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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

A morte solitária dos modernos

(Foto: Olle August/Pixabay)

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Não gosto de ser pessimista sobre o processo histórico. Tenho pavor daquela imagem do velho ranzinza resmungando contrariedades, e esse espírito anda se encarnando tão bem em algumas figuras que caricaturá-lo tornou-se quase desnecessário.

Apologias realizadas, passo agora a resmungar minhas contrariedades: um mundo narcisista não tem futuro. Não deveria ter mesmo, mas, além disso, acho que não pode; é insustentável.

Aqueles de nós interessados em exercícios de análise cultural certamente já se depararam com análises dessa megatendência em nossa cultura moderna, de uma introversão espiritual generalizada. O indivíduo contemporâneo tirou Deus do centro do universo e se pôs no lugar. Isso vem acontecendo desde o Renascimento, como todos sabem – quem não ouviu no ensino médio sobre o teocentrismo sendo substituído pelo antropocentrismo, e de como isso foi uma coisa boa, pois nos livrou das opressões monárquicas e clericais, etecetera, etecetera, etecetera?

Um mundo narcisista não tem futuro. Não deveria ter mesmo, mas, além disso, acho que não pode; é insustentável

Mas os modernos não contavam com esse fato, agora tornado ridiculamente óbvio, de que o que tomou o lugar de “centro do universo” não foi um paradigma elevado do ser humano, um idealizado Davi-de-Michelângelo moral e espiritual, um Übermensch pós-moderno, mas meramente o Self na forma mais individualizada e trivial possível: eu mesmo, euzinho. Nosso humanismo degenerou em neurose narcísica, em uma cultura centrada na busca de autorrealização pessoal – e, paralelamente, nas doenças emocionais, patologias sociais e todas as mesquinharias que essa busca costuma alimentar.

Minhas observações, aqui, concordam substancialmente com um campo de estudos ainda significativamente negligenciado no Brasil, a psicologia crítica. Esse campo procura investigar a função da psicologia, do ponto de vista profissional, e também da psicologia moderna enquanto ideologia, na manutenção do atual sistema cultural moderno de trabalho e consumo.

Um dos grandes nomes desse campo é Ole Madsen, professor na Universidade de Oslo. Em seu livro The Therapeutic Turn: How Psychology Altered Western Culture (“A Virada Terapêutica: Como a Psicologia Alterou a Cultura Ocidental”, de 2014, sem tradução), ele estende as discussões de Philip Rieff sobre a revolução terapêutica do século 20, que tornou a busca do bem-estar individual o valor máximo na sociedade moderna. Com a grave consequência de que a preservação e o melhoramento dessa sociedade e dessa civilização caiu para o segundo plano. Para essa cultura terapêutica, também chamada às vezes de “liberalismo expressivo”, civilização boa é a que me torna feliz. E, se ela atrapalha a minha felicidade, podemos desmantelá-la. Afinal, “é proibido proibir”.

O caso é que, em vez de realmente revolucionar a civilização, o que a cultura terapêutica faz é desmanchar as estruturas éticas e comunitárias da vida comum, como a moralidade sexual, o casamento, a família e a religião, removendo os últimos limites ao avanço do consumismo (não “comunismo”, mas consumismo) absoluto, e deixando o sujeito cada vez mais dominado pelo capitalismo emocional ou terapêutico. Que bela ironia. E ao fim, “narciso libertado é narciso acorrentado”, como diz Gilles Lipovetsky: um escravo do Instagram.

Como se constrói uma sociedade verdadeira com indivíduos autocentrados e narcisistas? Ora, não se constrói. Não é por acaso que tantos, como Mark Lilla, Robert Putnam ou David Brooks, têm documentado e divulgado incansavelmente estatísticas sobre a perda de capitais sociais do mundo moderno. Narcisistas não cuidam do bem comum e morrem solitários.

Nosso humanismo degenerou em neurose narcísica, em uma cultura centrada na busca de autorrealização pessoal – e nas doenças emocionais, patologias sociais e todas as mesquinharias que essa busca costuma alimentar

Mas o que diz Ole Madsen sobre a estrutura dessa transformação? Juntamente com suas utilíssimas observações sobre o papel do neoliberalismo e do capitalismo emocional, sobre a emergência da psicologia positiva e seu papel ideológico, ele admite a certa altura uma dimensão religiosa na revolução terapêutica:

“Hoje, a ética protestante parece ter sido substituída pelo ethos terapêutico... Se olhamos para a religião da perspectiva da psicologia – como um meio de se orientar no mundo – não é um exagero enxergar um foco interiorizado, para o Self, e um foco exteriorizado, para Deus nos céus, como duas diferentes versões do mesmo processo de busca por significado – a busca por um enquadramento significante.”

Faz todo o sentido. Não passamos apenas do teocentrismo para o antropocentrismo, mas da extroversão espiritual para uma introversão espiritual que se manifesta, hoje, como a estrutura de formação psicológica do capitalismo emocional: narciso libertado e acorrentado. Essa foi a vitória de Pirro do humanismo moderno.

Como se constrói uma sociedade verdadeira com indivíduos autocentrados e narcisistas? Ora, não se constrói. Narcisistas não cuidam do bem comum e morrem solitários

Mas a primeira vez que ouvi sobre isso não foi lendo psicologia crítica. Foi, na verdade, lendo as obras devocionais de um ministro presbiteriano, Francis Schaeffer. No fim dos anos 60, em A Verdadeira Espiritualidade, ele já avisava que a mula ia empacar:

“O homem, tendo-se colocado no lugar de Deus como centro do universo, constantemente tende a voltar-se para dentro ao invés de para fora. Ele faz de si mesmo o ponto final de integração do universo. Isso é a essência de sua rebelião contra Deus. Para Deus isso não é um problema, pois quando ele se volta para si mesmo, Ele é a Trindade... Mas quando me volto para dentro (de mim), não há com quem se comunicar. E assim cada homem em si mesmo é exatamente como o minotauro de chifres preso na solidão pessoal de seu labirinto, em Creta. Essa é a tragédia do homem. Quando se volta para dentro, não há ninguém ali para responder.”

Livros de religião e espiritualidade são frequentemente tratados pela academia brasileira como literatura de autoajuda religiosa, de pouco significado para a formação cultural e humana. Não poderiam estar mais enganados.

Enfim, o povo segue lendo bons livros cristãos assim mesmo, e suspeitando sobriamente das certezas de seus professores de História. Talvez, então, tenhamos um futuro para além do turbilhão narcisista; os modernos sofrerão suas mortes e solitárias, mas a vida seguirá, apesar da tragédia. E isso me deixa menos pessimista.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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