“Jesus não comissiona igrejas para empunharem a espada e desafiarem diretamente os governos, mas ele com certeza comissiona igrejas para desafiarem os ídolos e falsos deuses que sustentam todos os governos e mercados, sejam os deuses do Império Romano ou os deuses do Ocidente secular.” (Jonathan Leeman, As Chaves do Reino)
A ascensão dos evangélicos e de um renovado movimento católico conservador à posição de influência cultural e política que hoje testemunhamos trouxe grande confusão às fileiras laicistas brasileiras, acostumadas até há pouco tempo com uma hegemonia quase incontestada – muito embora, a despeito da presente contestação, elas sigam hegemônicas. No entanto, a desordem não é só do lado de “lá”. Falando sobre o campo evangélico, posso testemunhar que por aqui reina o caos e a desorientação. Há boas propostas, mas muito ruído e becos sem saída; e a confusão não é recente, não; vem de longe.
Uma obra recentemente publicada pela editora Vida Nova pretende botar ordem na casa, ao menos no tocante ao ambiente protestante evangélico: As Chaves do Reino: a natureza política da igreja como embaixada de Cristo, de Jonathan Leeman, um respeitado teólogo e eclesiologista de origens batistas, e um dos líderes de um movimento denominado “Nove Marcas”. Segundo o teólogo, o livro foi escrito para “substituir o mapa de política e religião que muitos cristãos vêm usando desde as revoluções democráticas do século 18 por outro mais bíblico”, e também para “explicar onde a igreja local se encaixa, como instituição política ou embaixada do governo de Cristo, nesse mapa redesenhado”. Ou, como ele coloca lá pelas tantas, no livro:
“O que uma teologia política precisa é de uma delimitação clara dos âmbitos de autoridade, jurisdição e competência para cada uma das instituições das Escrituras. Que autoridade elas têm, e até onde se estende?”
Precisamos realmente de mapas novos e de localização, se quisermos construir uma relação sadia entre fé e política
A nossos leitores leigos, devo advertir que a noção de implicações políticas da religião cristã é inevitável, desde que Cristo anunciava um “reino” (um conceito completamente político), foi morto por autoridades políticas, desobedeceu a suas ordens de permanecer morto, deixando para trás um túmulo vazio, e herdou os títulos messiânicos judaicos de “Rei dos Reis” e “Kyrios” – um título aplicado aos imperadores romanos. Enfim, sei que alguns não gostam muito dessa alegada “interferência” da religião na política, mas infelizmente não há o que fazer a respeito. Noutro dia desses um pastor declarou, a certa autoridade política, que “Deus é o meu Führer”, vejam só. Esse leite já foi derramado há uns 20 séculos, e não há como botá-lo de volta na garrafa.
Mas voltando à obra de Leeman, devemos louvar suas intenções: precisamos realmente de mapas novos e de localização, se quisermos construir uma relação sadia entre fé e política. E ele nos traz algumas contribuições substanciais nessa direção. O livro traz seis capítulos, alguns extensos, sobre como entender os binômios religião e política e igreja e política. Dado o fôlego e a importância da obra, nossa coluna de hoje vai introduzir uma apresentação detalhada de seu argumento principal e uma resposta simpática, mas crítica. Os leitores me perdoem, mas lá vem outro tijolo.
Uma embaixada do futuro
Sua tese principal é a de que “a igreja local é uma espécie de embaixada, só que representa um reino de influências políticas ainda maiores para as nações e seus governantes. E essa embaixada representa um reino que está não em outro espaço geográfico, mas em outro tempo escatológico”. De um ponto de vista teológico a posição de Leeman está em linha com a compreensão mais sólida e atualizada da pesquisa bíblica e teológica; havendo sido estudante do teólogo moral britânico Oliver O’Donovan (autor do clássico Resurrection and Moral Order), Leeman adota uma compreensão da igreja baseada na fé na ressurreição de Cristo e na esperança de um mundo novo, a partir dessa ressurreição. A finalidade das igrejas cristãs, nesse sentido, seria antecipar esse mundo novo através de um modo renovado de viver. E, como nesse mundo novo, Cristo reinará sem competidores, a existência da igreja torna-se uma presença política; uma espécie de embaixada de um futuro garantido pela ressurreição.
A igreja local institucional não pertence, portanto, ao Estado, nem é meramente uma associação voluntária. Sua conexão espiritual com um futuro divino a torna um sinal de salvação e de julgamento, e relativiza imediatamente as pretensões das autoridades terrenas e temporais. Mas ela não o faz invadindo as competências do Estado; antes, em suas atividades internas de ensino, vida religiosa e disciplina ética de seus membros, usando “as chaves do reino dos céus”, dadas à Igreja pelo próprio Cristo (em Mateus 16,19-19), a igreja fornece uma demonstração da autoridade e do caráter do reino futuro. Ela “abre” e “fecha” a relação dos homens com a nova criação e o mundo vindouro.
Religião e política
Para defender sua tese, Leeman precisa reconstruir algumas categorias conceituais, despregando-as da conceituação liberal hegemônica. Precisa, particularmente, revisar as ideias de “política” e de “instituição”. Depois de expor brevemente algumas abordagens populares em teologia política, anuncia sua posição fundamentalmente agostiniana, insistindo que não existe neutralidade religiosa ou política: “tudo o que o Estado faz é espiritual ou religioso, e tudo o que a igreja faz é político, embora nenhum dos dois tenha permissão para ir além das autorizações que Deus deu a cada um”. Estado e igreja têm seus campos e autorizações distintas, mas ambas existem sob o reinado de Deus. Realmente essa alegação exige redefinições.
No primeiro capítulo Leeman revisa o conceito de “política”, distinguindo-a de usos analógicos, como “política universitária”, e restringindo-o ao sentido literal de “atividade institucional de governança sobre uma população inteira apoiada pelo poder de coerção, que com graus variados será considerado legítimo”. Uma definição de inspiração liberal, como ele admite, à qual ele propõe alguns ajustes.
Se ignorarmos essa distinção artificial de “religião privada” e “vida pública”, veremos a praça pública como o lugar de encontro e confronto de todos os deuses
O primeiro é a separação artificial entre o “político” e o “espiritual”. Segundo ele, o liberalismo concebe uma separação entre o “público” e o “privado” aprisionando a religião e a moral no mundo privado dos cidadãos, de modo a obter um consenso sobreposto na esfera pública. Em paralelo com as doutrinas liberais, desenvolveu-se no campo religioso uma tese da “espiritualidade da igreja”, que também tenta separar igreja e política em duas bolhas estanques. Leeman observa que isso parece realmente impossível; deixaria a igreja silenciosa diante de injustiças, por exemplo.
Mas o transfundo do problema é a questão da liberdade religiosa. O dualismo, seja liberal ou religioso, serve bem à função de garantir um campo “neutro” para a liberdade da consciência, no qual o Estado não poderia entrar. Esse discurso teria se desenvolvido desde Lutero, passando por John Locke e uma fileira de pensadores políticos. Para desinflar o compromisso dos cristãos com a estrutura liberal de pensamento, Leeman argumenta que a consciência não funciona, no cristianismo, como assento final de soberania, e não pode ser usada como ponto de referência para estabelecer os campos e as tarefas da igreja e do Estado.
Na verdade, alega Leeman, se ignorarmos essa distinção artificial de “religião privada” e “vida pública”, veremos a praça pública como o lugar de encontro e confronto de todos os deuses. Inclusive os deuses de armário, os deuses da moralidade liberal e secular que se travestem de princípios políticos neutros enquanto mantêm as outras visões de mundo devidamente encarceradas como “crença privada” e “consciência individual”. E, assim, o grupo que defende esses valores dissimula a sua hegemonia.
“Se tudo na vida é religioso, e algum deus ou ídolo governa cada centímetro quadrado dela, parece que na esfera pública há somente sobreposição religiosa e imposição religiosa, como foi sugerido na introdução. A esfera pública não é nada mais nem menos do que um campo de batalha dos deuses, cada um tentando mover as alavancas do poder a seu favor. Isso significa que, em certo sentido, não existem Estados realmente seculares, mas somente Estados pluralistas.”
Leeman vai longe na crítica, e chega a alegar que a formulação liberal da liberdade religiosa poderia ser a maior inimiga da liberdade religiosa, empregando a tese da separação entre o público e privado e a redução da religião à consciência para justificar a repressão das expressões públicas de fé e de culto, ao mesmo tempo em que deixa a “consciência soberana” livre de questionamento moral, “protegendo” até mesmo algumas esquisitices e perversidades éticas. Uma confusão. Na prática, em algum momento, quando há um choque de visões, os deuses fantasiados de neutralidade tiram o disfarce e são impostos sobre todos os outros.
Igreja e Estado
Mas a proposta de Leeman não é uma fusão descuidada de igreja e Estado. Seu argumento é de que religião e política não podem ser separadas; mas igreja e Estado podem e devem. Temas éticos e políticos são tanto assunto da igreja quanto do Estado; mas as instituições devem ser rigidamente separadas. E isso o leva ao argumento do segundo capítulo, sobre “O que é uma instituição”. Incorporando os insights do neoinstitucionalismo em relações internacionais e ciência política, ele define instituição como “uma estrutura de regras que moldam comportamentos”, e argumenta que a ênfase mais orgânica em “relacionamentos” e “comunidade” não precisa ser posta em contradição com a dimensão institucional da vida social.
São várias as instituições sociais; Estado, casamento, contratos, empresas, processos eleitorais, times de futebol; as instituições orientam a ação, abrem oportunidades e “moldam aspectos da nossa identidade”. Podem ser regras, organizações ou estados; são como que “tecnologias sociais”. E há instituições distintamente políticas, envolvendo unidade sob um governo único e poder de coerção, o Imperium; seus membros são súditos ou cidadãos, e o seu conjunto cria uma identidade. A instituição política determina quem cada um é, suas condições de reconhecimento e de participação. E o cidadão tem não apenas obrigações, mas também autoridade legítima para realizar certas funções, ou ofícios.
O argumento de Leeman – que ele defenderá ao longo de seu livro – é que por meio de uma série de pactos, relatados na Bíblia, Deus estabeleceu instituições temporais e ofícios, sendo o Estado uma instituição política dedicada à implementação da justiça. Ele adota o que chama de “hermenêutica institucional” perguntando, ao longo dos três capítulos seguintes, por “quem faz o quê”, ou seja, quem é autorizado a fazer o quê. Nos pactos divinos com os homens, Deus constitucionaliza e institucionaliza seu relacionamento.
Religião e política não podem ser separadas; mas igreja e Estado podem e devem. Temas éticos e políticos são tanto assunto da igreja quanto do Estado; mas as instituições devem ser rigidamente separadas
No capítulo 3, “A política da criação”, ele argumenta que Deus, sendo rei sobre a criação, autoriza a humanidade a dominar a terra recebendo uma identidade representativa. Adão tem um ofício político e sacerdotal no mundo, que constitui sua autoridade e sua tarefa. A vida social e o domínio humano no mundo deveriam representar, na terra, a sociedade divina da trindade. Em seguida, no capítulo 4, “A política da Queda”, o assunto é a necessidade de enfrentar as consequências sociais do pecado humano. E Deus o faz, por meio da aliança com Noé (de que já tratamos aqui), autorizando um “mecanismo de justiça”: o Estado. Mas, como Leeman destaca, o Estado não é autorizado a demandar e fiscalizar adoração religiosa, mas apenas lidar com o crime contra a pessoa humana. Nessa base se fundamenta, para o autor, a visão cristã da liberdade religiosa; não tanto a inviolabilidade da consciência, mas a limitação da autorização recebida pelo Estado.
Mas depois da história de Noé, temos as alianças de Abraão, de Moisés e de Davi, as chamadas “alianças especiais”. Essas alianças levam à formação da nação de Israel, o povo de Deus, como uma unidade político-religiosa e como representantes de Deus entre outros povos. Sua função? Demonstrar, diante das outras nações, o cumprimento dos ofícios estabelecidos para todos os seres humanos na Criação. A diferença nessas alianças especiais, em relação às alianças da criação e de Noé, é que essas últimas visam fornecer as condições para o cumprimento das duas primeiras. Elas visavam, assim, constituir uma “entidade política modelo”.
No penúltimo capítulo da obra, “A política da Nova Aliança”, Leeman expõe o sentido intrinsecamente religioso da ideia de “justificação pela fé” e com base na graça – que discutimos em nossa coluna anterior. Israel fracassou em se tornar a entidade política modelo porque buscou construir sua identidade e legitimação por meio de ídolos e de seus esforços autônomos, em vez de depender de Deus. Eles fracassaram em dar consentimento autêntico ao governo divino abraçando o caminho da autojustificação e autoentronização, o que acabou destruindo a unidade político-religiosa nacional. Os livros proféticos bíblicos seriam testemunhas eloquentes desse processo de degradação.
A promessa de uma “Nova Aliança”, dada por Deus por meio do Deuteronômio (Dt 29), do profeta Jeremias (Jr 31) e do profeta Ezequiel (Ez 36), seria justamente a de constituir uma nova entidade político-religiosa unificada, para “atuar como suas testemunhas deputadas para as nações”, como um povo de representantes da divindade, portadores de uma “procuração” para fazê-lo. E a chave para formar esse povo seria resolver o problema da autojustificação e autoentronização, que derrubou o antigo Israel, produzindo um consentimento genuíno e autêntico. Esse era o coração da promessa de uma “Nova Aliança”: Deus mesmo justificaria os homens perdoando seus pecados, aceitando-os e reconhecendo-os; e, além disso, derramaria sobre eles o Espírito Santo, para produzir o consentimento genuíno.
Nesse ponto a distinção escatológica que Leeman herdou de O’Donovan se mostra de grande importância. Embora rejeitando a separação artificial entre política e religião, Leeman adota a “doutrina de duas eras”, distinguindo entre a era presente e o reino vindouro de Deus, com a nova criação. Essa distinção entre presente e futuro ajuda a compreender os limites da ação da igreja em uma sociedade secular. Para Leeman, apenas o perdão e o dom do Espírito, dádivas da Nova Aliança, permitem que alguém dê consentimento voluntário ao reino vindouro e futuro de Deus. Assim, embora todos os homens estejam sob o governo de Deus, por meio dos mandatos da criação e do Estado, apenas a comunidade de Jesus, ou igreja, recebeu as condições para viver a cidadania do reino vindouro. E por isso seria errado impor sobre todos os homens o modo de vida da comunidade de Jesus:
“Qualquer sistema que fale da transformação ou renovação da nova aliança fora da comunidade da nova aliança é teologicamente ingênuo, porque não reconhece que Deus precisa operar de maneira regeneradora antes que a cura, a paz, a justiça ou a retidão verdadeiras e duradouras sejam possíveis. Além de tudo, isso é tirânico em potencial porque corre o risco de pedir o que não foi dado, como o faraó pedindo mais tijolos, mas sem fornecer a palha... uma teologia política que não traça uma linha divisória entre indivíduos que dão seu assentimento e indivíduos que não o fazem, assim como entre os aspectos da criação que permanecem ou não sob maldição, tem imposto a nova aliança em lugares em que o Espírito ainda não realizou a sua obra.”
Seria um erro qualquer tentativa das igrejas de empregar política partidária e ocupação do Estado para fazer avançar suas agendas e seu modo de vida; qualquer utopismo de uma sociedade cristã deveria ser abandonado
Assim, levar a sério o princípio das “duas eras” leva a reconhecer e distinguir entre dois tipos de vida, coexistentes, mas separadas. A “era da criação” envolve casamento, trabalho, família e Estado; “a era escatológica tem a igreja e os presbíteros ordenados”. Cada um, por assim dizer, no seu quadrado.
As implicações disso são claras; seria um erro qualquer tentativa das igrejas de empregar política partidária e ocupação do Estado para fazer avançar suas agendas e seu modo de vida; qualquer utopismo de uma sociedade cristã deveria ser abandonado. E a veia conservadora de Leeman se mostra bem evidente:
“Uma perspectiva da nova aliança reconhecerá ‘os limites da política’, pelo menos da política do Estado. Não tentará transformar o mundo por meio de espada, do voto e nem mesmo por argumentos acadêmicos. A verdadeira transformação vem por meio do Espírito e dos instrumentos da igreja, mas Deus não colocou essas ferramentas nas mãos do Estado.”
A igreja, como lugar de justiça e perdão, seria uma entidade política que pode demonstrar aos reinos deste mundo o que eles não podem fazer: perdoar e levar transformação interna ao ofensor da justiça, de modo que ele consinta com o governo divino.
As chaves do Reino
No sexto e último capítulo alcançamos o clímax da argumentação de Leeman: “A política do Reino”. Seguindo consistentemente a sua “hermenêutica institucional” e sua “doutrina das duas eras”, o autor entende que Jesus deu autorização explícita à igreja local para operar como uma comunidade política do reino vindouro e, assim, como uma embaixada, entre os homens, do futuro prometido por Deus. O ato de autorização, registrado em Mateus 16, 18 e 28, efetivamente deu à igreja local sua estrutura política essencial como embaixada escatológica.
E isso nos leva ao “poder das chaves”. Essas chaves seriam uma autoridade de ligar e desligar, que reconhece ou nega publicamente a cidadania no reino de Deus. O reconhecimento da cidadania é o reconhecimento, a uma pessoa justificada pela fé e pela graça, da vocação de representante de Deus. Como Cristo herdou e cumpriu o ofício político e sacerdotal de Adão, a comunidade de Cristo é autorizada por ele a cumprir esse ofício; e o poder das chaves determina quem foi revestido dessa autoridade para compartilhar desse ofício. A diferença fundamental, em relação à política ordinária, é que nesse novo mundo político da igreja a cidadania e a autoridade do ofício não se baseiam na autojustificação, mas no perdão e aceitação graciosa de Deus. E o fim da autojustificação esvazia, também, o desejo de autoentronização. Isso institui um novo tipo de cidadania, na qual a graça torna todos iguais e igualmente obedientes a Cristo.
Assim, a membresia na igreja local materializa a cidadania no reino de Deus; a autoridade disciplinar das igrejas locais (e aqui Leeman, como teólogo batista, fará sua defesa da visão congregacional da igreja, oposta ao episcopalismo) liga e desliga, inclui e exclui; e, além disso, disciplina e forma os seus membros, de modo que a identidade de cada membro como cidadão do reino de Deus vai sentido constituída. As chaves do reino “fornecem uma estrutura institucional para a deputação dos cidadãos do reino de Cristo” e “representam o poder de deputação. Elas estabelecem coisas em nome de Deus. São como uma procuração”.
Leeman entende que Jesus deu autorização explícita à igreja local para operar como uma comunidade política do reino vindouro e, assim, como uma embaixada, entre os homens, do futuro prometido por Deus
Leeman tem o cuidado de distinguir entre o ensino do evangelho e o uso das chaves. Ensinar o evangelho é como o trabalho do professor de Direito; usar as chaves é como o trabalho do juiz de direito. O juiz emite julgamentos, e não pareceres; desse modo, a igreja usa as chaves quando emite julgamentos sobre doutrina, sobre formação espiritual, sobre disciplina e sobre membresia; quando batiza novos cidadãos e quando autoriza seu acesso à Ceia do Senhor (ou eucaristia). E essa autoridade é, em última instância, exercida pela congregação – os oficiais da igreja são apenas representantes dela, e a ela devem prestar contas. Assim, a nova aliança de Cristo “democratiza” os ofícios de sacerdote e rei. As chaves pertencem a toda a comunidade, e não ao papa, ao bispo ou ao pastor da igreja local.
Nosso autor oferece uma série de refinamentos práticos derivados de sua perspectiva geral: as chaves teriam a função de traçar uma linha demarcatória, separando sagrado e profano; a separação entre igreja e Estado não impediria a influência religiosa na esfera pública e na política; a obra da evangelização seria a forma primária de engajamento político da igreja, enquanto embaixada do reino vindouro; o nome de Jesus não deveria ser ligado a nenhuma instituição ou posição política, e a palavra “cristão” deveria ser preservada dessas misturas.
Uma discussão particularmente interessante nesse ponto é a crítica que Leeman faz à distinção proposta por Abraham Kuyper entre “igreja institucional” e “igreja orgânica”, que ele usava para legitimar a presença cristã em campos distintos da sociedade moderna, para além da igreja local. Leeman pensa que essa linguagem leva a um predomínio da “igreja orgânica”, em assuntos públicos, e a um desprezo pela igreja local, uma vez que a prerrogativa de representante público de Cristo é da igreja local e institucional. Daí sua preferência para uma distinção entre a autoridade da igreja coletiva e a autoridade da igreja individual (cada membro individualmente). O poder das chaves pertenceria à igreja institucional, e não à igreja individual.
E finalmente, na conclusão da obra, Leeman apresenta uma discussão sobre a questão da unidade da igreja. Leeman verá essa unidade principalmente na igreja local – como congregacionalista que é –, visto que ela é que forma a unidade política visível do reino de Deus.
“O que é, então, uma igreja local? É um grupo de cristãos que se reúne com regularidade em nome de Cristo para pregar o evangelho e para confirmar e supervisionar a membresia uns dos outros em Jesus Cristo, com autoridade das chaves, por meio do batismo e da ceia do Senhor. É uma embaixada do reino de Cristo na terra, cuja vida coletiva corporifica um governo que foi importado, não de outro espaço geográfico, mas do final dos tempos.”
Consequentemente, o poder das chaves não pode ser exercido, nem acima da igreja local, para ordenar a relação entre igrejas, nem abaixo da igreja local, por seus membros isoladamente, nem em paralelo com a igreja local, no relacionamento entre cristãos de igrejas diferentes. Assim, nas igrejas locais deveria se desenhar a alternativa política cristã; só elas foram autorizadas e capacitadas pelos poderes da nova aliança para provar a justiça e a paz, e “nelas devem repousar as esperanças políticas do mundo”.
Pontas soltas
Leeman alcançou um feito extraordinário sintetizando uma proposta de teologia política organicamente ligada ao espírito da tradição evangélica batista – leitores afeitos ao tema costumam mencionar obras católico-romanas, luteranas, anglicanas, reformadas e até anabatistas, mas um bom argumento culminando com uma defesa eclesiológica congregacionalista é algo atual e inovador. Além disso, o fôlego é enorme; Leeman interage com sucesso com uma enorme gama de pensadores políticos, muito embora seu tratamento da tradição neocalvinista seja um pouco tímido – Kuyper se apresenta, mas pouco em relação à extensão de sua obra, e Herman Dooyeweerd passa ignorado.
Merece louvor especial, em meu julgamento, a sua visão sobre “as chaves do reino”, em conexão com a disciplina e as atividades internas e definidoras de uma igreja local; e a releitura dessas categorias como categorias políticas, ajudando a traçar com mais nitidez a dimensão política da igreja local. Compartilhando do seu congregacionalismo, senti-me reconfortado.
Mas alguns problemas já foram apontados por outros leitores; um deles, bastante evidente, é seu tratamento reducionista quanto à “soberania da consciência”. Ela é tratada como um dispositivo malsucedido de defesa da liberdade religiosa, como um “coringa” para proteger qualquer coisa, por um lado, e uma legitimação para a distinção artificial dos liberais entre o “privado” e o “público”. Mas parece não ocorrer a Leeman que a dignidade da pessoa humana realmente exija uma soberania da consciência, como um princípio substantivo, e não como mero dispositivo ideológico.
“Igreja individual” é um oximoro. Evidentemente não existe igreja “individual”, embora exista o “cristão individual”
Outra dificuldade é que, ao negar que propostas sociais e políticas explicitamente fundadas na fé cristã sejam levadas à arena pública, e aprovar a ideia de uma adesão circunstancial aos movimentos políticos e políticas de Estado que favorecem a agenda da igreja, ele parece, inadvertidamente, legitimar uma postura essencialmente pragmática e não principiológica. Suspendemos a defesa de princípios cristãos para argumentos de conveniência. Imagino que não seja essa a sua intenção última, mas há pistas preocupantes nessa direção.
Sua “hermenêutica institucional” também deixa muito espaço aberto. Supondo que tentemos realmente aplicar seu princípio de que instituições precisam ser explicitamente autorizadas na Bíblia para que suas correspondentes autoridades, membresias e ofícios sejam legítimos, teríamos algo relativamente claro no tocante a casamento, família e Estado. Mas o que dizer de outras formas de instituição – algumas até citadas por ele – como, digamos, uma empresa ou uma sociedade científica? É evidente que tais atividades têm uma dimensão política analógica (como é o caso do casamento e da família, também), mas não há qualquer traço disso na Bíblia. Eu seguiria David Koyzis, em We Answer to Another, em busca de uma visão mais nuançada do processo de constituição da autoridade e dos ofícios.
Mas as maiores dificuldades emergem, na minha perspectiva, quando Leeman busca traçar os limites entre a atividade da igreja local, no cumprimento de seu ofício, e a presença cristã nos diversos campos da sociedade moderna, incluindo a política. Seu propósito é evitar que a atividade cristã extra ou paraeclesiástica crie um espaço de articulação e interação cristã que se desenvolva independentemente das igrejas locais, tornando-as secundárias. Tais agências não eclesiásticas, não tendo o poder das chaves, não teriam a autoridade para representar o reino de Deus, e além disso poderiam desvincular a experiência de pertencimento e identidade cristã da disciplina formativa que é prerrogativa das igrejas locais.
A preocupação é compreensível. Com isso em mente é que Leeman rejeita a visão de Kuyper de uma igreja “orgânica”, distinta da igreja “institucional”, e expressa por meio dessas articulações coletivas de cristãos, implementando e demonstrando princípios cristãos em diversas áreas da vida, como a política, as artes, as ciências e a educação, por exemplo. Segundo Leeman, seria melhor falarmos em igreja coletiva/institucional e igreja “individual”.
Devo dizer que, apesar de reler algumas vezes o argumento, não me desvencilho da convicção de que “igreja individual” é um oximoro. Evidentemente não existe igreja “individual”, embora exista o “cristão individual”. E se houver apenas duas formas de ação cristã, a primeira como igreja institucional e a segunda como cristãos individuais, está vedada a atividade cristã coletiva, sem o poder das chaves, em campos distantes da igreja local, como as artes e a educação universitária, por exemplo. Cada cristão só poderia agir sozinho, uma vez que sua ação só poderia ser representativa do que sua igreja local o autorizou a representar, e poderia ser disciplinada por ela. Não havendo “poder das chaves” para regular a atividade conjunta de vários cristãos de igrejas diferentes, tais atividades não poderiam se alegar “cristãs”.
É claro que fui um pouco além do que Leeman tinha em mente, mas são problemas gerados pela sua posição. Embora críticas possam ser feitas à posição de Kuyper, me parece evidente que a articulação de cristãos de igrejas diferentes para a demonstração do evangelho em campos diversos da sociedade moderna é uma expressão da igreja de Cristo, ainda que tal expressão não desfrute do poder das chaves. E a noção de “igreja orgânica”, por contingente que seja, não é superada pela impossível “igreja individual” de Leeman.
A igreja local deve usar o poder das chaves para preparar e autorizar os cristãos para atuarem coletivamente “lá fora”
Mas os problemas aqui não são apenas conceituais. Consideremos o argumento de que as instituições da criação – casamento, família e Estado – não seriam âmbitos nos quais faríamos aplicações diretas de princípios pertencentes ao reino vindouro, segundo a leitura que Leeman faz do princípio das “duas eras”. Ora, essa tese é evidentemente incompatível com o ensino de Paulo sobre casamento e família, em Efésios 5 e em Colossenses 3 e 4. Aí o apóstolo projeta a ética evangélica, derivada do modelo de Cristo e cultivada nas igrejas locais, sobre a ordem familiar típica do mundo greco-romano. E nessa projeção ele reinterpreta os papéis dos membros da família usando categorias criacionais e redentivas, centradas em Cristo. Como o sabem todos os biblistas, Paulo promove a um só tempo a afirmação conservadora e a crítica transformadora dessas instituições pertencentes à “era presente”.
Embora eu me incline a concordar com Leeman sobre o sentido das chaves do reino, e a natureza essencial da igreja local como unidade política, não vejo qualquer contradição entre o exercício desse poder, pela igreja local, e a atividade coletiva e organizada de membros de várias igrejas, também em comunhão com suas próprias igrejas locais, em atividades de demonstração do reino que são moduladas por seus contextos sociais próprios, como é o caso de uma família cristã. Pelo contrário, eu diria que a igreja local deve usar o poder das chaves para preparar e autorizar os cristãos para atuarem coletivamente “lá fora”. O próprio Leeman admite que a evangelização não é o uso das chaves, embora seja uma expressão do reino. Isso pode ser estendido a outras atividades demonstrativas.
O problema parece residir na concepção de “natureza” e “graça” que subjaz à separação entre “duas eras” operada por Leeman. Suspeito que um dualismo de natureza e graça transforma a distinção de duas eras em um sistema de compartimentação, que bloqueia o poder transformador do evangelho para a cultura. Isso explicaria o que eu considero a mais surpreendente ausência na obra de Leeman: o Êxodo. Como é possível que um tratamento de teologia política seja completo sem dizer uma palavra sobre as implicações do Êxodo para a crítica da opressão política? Especialmente considerando a importância do Êxodo para a fé e a prática das igrejas negras dos EUA?
Haveria muito mais a dizer, mas precisamos concluir essa discussão já extensa. Concluo afirmando que, a despeito de minhas críticas, a obra de Jonathan Leeman é indispensável à teologia política evangélica no Brasil contemporâneo.
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