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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Psicologia social

A polarização política é um sintoma

(Foto: Patricio Hurtado/Pixabay)

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Progressistas não são pessoas imorais; eles apenas têm uma experiência moral diferente dos conservadores. Segundo a Teoria dos Fundamentos Morais do psicólogo social Jonathan Haidt, a sensibilidade moral liberal-progressista é mais voltada para o cuidado e a equidade, que são as intuições morais mais individualizantes, minimizando a importância das intuições morais mais sociocêntricas: a lealdade, a autoridade e a pureza. Já os conservadores moderados tendem a equilibrar essas intuições, mas os mais radicais até mesmo sufocam os fundamentos individualizantes, favorecendo o autoritarismo e o tribalismo.

Mas não há fundamentos morais “maus”. Segundo a teoria, todos os fundamentos morais seriam módulos cognitivos resultantes da evolução humana, selecionados por aumentarem a sobrevivência e a adaptabilidade e, assim, universais. Mas nesse caso, de onde viria a bifurcação dos valores? Primariamente, da cultura.

Jonathan Haidt vê uma correspondência entre os fundamentos morais individualizantes e dois grandes discursos morais da modernidade: o utilitarismo, que corresponderia à preocupação com a diminuição do sofrimento e a maximização do bem-estar; e o kantianismo, que promoveria um princípio racional de justiça e equidade. Essa combinação estaria por trás, grosso modo, do liberal-progressismo. Sua observação faz muito sentido, mas exige suplementação: ideias morais não se tornam determinantes para a civilização sem mudanças importantes na ordem social.

Progressistas não são pessoas imorais; eles apenas têm uma experiência moral diferente dos conservadores

O fato é que esse composto de epicurismo e racionalismo moral fornece um imaginário moral ressonante com o modo de vida urbano, plural, tecnicista, consumista e democrático, que caracteriza as modernas sociedades liberais: o etos cosmopolita. Segundo mencionamos na coluna passada, a Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey), desenvolvida por Ron Inglehart e Chris Welzel, vem mostrando de forma consistente que sociedades mais ricas e democráticas têm valores menos tradicionais, mais racionalistas e mais secularizados, e também valorizam mais autoexpressão e a autenticidade do que a lealdade de grupo. Welzel, em especial, isolou um conjunto de valores que comporiam um “etos emancipatório”, associado à militância por igualdade de gênero, protagonismo da mulher, promoção da diversidade e participação democrática. Esses valores são dominantes nos países mais desenvolvidos e nas grandes cidades globais.

Mas o que viabilizou esse modo de vida cosmopolita? Segundo Inglehart e Welzel, o processo de mudança dos valores, que para eles é normativo e desejável, resultaria de duas transformações estruturais: a superação de uma economia agrícola pela industrialização, generalizando atitudes mais racionalistas e secularizadas; e a formação de um largo setor de serviços, com maior segurança e garantia de sobrevivência, abrindo as portas para valores pós-materialistas: pluralismo, democracia efetiva e autoexpressão. Basicamente, resultaria da evolução do capitalismo de consumo e da psicologização do paraíso, em linha com a tese mais filosófica de Gilles Lipovetsky.

Em termos simples: a mudança social aparentemente “aposentou” os valores sociocêntricos. Lealdade, pureza e honra a autoridades, os valores que “sincronizam” comunidades, são escrúpulos morais pouco úteis para o sucesso e o florescimento pessoal no mundo cosmopolita, que busca sincronizar o consumo individual com o sistema global. O etos conservador sincroniza “horizontalmente”; o cosmopolita, “verticalmente”. No mundo verticalizado, o etos cosmopolita é mais útil.

Não é que cosmopolitas não se importem com o social, mas que ele é, de certo modo, externalizado e incorporado em grandes instituições, de modo a deixar as mãos do indivíduo “livres” para que ele possa buscar a sua felicidade sem fiscalizações comunitárias. Para lançar mão de um exemplo caricato, mas nem por isso falso: um homem sem família e uma mulher sem filhos têm mais chances de “sucesso” nesse mundo do que pais e mães de família tradicionais.

Assim, quanto mais “perto” dos centros de produção de riqueza e controle político dessas sociedades o indivíduo estiver, tanto mais ele tenderá ao etos cosmopolita; e quanto mais hegemônica é a formação moral promovida por esses centros, irradiando a partir da indústria cultural, da universidade e do jornalismo, tanto mais o imaginário moral dessa sociedade se moverá para o mundo cosmopolita. E, com isso, os escrúpulos morais sociocêntricos serão silenciados.

Mas o inverso também é verdade: quanto mais distante o indivíduo estiver desses centros de poder, e quanto mais alienado se sentir em relação a eles, maior a probabilidade de aceitar uma formação moral divergente. Ou, alternativamente, quanto mais suas intuições morais forem moldadas por um etos conservador em seu processo de socialização, tanto mais engrossarão a polarização social e política em relação aos centros de poder. O centro e a periferia se dessincronizarão. Pense, por exemplo, em imigrantes de várias partes do Brasil lutando para sobreviver e constituir família nas periferias do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belo Horizonte e de Brasília: embora pessoas de etos cosmopolita dessem as cartas nessas cidades, nossos imigrantes dependiam desesperadamente de apoio familiar, da vizinhança e das igrejas. E foi assim que o êxodo rural alimentou o proletariado cultural evangélico – a grande dor de cabeça da elite cosmopolita brasileira.

Liberdade individual, autenticidade e equidade não são coisas ruins; o problema reside no desequilíbrio e, em seguida, na guerra irracional entre os valores

Sem dúvida nenhuma a esquerda política tem parte nessa polarização; a substituição da luta de classes como tema principal pelo identitarismo político, com seu estilo individualista e psicologizado, tornou a esquerda um vetor do etos cosmopolita. Nesse caso, seria melhor ver a esquerda identitária como um subproduto da evolução dos valores, dentro do capitalismo de consumo. Ela é um sintoma, como a febre é um sintoma da infecção.

Por certo estou falando em termos excessivamente negativos; os valores cosmopolitas podem ser unilaterais, mas não são “maus”. Liberdade individual, autenticidade e equidade não são coisas ruins; o problema reside no desequilíbrio e, em seguida, na guerra irracional entre os valores. De um ponto de vista conservador-moderado, estão aí os dois problemas básicos com a elite cosmopolita e com seu “braço esquerdo”: sua sensibilidade moral desequilibrada, resultante de uma socialização hiperconsumista, e seu supremacismo, que ignora a imaginação moral conservadora.

Talvez haja, aqui, um caminho interessante de diálogo: problematizar não a esquerda, meramente, mas a direção básica da civilização moderna. Será mesmo que Inglehart e Welzel estão certos, ao colocar a secularização e a autoexpressão como meta do desenvolvimento humano? Sugiro três contraevidências a esse respeito: primeiro, a própria reação conservadora nos países ocidentais, sinalizando que uma parte da população vem sendo alienada do processo político pela elite cosmopolita; segundo, a relação entre a crise ambiental e o sistema de hiperconsumo, que é o próprio acelerador da ética de autoexpressão – e o fato de que há grande preocupação com a sustentabilidade entre os cosmopolitas não os purifica dessa conexão.

Uma terceira e mais surpreendente evidência contra o modelo é o fato de que a saúde mental dos jovens vem piorando consistentemente em escala global (e não apenas entre os pobres), e os piores índices são entre jovens mulheres de esquerda. Segundo o modelo de Inglehart-Welzer, as nações europeias de passado protestante são os modelos de avanço civilizacional, com a Escandinávia no topo da lista; mas Zach Rausch e Jonathan Haidt mostraram que a saúde mental das adolescentes também está piorando nesses países. Ao mesmo tempo, vem se avolumando a evidência de que a religião e a espiritualidade melhoram a saúde mental de jovens – assunto de que já tratamos também nessa coluna (Por que as igrejas e os psicólogos precisam uns dos outros).

Existe algo no etos conservador que faz bem para os jovens e para as mulheres, e um elemento tóxico no etos cosmopolita, que vem sendo acelerado através das mídias sociais

Sabe-se que essa piora na saúde mental dos jovens tem relação, em parte, com os efeitos das mídias sociais; mas isso não explica por que os números dos homens são melhores, nem por que os números das mulheres de esquerda são piores. Na verdade, a evidência de que a saúde mental de progressistas é pior que a de conservadores é mais geral, incluindo jovens e adultos, como foi discutido na American Affairs em março deste ano, mas a corda arrebenta muito mais para o lado feminino.

O caso é que a melhoria na participação social e política das mulheres é um dos elementos do etos emancipatório e um dos marcadores de desenvolvimento modelo de Inglehart-Welzer. Esse fato não falsifica o modelo, mas faz transparecer uma unilateralidade. Existe algo no etos conservador que faz bem para os jovens e para as mulheres, e um elemento tóxico no etos cosmopolita, que vem sendo acelerado através das mídias sociais.

Se assim for, tanto o populismo de direita quanto a esquerda identitária seriam meros sintomas políticos, assim como a pandemia de saúde mental é um sintoma psicológico, de uma doença bem mais profunda em nossa civilização: um câncer em nossas culturas morais, alimentado pelos hormônios da fé no progresso.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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