tema: “Homo Sentimentalis e Homo Respondens”. A explanação mais detalhada de como o paradigma do liberalismo expressivo tornou-se o metadiscurso do movimento internacional de direitos humanos, hoje, encontra-se no artigo “A Ideologia dos Direitos Humanos”, aqui na Gazeta.
Diferentemente de questões graves como a mutilação genital feminina, a negação às mulheres de direitos políticos e econômicos, ou a negação de serviços públicos a homossexuais, por exemplo, é evidente que questões de comportamento sexual, de comportamento reprodutivo, de modelos de casamento, de diferenças de gênero, e de educação sexual de crianças e adolescentes, não são apenas questões de direitos humanos, mas antes de tudo, de moralidade pessoal e comunitária.
As crenças de feministas, de militantes LGBT+ e de teóricos de gênero são isso o que são – crenças morais particulares, que vem sendo universalizadas através do Sistema Internacional de Direitos Humanos de forma ideológica, e por isso não reconhecidas claramente como tais. Com sua linguagem de “direitos” e “resoluções”, pretensamente evitando debater o mérito de “moralidades” e “religiosidades”, o movimento de Direitos Humanos promove o tempo inteiro, e com paixão existencial, agendas intrinsecamente morais. Ora, o nome disso é falsa consciência. E o Relatório de Ahmed Shaheed para o UNHRC consiste, como a Santa Sé reconheceu, numa peça de colonização ideológica.
Temos, portanto, uma discrepância entre religiões tradicionais e a religião secular do liberalismo expressivo na área de moralidade sexual individual. E isso complica o debate sobre igualdade sexual e de gênero e a liberdade de religião ou crença. Porque temos dois conflitos de blocos de direitos humanos se entrecruzando: um conflito entre igualdade e liberdade, e também um conflito entre uma crença moral individualista e crenças morais sociocêntricas (Jonathan Haidt) das religiões tradicionais.
Não há a menor possibilidade de sanar ou atenuar esse conflito sem que as feministas, militantes identitários e LGBT+ reconheçam o caráter doxástico e comportamental de suas posições; a natureza credal e moral de suas agendas. Se deixarem a atual postura arrogante e dominadora no debate sobre Direitos Humanos, e sentarem-se à mesa no mesmo nível de todas as outras crenças, talvez seja possível construirmos uma convivência plural e tolerante.
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