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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Revolução afetiva

A “ordo amoris” contra a psicopolítica

Detalhe de "Santo Agostinho", de Philippe de Champaigne. (Foto: Reprodução/Domínio público)

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“A verdadeira antítese ao sentimentalismo é o sentimento genuíno de um coração nobre e profundo.” (Dietrich von Hildebrand)

“A defesa adequada contra os sentimentos falsos é inculcar os sentimentos corretos.” (C. S. Lewis)

O capitalismo de consumo ganhou um fabuloso upgrade com o advento da internet, das mídias sociais com seus algoritmos, e da inteligência artificial. Não apenas vivemos na era do Homo sentimentalis, mas na era da computação afetiva, que incorpora, interpreta e influencia a nossa vida afetiva, acelerando a integração de cada indivíduo no mesmo sistema de consumo.

Esse acesso direto do sistema às nossas emoções precisa ser problematizado. Há semanas temos tratado da “revolução afetiva” (ou pós-afetiva?) e seu impacto sobre os costumes e o direito de família, especificamente; mas essa é a ponta do iceberg.

Byung-Chul Han acredita que o sistema neoliberal desenvolveu um mecanismo de manipulação emocional dos indivíduos, de modo que eles “livremente” se submetam às suas exigências, sem coerções externas. As emoções são recrutadas – ou capturadas – para que cada um voluntariamente entregue tanto seus recursos produtivos, como um empreendedor e explorador de si mesmo, quanto seus desejos, como consumidor emocional compulsivo. É uma técnica de dominação, que ele chama de psicopolítica.

A ética afetivo-sexual da elite cosmopolita é quase inteiramente dominada por um ideal terapêutico individualista e laicista que coevoluiu com o mesmo neoliberalismo criticado por Byung-Chul Han

O filósofo coreano aponta, corretamente, que a liberdade individual é explorada pela psicopolítica para que o indivíduo empreendedor/consumidor seja escravizado emocionalmente sem o perceber. Esse discurso aparentemente libertário, que é parte da concepção de “neoliberalismo” segundo Han, caberia muito bem em uma definição de ideologia como falsa consciência.

A crítica incompleta

No entanto, como observei numa discussão anterior do livrinho de Han, sua crítica me parece paralisada no desmascaramento das estruturas do sistema – o modo de produção e de exploração, a transição de biopolítica para a psicopolítica, o dataísmo, etc. –, falhando em considerar o problema da formação psicológica que torna o sujeito moderno tão vulnerável à manipulação psicopolítica. A crítica de Han me parece marxiana demais, ignorando o peso da imaginação, da crença e dos hábitos morais na formação de uma cultura.

Tenho visto versões desse mesmo desequilíbrio se repetindo consistentemente no campo progressista: por um lado, o horror diante dos mecanismos de manipulação emocional do capitalismo, e particularmente a psicologização de seus custos produtivos, convencendo o indivíduo que se autoexplora de que a doença psíquica é sempre um problema seu, e não do sistema. Acusa-se a classe psicológica de ajudar o sistema a externalizar seus custos “pacificando” o indivíduo em sua busca individualizada por felicidade e saúde mental, e desviando sua atenção dos problemas sistêmicos.

No entanto, quanto o assunto é o universo moral e espiritual do indivíduo moderno, os mesmos progressistas promovem e legitimam modos de vida perfeitamente integrados no mesmo sistema: socialmente líquidos, culturalmente desenraizados e moralmente atomizados, para não dizer narcisistas. A ética afetivo-sexual da elite cosmopolita é quase inteiramente dominada por um ideal terapêutico individualista e laicista que coevoluiu com o mesmo neoliberalismo criticado por Byung-Chul Han, e que é parte integral da ideologia da liberdade promovida pelo neoliberalismo.

A razão por que esses problemas são ignorados é óbvia: o escape da psicopolítica passa necessariamente por uma resistência terapêutica; uma formação psicológica e moral que habilite pessoas e comunidades a transcender as determinações da psicopolítica e sinalizar outro mundo possível.

Diferentemente, a práxis progressista quer promover uma exacerbação da contradição no sistema produtivo, na esperança de que essa contradição impulsione a crise e a transformação histórica. A lógica revolucionária quer superar a irracionalidade por meio de uma destruição escatológica da diferença, uma suspensão da lei que se assemelha enganosamente à situação messiânica. Na tradição cristã, no entanto, a mera suspensão da diferença entre bem e mal nada mais é do que a vinda do iníquo ou anomos – o anticristo. A verdadeira situação messiânica é alcançada por meio de transcendência, e não de colapso revolucionário. O que torna o progressismo, nesse aspecto, uma espécie de heresia do cristianismo.

Daí a contradição nua: o horror ao sistema neoliberal convivendo com o mais desavergonhado colaboracionismo, enviando a religião e a moral, únicas resistências plausíveis à psicopolítica, às câmaras de gás. A concepção histórica progressista oferece uma resposta irracional à irracionalidade do sistema, portanto. Acusa a enfermidade e a espalha, lamenta o fogo e o assopra com todas as forças; quer ver o circo incendiar-se.

O que nos faz pensar que a contradição neoliberal e a sanha progressista são ambos parte do mesmo problema, como a doença e a sua febre respectiva, a alergia com sua respectiva asfixia, o pecado e seu julgamento, o crime de Israel e o crime dos invasores assírios de Israel.

O horror ao sistema neoliberal convive com o mais desavergonhado colaboracionismo, enviando a religião e a moral, únicas resistências plausíveis à psicopolítica, às câmaras de gás

É essa irracionalidade o que me impede de adotar a nomenclatura de Byung-Chul Han sobre a psicopolítica “neoliberal”. Os críticos progressistas do neoliberalismo são frequentemente seus colaboracionistas ideológicos. Prefiro falar em psicopolítica moderna.

A resistência terapêutica

Nossa tese é de que a resistência à psicopolítica passa por uma resistência aos discursos e hábitos que legitimam o estilo de vida do homem psicológico; resistir tanto ao sistema que vicia quanto ao discurso que embeleza o vício como se fora virtude. Isso seria, no entanto, uma contraterapêutica; uma formação psicomoral oposta ao projeto do Homo sentimentalis, e tendo em seu coração uma concepção diferente de liberdade.

Dietrich von Hildebrand – tema de nosso prévio artigo nessa coluna – nos ajuda a iniciar essa construção quando propõe a objetivação de nossa vida afetiva, por meio de uma ancoragem intencional das emoções em bens humanos e divinos propriamente descritos e coletivamente reconhecidos. Esse ponto é absolutamente crucial: sem um universo moral compartilhado, as emoções ficam “livres”, e essa “liberdade” é precisamente o que é explorado pelo capitalismo emocional (ou “neoliberal”, segundo Han). Não existe possibilidade de efetivar a dominação psicopolítica se afeições morais incorporadas em virtudes, práticas sociais e instituições já canalizam nossas emoções para investimentos éticos e criativos que promovam o bem comum. Por isso as emoções precisam ser “liberadas” de compromissos éticos, de enraizamentos tradicionais, de expectativas sociais.

Von Hildebrand argumenta, por outro lado, que precisamos emancipar o nosso coração do despotismo de paixões e de meros sentimentos psíquicos como a ansiedade, a depressão, a “paz interior”, a excitação – e eu incluiria aqui tanto o hedonismo em nossa cultura pop quanto o projeto de bem-estar individualista e narcisista que se tornou a religião secular de nossa elite cosmopolita – e cultivar o investimento verdadeiramente afetivo, “motivado por bens dotados de valor”. Isso seria uma vida emocional inteligente e objetiva, “de olhos abertos”:

“Na resposta valorativa, é a importância intrínseca do bem o que engendra a nossa resposta e nosso interesse, nós nos conformamos ao valor, ao que é em si mesmo importante. Nossa resposta é tão transcendente – ou seja, tão livre de meras necessidades e apetites subjetivos ... – quanto é o nosso conhecimento que capta e se submete à verdade... O fato de que nosso coração se conforma ao valor, de que o que é importante em si mesmo seja capaz de nos mover, traz uma união com o objeto que vai mais longe que o próprio conhecimento.”

É preciso falar, então, em uma verdadeira libertação dos afetos; mas não há emancipação afetiva sem educação afetiva. O puro vazio moral não oportuniza a liberdade, mas o caos. Precisamos, portanto, não apenas de educação socioemocional, que frequentemente quer apenas ampliar o discernimento sobre as emoções e sua função na vida social, mas de algo muito mais ambicioso: uma educação psicomoral, que oriente a pessoa sobre a relação entre os amores e as coisas amáveis.

Cabeça, peito e vísceras

Falando sobre a educação dos afetos, não poderíamos ignorar C. S. Lewis, que escreveu o clássico A Abolição do Homem tratando especificamente sobre isso. Na obra ele fustiga impiedosamente a ideia de que por trás de nosso discurso moral o que há são apenas sentimentos subjetivos, e que esses podem ser interpretados e cultivados sem menção ao “certo” e “errado”. Isso seria o contrário da verdadeira educação:

“Santo Agostinho define a virtude como ordo amoris – a disposição ordenada das afeições, na qual cada objeto corresponde ao grau de amor que lhe é apropriado. Aristóteles diz que o objetivo da educação é fazer com que o aluno goste e desgoste do que é certo gostar e desgostar. Quando a idade do pensamento reflexivo chegar, o aluno assim treinado nas ‘afeições ordenadas’ ou nos ‘justos sentimentos’ facilmente encontrará os primeiros princípios na Ética; mas o homem corrupto não poderá enxergá-los, e não fará nenhum progresso nessa ciência.”

O que falta a Byung-Chul Han e aos críticos progressistas da psicopolítica, portanto, é C. S. Lewis; ou melhor: falta-lhes Santo Agostinho com sua noção de ordem dos amores

A questão, portanto, é a harmonização de nossos estados emocionais com uma razão ética. Devemos amar mais a democracia do que a justiça? Deve a minha felicidade individual ser mais desejada por mim que a justiça ou a segurança emocional dos meus filhos? Deve a militância política suplantar a devoção religiosa? Deve o progresso econômico suplantar a conservação ambiental? O quanto meus investimentos de tempo e energia correspondem ao valor das coisas? E o que posso fazer para reeducar meus afetos? Esses problemas caberiam em uma contraterapêutica cristã, diferenciando-se de sua versão clássica em um ponto: ela incorporaria plenamente a moderna ciência psicológica e comportamental dentro do arcabouço ético cristão.

O que falta a Byung-Chul Han e aos críticos progressistas da psicopolítica, portanto, é C. S. Lewis; ou melhor: falta-lhes Santo Agostinho com sua noção de ordem dos amores, cuja contribuição nesse sentido foi também reconhecida por Von Hildebrand. Mas, se perguntado diretamente, desconfio que Lewis diria que o que falta à sua análise das coisas é o “peito”:

“A cabeça domina o estômago por meio do peito – que é o trono, como nos disse Alanus, da Magnanimidade, das emoções transformadas em sentimentos estáveis pelo hábito treinado. O Peito, a Magnanimidade, o Sentimento – esses são os indispensáveis dignitários de ligação entre o homem cerebral e o homem visceral. Pode-se dizer mesmo que é por esse elemento intermediário que o homem é homem, pois pelo seu intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal.”

Na ausência da virtude e de um acordo social e cultural sobre os bens, o que resta é o que a elite cultural brasileira vem oferecendo: soluções “científicas” para os problemas nacionais, e o mais barato hedonismo na condução de suas vidas individuais

Onde o genial C. S. Lewis fala em “vísceras”, temos uma imagem esclarecedora para o problema que atormenta Byung-Chul Han: o verdadeiro objeto da psicopolítica. As emoções precisam ser libertadas da moral burguesa para serem plenamente seduzidas e escravizadas, e essas emoções “libertadas” – isto é, sem educação e sem vínculos morais – são justamente as vísceras. O “peito” seriam as emoções educadas e vinculadas à razão e à ordem objetiva. São afeições treinadas e proporcionais, conforme o valor intrínseco de cada objeto, e que Von Hildebrand descrevia como “o nível mais alto da esfera afetiva”.

Na ausência da virtude e de um acordo social e cultural sobre os bens, o que resta é o que a elite cultural brasileira vem oferecendo: soluções “científicas” para os problemas nacionais, e o mais barato hedonismo na condução de suas vidas individuais. E assim, formando homens sem peito, jamais se escapará da psicopolítica.

De modo que a revolução emotivista e a condição pós-afetiva que ela engendra precisam ser resistidos com uma terapêutica renovada, para formar o humano verdadeiramente afetivo. Cito novamente Von Hildebrand:

“O homem verdadeiramente afetivo se preocupa com o bem que é a fonte e a base de sua experiência afetiva. Ao amar, ele olha para o que é amado; na felicidade ele direciona os seus pensamentos para a razão de ser feliz; no seu entusiasmo, ele focaliza o valor do bem ao qual se dirige esse entusiasmo. A verdadeira experiência afetiva implica ser convencido de sua validade objetiva. Uma experiência afetiva que não é justificada pela realidade não tem valor para o homem verdadeiramente afetivo. Tão logo tal homem compreende que sua alegria, sua felicidade, seu entusiasmo, ou sua tristeza são baseados em uma ilusão, a experiência desmorona. Assim o que importa primariamente não é a questão ‘Sinto-me feliz?’, mas antes, ‘Essa situação objetiva me dá razão para ser feliz?’”

A luta pela libertação da afetividade deve ser obtida para um par de olhos de cada vez, um corpo de cada vez, uma casa de cada vez, até se formarem muitas comunidades virtuosas e desobedientes, cultivando uma outra ciência dos amores

Esse seria, portanto, o caminho da felicidade na terapêutica cristã: não perguntar meramente sobre os sentimentos, mas sobre o que é sentido; não apenas por emoções, mas por afetos e seus objetos, e pelo cultivo de virtudes e hábitos afetivos. Comunidades formativas que cultivem a verdadeira vida afetiva poderiam operar, então, como focos de resistência contra a psicopolítica moderna, educando pessoas para serem verdadeiramente afetivas, tendo na ética a base para a sua experiência afetiva.

A luta pela libertação da afetividade deve ser obtida para um par de olhos de cada vez, um corpo de cada vez, uma casa de cada vez, até se formarem muitas comunidades virtuosas e desobedientes, cultivando uma outra ciência dos amores. E essa nova ordem dos amores é a nossa melhor chance contra a psicopolítica.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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