Detalhe de gravura de Gustave Doré mostrando um cortiço em Londres, no fim do século 19.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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Se assumirmos a realidade do papel humano na corrente crise ambiental, e contextualizarmos a modernidade na história natural do próprio planeta como a era do “Antropoceno”, o próximo passo para uma interpretação crítica da presença humana será, naturalmente, discernir a força espiritual e histórica que conduz a humanidade ao comportamento de dominação que a colocou nessa posição de tanto poder e responsabilidade. No artigo de hoje, o historiador Luiz Adriano Borges nos introduzirá ao próximo conceito fundamental para compreendermos a relação entre tecnologia e crise ambiental: a ideologia do progresso.

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O que é progresso?

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Apesar de não ser uma ideia nova, a noção de “progresso” científico e tecnológico encontrou plena justificação e legitimação nas mãos dos positivistas científicos; apenas no século 19 a fé no progresso foi definitivamente estabelecida. A Europa vivia uma época de abundância, relativa paz e intensa expansão industrial. Os efeitos da industrialização trouxeram um impacto imenso no modo de viver e a confiança de que a tecnologia resolveria todos os problemas se instalou.

Auguste Comte (1798-1857) foi um dos principais idealizadores do positivismo, e suas ideias se propagaram pelo mundo da época. Com sua confiança extremamente otimista num progresso irrefreável, ele acreditava no bem-estar generalizado e numa sociedade pacífica e solidária, tendo a ciência e a razão humana como únicas fontes de verdade. Sua célebre frase “o amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim” inspirou os republicanos brasileiros na formulação de nossa bandeira (houve algumas propostas de se incluir a palavra “amor” também no slogan, que acabou ficando de fora na formulação original).

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Em sua inovadora análise sobre a dimensão espiritual do capitalismo moderno e da ideologia do progresso (Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental), o economista holandês Bob Goudzwaard assinalou algumas bases dessa noção de progresso, que foram sendo construídas ao longo dos séculos e que culminou na concepção contemporânea. Segundo ele, construíram-se as crenças de que a autorrealização do homem seria um valor moral central, e que seria obtida por meio da interação produtiva com a natureza (a partir da Renascença); que a livre competição seria uma ordem natural, na qual o equilíbrio de mercado leva à ordem social; que cada preço seria justo quando resultante da livre competição, como procedendo da “lei natural”; que a tarefa do governo seria somente proteger direitos de propriedade e contrato; e que o significado moral das atividades humanas seria manifesto por sua capacidade de elevar a felicidade geral, e a crescente aquisição de bens pela humanidade seria a mais importante fonte de “utilidade” (utilitarismo moral). Essas crenças formaram uma ambiência, um imaginário moral consistente que sustentaria a ideologia do progresso.

Tanto o iluminismo quanto o positivismo procuravam se afastar do Cristianismo. Segundo Bob Goudzwaard, a raiz dessa antipatia não seria científica, mas espiritual; o ideal de progresso seria uma fé e uma esperança religiosa

Mas foi o projeto positivista que consolidou os pilares do ideal de progresso por meio de duas ideias base, que incorporaram todo o imaginário moral acima: 1. a ciência emancipará a humanidade e resolverá todos os problemas humanos e 2. o domínio do mundo, da natureza, libertará o ser humano de suas limitações. Note-se que tanto o iluminismo quanto o positivismo procuravam se afastar do Cristianismo. Segundo o próprio Goudzwaard, a raiz dessa antipatia não seria científica, mas espiritual; o ideal de progresso seria uma fé e uma esperança religiosa.

Seja como for, com essas premissas foi alimentado o sistema industrial europeu. Claro que não sem críticas; pensadores como Jacob Burckhardt, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Oswald Spengler encaram com ceticismo as promessas de desenvolvimento. Mas que promessas eram essas?

Entre as principais: liberalismo econômico, democracia, igualdade legal, riqueza, desenvolvimento tecnológico e científico. Entretanto, também surgia simultaneamente um lado escuro: luta pelo poder, nacionalismo e imperialismo, racismo, pobreza (pensemos nos cortiços ingleses), poluição e destruição. Apesar de a balança entre prós e contras do progresso industrial não pender totalmente para questões favoráveis, ainda assim muitos continuaram a manter fé num crescimento quase autônomo por parte da tecnologia. Os contrários eram acusados de querer frear o avanço da humanidade.

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E então, com as consequências nefastas das duas guerras mundiais, a mesa parecia ter virado; instalou-se, quando não um pessimismo, um profundo realismo. Diversos intelectuais chegaram a algumas conclusões críticas: de que teríamos atingido os limites do avanço econômico; que estaríamos estamos rapidamente esgotando os recursos naturais; que ciência e a tecnologia não podem resolver todos os problemas.

Mas a fé no progresso é uma fé persistente. Embora existam críticos vorazes da noção de progresso, ainda hoje há defensores entusiásticos. Autores como Yuval Noah Harari, que escreveu Homo deus, confiam cegamente que um futuro científico e tecnológico será um futuro brilhante. A visão de Harari está plenamente de acordo com o que Jacques Ellul define como a visão tecnicista, na qual tudo é visto pelo viés da tecnologia.

Essa visão um tanto inocente tem sido criticada duramente por escritores cristãos (ainda que não somente por eles). Em maior ou menor parte, os estudiosos cristãos, trazendo insights teológicos, colocaram em xeque as bases que justificavam o progresso; não como “neoluditas”, como contrários à tecnologia e à ciência, mas sim com uma visão crítica, responsável e prudente. Confiar que a racionalidade humana utilitarista, imbuída nessa visão de progresso, revolveria todos os nossos problemas é uma cegueira que nos levaria ao precipício.

Ainda que infelizmente pouco conhecida nos círculos acadêmicos e mesmo eclesiásticos de nosso país, há uma vasta linha de autores cristãos que trabalham com a questão do meio ambiente. Como meu foco é tentar perceber os insights da história e filosofia da tecnologia, apresentarei ao leitor dois autores que me influenciaram a formar uma crítica à essas questões. Deve ficar claro de início que muitos desses autores não trabalharam sob o conceito de Antropoceno, porque ele é de formulação recente. Ainda assim, a crítica aos efeitos danosos ao meio ambiente e uma busca por estabelecer uma mentalidade de cuidado e convivência virtuosa neste planeta é por demais valiosa.

Certamente Dietrich Bonhoeffer não foi o primeiro cristão a levantar a bandeira da crítica ao progresso e uma defesa do meio ambiente, mas suas ideias tiveram um bom impacto na teologia e em alguns estudiosos da tecnologia. Em seus escritos, ele desaprova a “era da máquina”, e proveu importantes recursos para responder eticamente a questões ambientais. Em sua obra Ética, com uma robusta antropologia, Bonhoeffer apontou a conexão da humanidade com o ambiente natural, enfatizando a necessidade da fisicalidade humana e a responsabilidade ética para com o outro, que parece ser extensível também à ordem natural. Para ele, devemos estar ligados à natureza como servos, e não como senhores livres para explorar a terra por prazer desenfreado. Mas o progresso da sociedade industrial se mostrou um fracasso, com os seres humanos falhando em administrar bem a criação. Ainda assim, os seres humanos não devem ser retirados do universo natural, mas buscar se situar melhor dentro da matriz de relações entrelaçadas do mundo natural.

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Confiar que a racionalidade humana utilitarista, imbuída nessa visão de progresso, revolveria todos os nossos problemas é uma cegueira que nos levaria ao precipício

Um segundo escritor que quero apontar como formador crítico à ideologia do progresso, ainda na primeira metade do século 20, é C. S. Lewis. No próximo texto apresentarei outros autores mais contemporâneos, e aqui também poderia ser incluído J. R. R. Tolkien, mas, por economia de espaço, deixamo-lo para outro momento. Apesar de ser mais conhecido como escritor e professor de Literatura, Lewis produziu muitos textos filosóficos. O mais conhecido deles talvez seja A abolição do homem. Publicado em 1943, enquanto a Segunda Guerra Mundial estava caminhando para seu fim desastroso, com seu enorme rastro de destruição, Lewis lança um duro veredicto contra a mentalidade por trás do progresso: “O que chamamos de poder do Homem sobre a Natureza revela-se como o poder exercido por algumas pessoas sobre as outras, tendo a Natureza por seu instrumento”. Não se trata de um desenvolvimento altruísta e liberal, enfim; o intuito é controle.

Também no ensaio “O progresso é possível? Escravos voluntários do Estado de bem-estar social”, de 1958, Lewis argumentou que os traumáticos fenômenos sociais e culturais experimentados no século 20 – tais como a bomba de Hiroshima, o sistema de gulag russo sob Stalin, a tirania da Gestapo sob o regime nazista – se tornaram possíveis graças a dois fatores: tecnologia e estruturas políticas. Usou-se a tecnologia em prol de uma visão de desenvolvimento, mas desconsiderando os seres humanos; estes eram somente empecilhos no caminho triunfante da técnica. Assim, argumenta Lewis, a humanidade deveria acordar do sonho do progresso. A visão de Lewis sobre progresso e meio ambiente, dispersa de várias formas em todas as suas obras, influenciou muitos debates sobre o tema e se tornou um importante ponto de partida para a visão de tecnologia cristã que eu mesmo tenho desenvolvido. A contribuição desses grandes pensadores é salutar para uma resposta cristã ao desafio do Antropoceno.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]