“Mais do que um sistema de governo ou uma ordem legal e política, o liberalismo visa redefinir a percepção humana de tempo. É um esforço para transformar a experiência de tempo, em particular o relacionamento entre passado, presente e futuro.” (Patrick Deenen)
Hoje é dia de São Pafúncio. O nome curioso é o aportuguesamento de Paphnutius, bispo egípcio e um dos santos confessores que suportou a tortura, sob o imperador Maximiliano, e que resistiu à heresia do arianismo, nos idos do século 4.º d.C. O homem foi importante; estava no concílio de Niceia no ano 325.
Mas quantos se lembram do sujeito? Para uma parte da população, é apenas a data do seu próprio aniversário, ou de um parente, ou do chefe (tem gente que lembra). Acima de tudo, no entanto: é a data do ataque terrorista às torres gêmeas, o amaldiçoado dia 11 de setembro de 2001.
O que faz um dia diferente de outro? Por que alguns dias pesam mal e outros têm o poder de iluminar a alma?
Sob essa legenda não temos uma data para festejar; embora seja certamente uma data para lembrar. Uma data que evoca muitos sentimentos e impressões, e força o pensamento a assuntos que ele não deseja tocar; assuntos difíceis como o terrorismo islâmico, a fragilidade da ordem internacional e a proximidade da morte pessoal.
O que faz um dia diferente de outro? Por que alguns dias pesam mal e outros têm o poder de iluminar a alma?
Das camadas do tempo
Norbert Elias realizou um importante esforço para demonstrar que o tempo não seria uma estrutura objetiva, um fato inteiramente contido pela física moderna, mas uma experiência social, uma consciência coletiva. Embora seja um exagero negar, com base em um ou outro sociologismo, que haja uma dimensão de objetividade na experiência de fluxo temporal, Elias acerta quando nota que o tempo existe, na vida social, como um sistema de “coordenação e integração” da nossa atividade coletiva.
Ou seja, para o sociólogo, o que importa é esse uso e essa formatação social do tempo, que serve então para sincronizar nossas atividades, distinguindo o que fazemos separados e o que fazemos juntos, e expressando nossas prioridades em termos de quantidades de tempo dedicadas a uma tarefa ou outra, da hierarquia de prioridades em nossas agendas, e da expectativa de compromisso coletivo.
Um passo crucial para isso se deu quando cidades e Estados antigos impuseram calendários organizados ao redor da produção agrícola e dos cultos de fertilidade que se desenvolveram ao redor deles. Todo mundo passava a viver, então, sob um tempo comunitário que, por assim dizer, “suspendia” o fluxo temporal nu, fazendo com que os tempos e ocasiões tivessem importâncias assimétricas. O tempo humano é assim: um tempo vestido de significados. Desde então, há “datas” e “datas”. Embora, nos termos de física newtoniana, as datas sejam todas iguais, algumas datas se tornaram “mais iguais do que as outras”.
Penso que a filosofia do tempo de Herman Dooyeweerd é mais rica que a de Elias, e capaz de incorporar os estudos do grande sociólogo. Para Dooyeweerd, a experiência temporal humana envolveria duração (a percepção subjetiva de passado, presente e futuro em fluxo) e ordem (os “antes” e “depois” irreversíveis em nossa experiência).
Além disso, a ordem temporal seria intrinsecamente polissêmica, feita de diversas camadas de “antes e depois”: o tempo físico, o tempo biológico, o tempo psicológico, o tempo do pensamento, o tempo da linguagem, o tempo social, o tempo estético, e assim por diante.
Noutro dia fui rudemente lembrado dessas temporalidades, enquanto tecia críticas ao comportamento errático da pinscher da família, a internacionalmente conhecida cadela Bijoux. Havendo se acidentado seriamente há algumas semanas, sobreviveu, mantendo certa saúde e latindo como nunca; mas anda descompensada. É velhinha, já com seus 12 anos. Mas, como eu dizia, ao tecer minhas justas críticas ao seu descuido com a toalete, fui lembrado por minhas filhas do devido respeito aos mais velhos. “Ela já tem mais de 70 anos caninos, pai!”
De fato. O tempo do cão não é o tempo do homem.
O que aconteceria se cada um vivesse a sua própria temporalidade? Simplesmente não haveria civilização, nem ordem social, nem solidariedade; não haveria o humano
Os tempos do tempo têm suas regras e ritmos e destinos internos, que não são iguais. E assim haveria camadas e camadas e, assim, calendários e calendários: o calendário solar ou lunar e, sobre ele, o “calendário” biológico: tempo de nascer, de pubescer, de se reproduzir, de comer e dormir, de envelhecer e de morrer. E, sobre esse tempo, o tempo psicológico e o amadurecimento de nosso sentimento e percepção da vida. E o tempo do pensamento, que também amadurece e que pode permanecer infantil; e o tempo do trabalho e da história humana, do Homo faber; e o tempo do mercado, o tempo político, e assim por diante.
Ora, se seguimos nessa direção, temos vários tempos a sincronizar. Mas para sincronizá-los todos, precisaremos chegar a certos acordos. O homem que se casa com uma mulher precisa compreender e respeitar o tempo biológico feminino. Para pensarmos juntos, precisamos harmonizar nossos fluxos de pensamento. Civilizações diferentes têm relógios diferentes.
O que aconteceria se cada um vivesse a sua própria temporalidade? Simplesmente não haveria civilização, nem ordem social, nem solidariedade; não haveria o humano.
De modo que o tempo também é uma questão moral. Como se faz um calendário justo, que respeite os tempos e, ao mesmo tempo, que nos permita compartilhar a vida?
O “Grande Tempo”
“Na era pré-moderna, o campo organizador para o tempo comum deriva daquilo que quero chamar de tempos superiores... o que fizeram os tempos superiores? Alguém poderia dizer, reuniram, montaram, reordenaram e pontuaram o tempo profano, comum. Permitam-me tomar a frente e denominar este último ‘tempo secular’.” (Charles Taylor, Uma Era Secular)
Entre a miríade de contribuições de Charles Taylor à compreensão do secularismo em sua obra Uma Era Secular, pela qual o filósofo recebeu o Prêmio Templeton, estão seus frutíferos insights sobre o tempo. Segundo ele, o tempo comum, ou “secular”, era reunido e ordenado por tempos superiores que, por assim dizer, “distorciam” o tempo profano.
Se imaginarmos o tempo profano como um plano, como um cobertor estendido na cama, os tempos superiores seriam uma espécie de topologia, criando elevações, vales, caminhos e obstáculos. É isso o que fazemos com nossos calendários, nas diversas camadas do tempo: distorcemos o fluxo do tempo, desfazemos a sua uniformidade. Se pensarmos, usando outra analogia, da física einsteiniana, os tempos superiores são como astros que deformam o espaço, alterando o curso da luz e dos objetos – no caso, alterando a percepção do tempo, o investimento de energia das pessoas, e induzindo-as a coordenar suas ações diferentemente.
Pense na força gravitacional do Natal: o mundo se curva ao redor dele. É quase um “buraco negro do bem” (especialmente para os lojistas). Ora, num sentido isso continua a acontecer. Mas no mundo pré-moderno tudo era bem mais intenso e integrado. A ponto de tempos cronologicamente separados serem experimentados como unidos. Quando os hebreus celebravam a páscoa, sentiam-se mais próximos da noite de sua saída do Egito que do próprio dia anterior. Alguns tempos eram sagrados, e se aproximavam da eternidade. É assim, ainda, que os cristãos celebram até hoje a Páscoa e a eucaristia.
Tomando empréstimo de Mircea Eliade, Taylor chama essa estrutura superior, que organizava todas as camadas de tempo e deformava o próprio tempo profano, de “o Grande Tempo”: “O Grande Tempo está, assim, atrás de nós, mas está também, de certo modo, acima de nós. É o que acontece no início, mas é também o Grande Exemplo, do qual podemos estar mais próximos ou mais distantes conforme nos movimentamos na história”.
O Grande Tempo é como as histórias de Marduk e de Gilgamesh entre os babilônicos; histórias de uma época primordial e também de heróis, que se tornam, assim, histórias sobre como o mundo funciona e como devemos viver hoje. Os hebreus tinham seu Grande Tempo, relatado no Pentateuco, especialmente até Abraão, em Gênesis 12, e depois na história do Êxodo. Para os cristãos, o Grande Tempo é uma história de revelação que culmina no Grande Exemplo, Cristo.
Os modernos têm a sua metanarrativa e o seu “Grande Tempo”: a história do progresso e da emancipação do Self. E são tão mais dominados por ela quanto mais a esquecem
O Grande Tempo é o eixo narrativo maior – que eu chamaria, com risco de evocar antipatias, de “metanarrativa” – a partir do qual todas as camadas da experiência temporal são organizadas. É uma espécie de “agenda suprema”, incorporando uma direção, um destino e um ritmo para a vida coletiva.
É daí que vêm nossos calendários. Neles há tempos santificados, especiais, que hierarquizam a ação coletiva e deformam as prioridades. Relógios e calendários não servem apenas para distinguir quantidades de tempo para a produção, mas para estabelecer prioridades e coordenar existências. São artefatos morais. E as prioridades neles implícitas eram, para os antigos, estabelecidas de modo consistente com a sua jornada em direção à Eternidade, exemplificada pelo Grande Exemplo, ocorrido no Grande Tempo.
É certo que os modernos têm a sua metanarrativa e o seu “Grande Tempo”: a história do progresso e da emancipação do Self. E são tão mais dominados por ela quanto mais a esquecem.
Hora de lembrar.
O grande expurgo
“A ‘secularização’ moderna pode ser vista a partir de certo ângulo como a rejeição dos tempos superiores e a postulação do tempo como essencialmente profano. Acontecimentos agora existem apenas nesta única dimensão, na qual eles se mantêm numa distância temporal maior e menor e em relações de causalidade com outros acontecimentos do mesmo tipo... a passagem para o que chamo de ‘secularidade’ está obviamente relacionada a essa consciência de tempo radicalmente expurgada.” (Charles Taylor, Uma Era Secular)
Então foi isso o que aconteceu: um grande expurgo.
O giro antropocêntrico e prometeico da modernidade levou à ruptura com a noção de um cosmos ordenado, ou de uma Cosmópolis (Stephen Toulmin), com uma estrutura moral objetiva e externa à consciência.
O mundo dos antigos era assim: hierarquizado e organizado ao redor de bens espirituais, vistos como realidades naturais ou divinas. Não era uma tela branca. Certo e errado estavam na ordem da realidade, não do gosto ou da cultura. O tempo era uma estrada com direção certa, sentidos, limites, paradas e um destino, e o significado não era uma projeção de símbolos e valores humanos em uma tela branca.
A longa jornada da modernidade transmutou a realidade externa nessa tela branca, sem voz, nem imagens nem sentidos para além da mente humana. Pelo contrário, nós é que projetamos no mundo o nosso entendimento, nossas categorias, nossos valores e sonhos. Por nós mesmos inventados. Deus não existe; nós o projetamos na tela do tempo. O sentido da vida é um eco da nossa própria voz.
O tempo segue como uma forma de coordenar e unificar nossas ações. Mas o que fazemos agora reflete outras prioridades
O assunto é amplíssimo, mas o que nos interessa, aqui, é como isso alterou a experiência temporal. Charles Taylor chama a atenção para esse fato de que, em não havendo eternidade, os tempos superiores são eliminados. O que ocorre, então, com a topografia do tempo? Ela perde sua sustentação superior. É como uma terraplanagem moral, com “vales sendo exaltados” e “montes sendo aplainados”, preparando o caminho de um novo messias.
O tempo é, então, radicalmente democratizado. Converte-se uma coleção homogênea de períodos e ocasiões qualitativamente indistinguíveis, exceto com referência à vontade humana. E então, ocorre o que se dá em qualquer democracia em processo de degradação: a data importante é a data estabelecida por quem manda, por razões inteiramente pragmáticas.
O nosso cosmo era, antes, uma ordem humanamente significativa, um lar para a vida comunitária. Mas, esvaziado de sentidos superiores, torna-se uma espécie de invasão clandestina. Debaixo dos viadutos do mundo, faremos o melhor possível para sobreviver, sabendo que nenhum lugar foi preparado para nós.
O que resulta desse expurgo? O tempo, que nada mais tem de sagrado, torna-se matéria prima para o trabalho humano. O ideal de progresso, em associação com o capitalismo, transformará o tempo em commodity e madeirame de construção. Ele deverá ser retalhado, medido e reordenado de modo a cumprir os novos humanos, completamente terrenos e prosaicos.
O tempo segue como uma forma de coordenar e unificar nossas ações. Mas o que fazemos agora reflete outras prioridades. Não se trata mais de compreender e sincronizar-se com um ritmo divino em uma jornada cósmica, mas de administrar quantidades de tempo para realizar as nossas próprias tarefas; as tarefas exigidas pelo sistema moderno – em última análise, as tarefas impostas pela ordem política e econômica. Pois tudo gira em torno de votar e consumir.
A antiga topologia temporal foi arrasada para levantar, no lugar, outra topologia. Outro calendário, com outras prioridades, e outros destinos
Noutro dia descrevi esse processo com uma analogia da ficção científica. É comum nesse gênero que invasores alienígenas precisem alterar o clima, o campo magnético e a atmosfera terrestre de forma a torná-la habitável para eles. Destruindo a raça humana, naturalmente. É a chamada terraformação, que está na agenda e no sonho de cientistas para Marte. Poderíamos um dia terraformar o planeta vermelho?
Mas voltemos ao ponto da analogia: a mudança dos calendários e do tempo é a terraformação moderna. Ou, poderíamos dizer, a cronoformação. O tempo precisa ser contado diferente, ter outros nós, outra topologia. Novos bens absolutos significam novas prioridades, novas agendas, nova narração da história, novos calendários, nova experiência temporal.
E, como João Batista preparou o caminho do Senhor, elevando vales e aplainando montes, a Revolução Francesa erigiu um novo calendário, com outros “dias santos”, e tentando até mesmo modificar a duração da semana. Pois um outro messias se aproximava, e a topologia do tempo deveria ser modificada em nome dele: o Self moderno. Sim, o Leviatã e o Mercado, concedo; mas, como todos sabemos, eles se tornaram pajens do Self moderno, na grande narrativa do Liberalismo Terapêutico.
Nesse sentido, o grande expurgo não criou, de fato, um descampado, ou um plano uniforme. Pelo contrário, a antiga topologia temporal foi arrasada para levantar, no lugar, outra topologia. Outro calendário, com outras prioridades, e outros destinos.
Os modernos não têm mais um “Grande Tempo”. Mas o que sustenta, então, a inexorabilidade de seu movimento para a frente? Em parte, capital emprestado, ou roubado do cristianismo; e, em parte, uma “Grande Ideologia”.
A Grande Ideologia
Nosso artigo foi aberto, hoje, com uma citação de Patrick Deenen, autor cuja crítica do liberalismo eu considero incontornável. Deenen enxerga na ideologia algo mais do que uma doutrina política; seria uma forma de espiritualidade, um ethos. E, no coração, o liberalismo seria um grande esforço de modificação de nossa percepção temporal.
A raiz de tudo estaria na concepção de liberdade e da ação humana. Rejeitando-se a ideia clássica e cristã de liberdade como virtude e expressão consistente do caráter, substituída por uma concepção voluntarista de liberdade como mero arbítrio e ausência de limitações, segue-se necessariamente o desejo de refundar a ordem humana para a máxima emancipação e a máxima racionalidade. Os andrajos do passado, da tradição, das certezas herdadas, das instituições comuns devem ser queimados. Incluindo os velhos calendários.
Mas o projeto de refundar a ordem social por meio de um contrato, caracterizando o modo de vida anterior a essa ação humana coletiva como um “estado de natureza”, introduz um tipo de “presentismo”. Uma sociedade em contínuo progresso pode também ser vivida como uma sociedade em contínua ruptura com o dia de ontem.
A ascensão desse ideal de progresso, como descrita por Bob Goudzwaard em Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental, é animada por uma espécie de fé, uma versão naturalizada da escatologia cristã, com um paraíso secular à sua frente, que dá legitimidade moral a uma revolução contínua. E, com a emergência do capitalismo moderno de consumo, esse processo se agravou terrivelmente, criando o fenômeno da obsolescência. A obsolescência é a fronteira móvel, sempre ao nosso encalço, engolindo o passado e nos separando moralmente dele.
A perda do sentido de continuidade, das narrativas, da memória e dos calendários comuns atomiza a sociedade e enfraquece sua capacidade de agir em comum
Assim, a grande ideologia aguça a hostilidade com o passado, tornando o próprio presente desprezível diante do futuro que se avizinha e que colocará o que somos hoje na lata de lixo da história; “cada geração deve viver por si mesma”. Uma indiferença em relação ao passado e ao futuro tende a crescer, com uma ênfase cada vez maior no aqui e agora.
Deenen vai encontrar em Alexis de Tocqueville um preanúncio dessas coisas: “Alexis de Tocqueville notou a conexão entre a emergência das ordens liberais e a experiência de tempo fraturado. Ele observou que a democracia liberal seria marcada acima de tudo por uma tendência para o presentismo. Em seu igualitarismo e especialmente em sua rejeição da aristocracia, seria suspeitosa do passado e do futuro, encorajando no lugar um tipo de individualismo atrofiado. ‘A aristocracia’, escreveu Tocqueville, ‘liga a todos, do camponês ao rei, em uma longa sequência. A democracia quebra a sequência e libera as conexões... Assim, não apenas a democracia faz os homens se esquecerem de seus ancestrais, mas também anuvia a sua visão dos descendentes e os isola de seus contemporâneos. Cada homem é para sempre lançado sobre si mesmo e há um perigo de que ele seja trancado na solidão de seu próprio coração”.
Não é preciso render louvores às antigas aristocracias para reconhecer a perspicácia de Tocqueville; a perda do sentido de continuidade, das narrativas, da memória e dos calendários comuns atomiza a sociedade e enfraquece sua capacidade de agir em comum. O método da contínua obsolescência nos rouba o passado e nos faz ser sempre crianças que nasceram ontem. Ou hoje.
É por isso – como clamam os conservadores – que a democracia não pode salvar a si mesma. Se seus membros não compartilham de um universo comum e, como alego, de um tempo unificado, não há como coordenar a ação coletiva. Quando dissolvemos as instituições que formam o pano de fundo de nossos gestos coletivos (Arnold Gehlen), paralisamos a atividade social. As pessoas podem seguir agindo, mas não estão mais fazendo a mesma coisa, juntas. Isso pode ser bom, eventualmente; mas uma sociedade que tenha a desinstitucionalização como método, ou ethos, não pode caminhar. A não ser que a sua unidade seja garantida pela força e pelo desejo.
Ora, essa é a solução moderna: não temos mais tecido social; temos força bruta e concupiscência, Estado e Mercado, voto e consumo. Essa gaiola-de-ferro garante certa coesão no caminhão-sem-freios do progresso, mas não nos dá uma experiência integrada de temporalidade. O indivíduo médio não tem passado nem futuro, e vive em acentuada alienação comunitária, pois não segue, no coração, o mesmo calendário, e os ritos, os tempos e prioridades de seu vizinho.
Essa alienação, por sinal, é a piscina de pesca dos neopopulismos, como já escrevi antes nessa coluna.
O individuo alienado é o indivíduo atomizado: deixa de pensar coletivamente, e de se preocupar com instituições que nos unem em projetos comunitários e duráveis. Passa a pensar em si mesmo e em objetivos curtos e imediatos. O tempo se fragmentou; perde-se o sentido de um destino comum.
O tempo fraturado
O ideal emancipatório moderno se mostra, então, uma força anticultural. Embora celebre culturas e multiculturalismos, não admite uma regra comum que não seja a regra do sistema voto-consumo, e coloca cada indivíduo em permanente guerra contra instituições unificadoras e valores comunitários. Essa guerra o separa do passado e do futuro comum.
E terminamos com o tempo fraturado, no qual o passado é visto com ingratidão, e o futuro tratado com irresponsabilidade. A anticultura liberal seria, então, uma negação da temporalidade:
“A cultura é a prática da plena temporalidade, uma instituição que conecta o presente ao passado e ao futuro. Como os gregos compreenderam a mãe da cultura – uma das nove musas – era Mnemosyne, cujo nome significa ‘memória’. A cultura nos educa sobre nossos débitos geracionais e nossas obrigações. No seu melhor, é uma herança tangível do passado... Em si mesma, é uma educação na plena dimensão da temporalidade humana, com a intenção de conter nossa tentação de viver apenas no presente, com as disposições associadas da ingratidão e da irresponsabilidade que tal estreitamento da temporalidade encoraja.” O diagnóstico de Deenen, aqui, faz todo sentido. A cultura nos conecta ao passado e ao futuro, nos fazendo jurar a nossos pais e a nossos filhos. O liberalismo, esse ideal emancipatório moderno centrado no Self, atomiza a sociedade, dissolve o tecido social e quebra a unidade da experiência temporal. Resta esse sujeito hedonista, ingrato e irresponsável.
O indivíduo médio não tem passado nem futuro, e vive em acentuada alienação comunitária, pois não segue, no coração, o mesmo calendário, e os ritos, os tempos e prioridades de seu vizinho
Eu iria mais longe; essa mentalidade não apenas rompe a experiência de duração, a síntese de passado, presente e futuro, mas a integração das várias camadas da experiência temporal descritas por Herman Dooyeweerd. E a nova topologia temporal que se levanta não se parece com nada natural; é como acontece em certos lugares nas Minas Gerais; no lugar dos morros suaves do mar-de-minas, as fraturas inóspitas e desoladas da mineração.
Cristo e o tempo
Leitores assíduos sabem que em algum momento eu aterrissaria em terreno cristão. De fato, sou absolutamente cético sobre a capacidade da modernidade secular de nos oferecer qualquer coisa além da gaiola-de-ferro-Estado-Mercado para reconciliar, coordenar e harmonizar a nossa vida comum.
E a razão é clara como o dia: o tempo, como destacamos no início, é uma realidade ética, e nossos bens superiores necessariamente organizarão nossas agendas, calendários e ritos em todas as camadas da experiência temporal, atingindo até mesmo a nossa administração do tempo biológico.
A vocação cristã é viver o tempo da Salvação, contra todos os tempos, e em qualquer tempo
Mas uma concepção e paradigma do humano fechada para ordens superiores e comprometida com a eudemonística afetiva e terapêutica moderna; que não honra o passado, nem o sacrifício, nem nada que desafie a felicidade e o bem-estar do Self; que substitui a religião pela autoajuda ou pela revolução; que despreza a virtude e louva o estetismo, evidentemente não dispõe de recursos para manter um tecido social, exceto aqueles roubados do cristianismo. Não se trata de mera má vontade deste ministro religioso; o fato é que o secularismo não tem recursos para unificar o tempo.
Isso só pode ser feito pela aproximação da eternidade, por meio de um Grande Tempo e um Grande Exemplo. Sem um sumo bem amplo o suficiente para estruturar todos os níveis de temporalidade e de coordenação da ação humana, a fratura seguirá incurável.
É verdade que não há condições, hoje, para uma unificação civilizacional ao redor de Cristo; mas nem por isso os cristãos deverão submeter seu calendário aos termos da gaiola-de-ferro. A imitação de Cristo, momento após momento, como dizia Francis Schaeffer, pode nos aproximar do evento pascal e alterar a topografia do nosso tempo; e se o fazemos em conjunto, como comunidade e igreja, podemos deformar o plano da história, como um testemunho de coisas que virão. Essa é a vocação cristã: viver o tempo da Salvação, contra todos os tempos, e em qualquer tempo.
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