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O que as pessoas fazem no feriado de Páscoa? A maioria vai descansar. Católicos praticantes levam a data muito a sério, inclusive evitando carnes na sexta-feira. Evangélicos, costumeiramente, faziam ou ainda fazem seus acampamentos religiosos tradicionais, e os mais entusiastas praticam religiosamente o churrasquinho de sexta-feira – um típico protestozinho protestante.
Embora minhas fontes sejam puramente anedóticas, devo registrar aqui que mudanças profundas vêm acontecendo em alguns círculos protestantes. A Páscoa, supostamente um costume católico, vem se tornando um tempo sagrado para evangelicais brasileiros, incluindo pentecostais. O assunto vem emergindo recorrentemente em mídias sociais, reverberado por influencers, assumido abertamente por diversas igrejas, publicado em devocionários. Numa época em que o pluralismo e o individualismo derretem as formas da vida comum como um ácido universal, o fato do evangelicismo ser uma forma bem moderna de religiosidade o tornaria um candidato improvável à resistência. No entanto, muitos evangélicos vêm redescobrindo o poder dos rituais.
E aqui entra Byung-Chul Han; o homem se tornou um intelectual relativamente popular no Brasil. Trabalhos como “A Sociedade do Cansaço” e “A Sociedade da Transparência”, com seu estilo impressionista, direto, algo aforísmico e econômico, vitaminaram discussões animadas sobre a sociedade moderna e introduziram muita gente a essa dimensão da vida intelectual que é a crítica cultural. Os textos digestivos do filósofo Coreano foram além do alcance típico das obras acadêmicas e foram alojar-se nas estantes de gente comum. Notei, por exemplo, que muitos cristãos evangélicos adotaram Byung-Chul Han como companhia permanente.
Sua obra “O Desaparecimento dos Rituais”, de 2019, apareceu em português no ano passado, lançada pela editora Vozes, mas tive a impressão de que ela não gerou o impacto dos trabalhos mais procurados de Han. De minha parte, gostaria que ela recebesse mais atenção. Tenho minhas críticas – acho que o autor é culpado de certo estetismo, em sua confiança excessiva na forma dos ritos.
Mas os ganhos conceituais superam os prejuízos. Como de costume, não pretendo resenhar o livro; vou diretamente ao que nos interessa aqui: a ideia de uma “topologia” temporal. Mas primeiro, quero lembrar o que já discutimos nessa coluna sobre a crise da experiência moderna do tempo: ela parece guardar uma relação intrínseca com a fé e com a descrença.
Segundo Charles Taylor, a visão global sobre a origem e destino do mundo fornece uma macroestrutura para organizar o tempo comum, que ele chama de “Grande Tempo”. O Grande Tempo nos faz estruturar nossos calendários com períodos, datas e momentos especiais que são vinculados ao grande tempo e ordenam a nossa vida comum.
Pense no calendário cristão: advento, quaresma, páscoa e pentecoste estruturam nossas atividades coletivas, nossos investimentos emocionais, e nossa imaginação, fazendo a vida comum girar ao redor da grande história do evangelho – o Grande Tempo dos Cristãos. É por isso que a revolução francesa se apressou para desmantelar o calendário cristão e construir outro completamente diferente. Tentaram mudar até o número de dias da semana e abolir o domingo! Charles Taylor descreve o tempo laico, secularizado, como um tempo “expurgado”, sem transcendência, homogêneo, profano sem janelas para a eternidade. Temos datas laicas semi-escatológicas, como as eleições, o carnaval, a Black Friday, algumas celebrações cívicas, lançamentos de filmes e competições esportivas. Mas para uma massa de pessoas as opções são poucas e o sentido é minúsculo: votar, comprar e extravasar: é o ciclo-sem-fim do secularismo.
O fato de que essas datas laicas nada representam além de si mesmas explica por que elas não chegam a reverter essa profanação do tempo. Ele fica achatado e pobre de sentido. Patrick Deneen observa, sobre o nosso sistema de cultura liberal ocidental, que ele é basicamente “um esforço para transformar a experiência do tempo, e em particular a relação entre passado, presente e futuro.” E ele o faz apagando o passado e escravizando o presente à fronteira móvel da obsolescência, criada pelo complexo mercado/tecnologia – porque “revolução”, “inovação”, “reinvenção”, the next, “criatividade”, e o desprezo pelo que é e a fixação no que ainda não é, corrompem a relação com o presente, o tornam uma experiência refugada, um mero trampolim para o que vem depois. Consumo, avanço tecnológico e utopia social esvaziam o passado e o presente e fraturam a temporalidade.
O que poderia quebrar essa lógica perversa do tempo laico expurgado? Aqui entra Byung-Chul Han: os rituais. Uma sociedade da obsolescência, da insatisfação, da ansiedade, da autenticidade acima do bem comum, do individualismo atomista, só pode ser uma sociedade sem rituais. Porque rituais constituem a topologia do tempo, definem seu uso, ordenam prioridades, convocam a atenção coletiva. Rituais nos sincronizam, nos fazem agir juntos e experimentar o fluxo temporal juntos. Rituais mantém propósitos fixos, dado que representam “todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade”, e sua repetição refreia o princípio da obsolescência.
“Rituais podem ser definidos como técnicas simbólicas de encasamento. Transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobíliam-no.” (Byung-Chul Han).
De um modo poético o filósofo descreve o que chamei em outro artigo de Cronoformação: a construção de uma casa, um encasamento. Um tempo ordenado seria como uma casa mobiliada. O que a modernidade faz é isso mesmo, arrombar a porta e jogar a mobília fora. Fica a casa vazia, que deixa de ser casa, vira loja, mercadinho, invasão. Os ritos mobíliam o tempo com gestos e sentidos familiares, povoam a manhã, a tarde e a noite com propósitos. Não “propósitos” como meras ideias abstratas, mas materializados em prioridades, gestos e ocupações aprendidas e repetidas coletivamente.
Um tempo ordenado seria como uma casa mobiliada. O que a modernidade faz é isso mesmo, arrombar a porta e jogar a mobília fora. Fica a casa vazia, que deixa de ser casa, vira loja, mercadinho, invasão
A razão por que isso parece forçado, limitador, massificador, para o indivíduo moderno e consumista (talvez um dos seres mais massificados que já houve no planeta), é que vivemos na sociedade da autenticidade, do espontaneísmo, da singularidade individual. É claro que isso não se encaixa bem com o rito ou com instituições. Mas então, o que resulta é perda do bem comum, falta de sincronia entre as pessoas, individualismo e o cada vez mais onipresente sofrimento psicológico agravado. A falta de ritos nos deixa vazios, ansiosos e doentes.
“’Ritual’ se tornou uma palavra escabrosa, uma expressão para o conformismo vazio; somos testemunhas de uma revolta geral contra todo tipo de formalismo, contra a ‘forma’ em geral (Mary Douglas). O desparecimento dos símbolos remete à atomização crescente da sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade se torna narcísica. O processo de internalização narcísico desenvolve uma hostilidade à forma. Formas objetivas são condenadas em prol de estados subjetivos. Rituais não se prestam à interioridade narcísica.” (Byung-Chul Han)
Daí Patrick Deneen chamar o liberalismo expressivo moderno de “anticultura”. Espremida entre as demandas do consumo e a ética nua da autoafirmação, autoexpressão e autoempoderamento, a cultura se dissolve. Valores, instituições e ritos comunitários se derretem. Voltamos ao estado de natureza, como fios desencapados.
Ou, na linguagem do Coreano, a anticultura da autenticidade nos deixa sem lar, sem teto, sem o familiar. Estamos sempre sozinhos ao relento, “largados e pelados” no esforço por criar um sentido original e pessoal para a existência. Não é de se admirar que tantas pessoas que privilegiam a autenticidade sobre a comunidade se tornem adultos e idosos desamparados.
E se a cultura da autenticidade e autoexpressão destrói os rituais, rituais que agregam comunidades podem ser, também, a nêmesis dessa cultura individualista e psicologizada. Aqui nosso filósofo recorre ao genial Harmut Rosa e seu conceito de ressonância temporal:
“Rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, de um ritmo comum. ‘Rituais promovem eixos de ressonância socioculturalmente estabelecidos, ao longo dos quais se tornam experienciáveis relações de ressonância verticais (com Deus, o cosmos, o tempo e a eternidade), horizontais (na comunidade social) e diagonais (em relação às coisas).’(Hartmut Rosa). Sem ressonância, a gente ecoa a si mesmo e se isola para si. O narcisismo crescente impede a experiência da ressonância. A ressonância não é um eco de si mesmo. A ela é inerente a dimensão do outro. Significa acorde. A depressão se origina no ponto zero da ressonância.” (Byung-Chul Han).
Voltaremos ao filósofo coreano em outras esquinas dessa coluna, mas já temos suficiente para hoje: rituais são oportunidades de escape da cultura do narcisismo. Se instituídos com sucesso, introduzem esses eixos de ressonância multidirecionais. Ora, não é isso o que estamos buscando, meios de pendurar novamente a temporalidade ocidental no Grande Tempo? O expurgo laicista do tempo se deu precisamente através da destruição dos rituais por meio do falso evangelho da autenticidade absoluta.
A Páscoa é isso, um eixo de ressonância. Na Semana Santa, Deus, o universo, a eternidade e a comunidade da fé se harmonizam em um único acorde; o passado, o presente e o futuro se fundem, e entendemos por que roda do tempo gira ao redor da cruz e da ressurreição. A semana como rito, e os ritos da semana, são mobílias na sala principal dessa grande casa do ano Cristão. E assim, num mundo sem sentido, cheio de sem-tetos e andarilhos espirituais, celebrar a Páscoa é construir um Lar.