Na semana passada assistimos, nessa coluna, à derrocada de Nimrode e de seu projeto imperial. Em Babel Deus se mostrou, surpreendentemente, como aquele que confunde.
Todos sabemos que nosso mundo laico não morre de amores pelo “Deus judaico-cristão” e, particularmente, por suas ordens. Para não poucos elas não passam de institutos opressivos e invenções de uma elite patriarcal que precisa legitimar seus regulamentos arbitrários. Mas essa é uma visão bastante pobre da tradição bíblica. Creia-se ou não no livro sagrado, a ordem divina nunca é mera legitimação de pretensões humanas. Seja em Babel, seja num acordo criminoso entre Pôncio Pilatos e o Sinédrio judaico, o império terá Deus sempre na oposição.
Daí que o Altíssimo vem e confunde as coisas. Ele sempre confunde as coisas, fura os pneus, trava as rodas dos carros de Faraó, funde os motores e descarrila os vagões da civilização – sempre que o destino da viagem é o império. Se há “uma torre” para “chegar ao céu”, Deus descerá para confundir as coisas. Foi assim ontem e será assim hoje, com os modernos projetos de poder.
É sadio ter isso em mente; perder a esperança na arrogância humana e na vontade de poder pode nos abrir para a realidade e para o que há de bom no mundo. Respirar fundo, deixar de colocar nossos projetos maravilhosos, sensacionais e infalíveis para as pessoas acima das próprias pessoas, abraçar a finitude e a imperfeição do presente, deixar a torre de lado e encarar de frente o luto pelo jardim perdido.
Mas isso não é sentar-se e desistir. Não é que a Bíblia seja contra a Esperança, de modo algum! É que... esperança não é utopia.
Abandonando a utopia pela esperança
É assim que, na sequência narrativa da crise de Babel, o Todo-Poderoso convoca Abrão para a ação. Mas o primeiro gesto que lhe é pedido é que deixe sua vida para trás.
Abrão (que teria seu nome mudado para Abraão) habitava em Ur dos Caldeus, possivelmente entre 2000 e 1900 a.C., e já tinha se movido de lá para Harã, uma cidade dos territórios arameus, no Norte da mesopotâmia. Um ponto comum de ambas as cidades era o culto à lua, que talvez fosse o background religioso de Abrão (o nome da esposa, “Sarai”, aparece em associação com o culto da lua em registros antigos).
Eram cidades importantes, as belas flores de orgulhosos reinos antigos. Mas Abraão deve largar a Mesopotâmia, o berço das grandes cidades-com-zigurates; abrir mão da poderosa Londres caldeia ou da São Paulo arameia e emigrar para um lugar inicialmente desconhecido, mas que se mostraria um fim-de-mundo em sua época: Canaã. E deve deixar tudo: parentes, a casa do pai, a rara vida urbana daqueles tempos, tornando-se um nômade.
Perder a esperança na arrogância humana e na vontade de poder pode nos abrir para a realidade e para o que há de bom no mundo
Não deve haver dúvidas aqui: o que Abraão deixa para trás é a civilização que emergiu do projeto de Babel com sua torre. E, segundo o trecho memorável de Gênesis 12.1-4, Deus chama Abraão para uma alternativa.
“E o Senhor disse a Abrão: ‘Sai da tua terra, do meio dos teus parentes e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei.’
‘E farei de ti uma grande nação, te abençoarei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei quem te amaldiçoar; e todas as famílias da terra serão abençoadas por meio de ti.’
Abrão partiu como o Senhor lhe havia ordenado, e Ló foi com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã.”
Abraão pôs o pé na estrada com sua esposa e deu início a uma grande aventura, daquelas que merecem celebração em canto e prosa. Rompendo com o tempo circular dos antigos, que girava ao redor dos ciclos agrícolas e dos cultos da fertilidade, Abraão agora caminha em direção a uma promessa – e, com isso, a um futuro. Em A Dádiva dos Judeus (1999), Thomas Cahill verá, aqui, o começo do que viria a ser a consciência histórica: movo-me para um futuro que não é a repetição duma ordem cósmica, mas uma coisa nova, uma ruptura com a opressiva ordem dos reis-deuses do crescente fértil.
E o que a voz divina promete? Uma terra, que ainda seria mostrada, uma grande descendência, e um nome; pois ele seria o recipiente e o mediador de uma nova bênção divina. Não eram coisas triviais! O que um homem poderia desejar além disso no mundo antigo?
Mas há muito mais escondido nessas promessas. Como discutimos no primeiro artigo da série, sobre “As três regiões da felicidade humana”, a dignidade da representação divina pela Imago Dei, a família e o trabalho não alienado são os bens mais básicos que caracterizam a felicidade humana no sentido objetivo: o que o Salmo 128 chama de “bem-aventurança”. Ora, quem é Abraão? Precisamente um sujeito que poderia ter tudo, mas não tem nada. Ele é um desterrado, casado com uma mulher estéril e sem um nome para o futuro. Abraão é o exemplo paradigmático do ser humano amaldiçoado, lançado para fora do Éden.
E então Deus e aproxima com essas promessas assombrosas, virando o jogo de Abraão – e o jogo da história.
A virada espetacular
Temos um grande milagre, a própria pedra fundamental das religiões abraâmicas e uma visão que até hoje captura a consciência de milhões de cristãos: Deus reverterá as maldições do pecado original e restabelecerá a bênção original – o Éden – por meio da casa de Abrão!
É a primeira vez que Deus fala assim. Mesmo na aliança com Noé, quando ele promete não lançar a terra de volta ao caos e estabelece o ofício da justiça pública para suprimir o mal e tornar a vida suportável, não houve promessa de retorno ao Éden, nem garantias de salvação. Agora Ele diz que uma outra bênção, uma nova bênção virá dos céus sobre todas as famílias da terra.
Quais “famílias”? Segundo o fluxo narrativo, não famílias nucleares, exatamente, mas povos, as famílias alistadas na “tábua das nações”, no capítulo 10 do Gênesis, que foram quase diluídas no projeto de Nimrode, antes que o Senhor confundisse as línguas e obstruísse o primeiro império.
Deus tem o seu próprio projeto universal, ou seu plano “católico” e “imperial”! O governo divino, no entanto, não é um projeto humano de escravização e destruição, mas o de promover o bem de todos ali, preservando a singularidade e identidade de cada nação
Lida no seu contexto, essa promessa é simplesmente espetacular. Pois o sonho de Nimrode era o de uma massa coletiva, trabalhando num império da vontade, para obter para si um nome. O que são essas coisas, a não ser versões corruptas e amaldiçoadas da felicidade edênica – a comunidade, o cuidado do jardim e a Imago Dei?
E o que é a promessa abraâmica a não ser a resposta divina e a cura verdadeira para a maldição? O que é belo, nessa história, é que não se trata apenas de Abraão. Sim, ele pessoalmente verá sua sorte mudada, e terá o nome, a terra para cultivar construir cidades, e uma grande família; mas tudo isso se dará não em seu próprio benefício – como era o caso de Nimrode –, mas em benefício do mundo: “eu te abençoarei... e tu serás uma bênção”. Abrão seria o mediador de uma outra aliança, distinta dos pactos com Adão e com Noé, cujo propósito é a bênção do mundo.
Então... Deus tem o seu próprio projeto universal, ou seu plano “católico” e “imperial”! Ocorre, no entanto, que o governo divino não é um projeto humano de escravização e destruição, mas o de promover o bem de todos ali, onde cada um está, preservando a singularidade e identidade de cada nação.
Em busca de outra cidade
Seria possível ler, aqui, um plano divino para estabelecer outra cidade, em oposição a Babel?
Se considerarmos apenas a Bíblia hebraica, parece que sim; a história que começa com Abraão tem seu clímax com o rei Davi e a cidade abençoada, Jerusalém. E, se dermos um grande salto de imaginação para o fim da história, encontramos nos dois últimos capítulos da Bíblia, no Apocalipse, aquele relato já discutido aqui, no último artigo, da queda de Babilônia e da chegada de Jerusalém. Na visão apocalíptica de João, depois de Babilônia, o símbolo dos impérios humanos, “afundar no mar”, a “Nova Jerusalém” descerá do céu como noiva para o seu esposo divino, o Cristo.
Mas temos algo mais concreto do que isso: na interpretação de um desconhecido autor bíblico, o judeu que redigiu a carta aos Hebreus, ao deixar Ur dos Caldeus Abraão estava, desde o princípio, aspirando por outro projeto, outra civilização, e outra cidade:
“Pela fé, Abraão obedeceu quando foi chamado, partindo para um lugar que receberia por herança; e partiu, sem saber para onde ia. Pela fé, peregrinou na terra da promessa, como se fosse terra estrangeira, habitando em tendas com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa. Porque ele esperava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e construtor.” (Carta aos Hebreus 11,8-10)
Por isso Abraão tem sido chamado de “o pai da fé”; ele abriu o caminho nessa ocupação que é caminhar com fé e esperança numa “longa obediência na mesma direção”. Mas surpreende o insight de nosso exegeta sem nome, quando detecta em Abraão a expectativa por outra cidade. Afinal, a promessa de Deus não fala explicitamente em nenhuma cidade.
Mas é claro que ela está lá, implícita, oculta apenas do moderno leitor desavisado. O autor da Carta aos Hebreus corretamente discerne que a vocação de Abraão se dá imediatamente depois e em resposta ao juízo sobre Babel, e antecipa, para o leitor, o plano de divino de constituir uma nação e um povo para si mesmo e para a tarefa de representá-lo diante das nações. Para o israelita, a chamada de Abraão inevitavelmente desembocaria em Jerusalém.
Essa é a apresentação, de forma ainda embrionária, de um tema de importância extraordinária nas Escrituras e cheio de implicações para a teologia política: o tema do reino de Deus. Recentemente N. T. Wright, teólogo britânico e professor da Wycliffe Hall, na Universidade de Oxford, publicou uma obra explicando a importância do tema do reino para entender o próprio fenômeno de Jesus Cristo: Como Deus se Tornou Rei.
De algum modo Abraão peregrinava em direção a uma nova sociedade, uma nova cidade, que não poderia ser outro projeto imperial nimrodeano, sonhando em atingir o céu. Abraão esperava uma cidade “da qual Deus é o arquiteto”
Não é o caso de expor o conceito agora, mas importa mencionar que, ao descrever a ação salvadora de Deus como a vinda de um “reino”, sabemos que Jesus não estava meramente usando uma metáfora. Sua fala foi entendida originalmente no contexto da história e da religião hebraica, e isso significava a expectativa de uma ordem espiritual, moral e política justa e fiel ao Deus verdadeiro. Jesus realmente anuncia que Deus pretende reinar, e que sua vontade será feita na terra como no céu – incluindo-se, aí, os governos humanos. Mas então ele vira de cabeça para baixo essas expectativas ao ensinar que tal ordem só poderia ser instituída pelo próprio Deus, e que isso viria por meio da obediência fiel, do amor e do autossacrifício!
É claro que Abraão nada sabia sobre a história de Israel ou sobre a cruz romana; mas o caminho que ele começou a trilhar daria precisamente em Jesus Cristo. Isso é o que o autor de Hebreus quis dizer: que de algum modo Abraão peregrinava em direção a uma nova sociedade, uma nova cidade, que não poderia ser outro projeto imperial nimrodeano, sonhando em atingir o céu. Abraão esperava uma cidade “da qual Deus é o arquiteto”.
Se Nimrode representa a utopia prometeica, Abraão representa a esperança.
A política peregrina
A esperança permitiu que Abraão caminhasse para frente sendo usado por Deus, tanto para trazer maldição quanto para trazer bênção para as cidades e povos que habitavam o levante, 2 mil anos antes de Cristo. De suas aventuras nos vêm histórias extraordinárias, como a de Sodoma e Gomorra ou a do sacrifício de seu filho Isaac, que recebeu imortal discussão filosófica por Soren Kierkegaard em Temor e Tremor. Mas qual a significância de Abraão para a nossa teologia política?
“Todos esses morreram mantendo a fé, sem ter recebido as promessas; mas tendo-as visto e acolhendo-as de longe, declararam ser estrangeiros e peregrinos na terra. Os que dizem tais coisas mostram que estão buscando uma pátria. E, se estivessem se lembrando da pátria de onde saíram, teriam oportunidade de voltar. Mas agora almejam uma pátria melhor, isto é, a celestial. Por isso, também Deus não se envergonha deles, nem de ser chamado o seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade.” (Hebreus 11,13-16)
O fato é que apenas na velhice Abraão teve um filho, e um único, com Sara, e Deus ainda o pediu em sacrifício – embora suspendendo a ordem assim que o patriarca mostrou disposição de obedecer. Também não chegou a ver seu nome famoso, nem possuiu a terra de suas peregrinações, com a exceção de um pequeno cemitério familiar – sim, um túmulo no qual enterrou Sara e foi depois posto para descansar. Em suma, Abraão foi um peregrino até o fim da vida, e viu a Civitas Dei, a sociedade divina, apenas de longe.
A “política peregrina” espera e anuncia o reino de Deus, e até mesmo o demonstra hoje, mas não pretende “implementá-lo”; aceita cooperar com os poderes terrenos, mas recusa-se a vender a eles a alma
Isso não significa que ele não fez diferença enquanto caminhava. Pelo contrário, ele foi o mediador da bênção divina onde estava. Pensemos no caso da famosa “guerra dos quatro reis contra cinco”, relatada em Gênesis 14. Sodoma e Gomorra haviam sido derrotadas, e o sobrinho de Abraão, Ló, que morava em Sodoma, acabou escravizado com sua família. O corajoso patriarca reuniu seu bando e seus aliados locais e, num ataque surpresa, libertou os habitantes de Sodoma e Gomorra!
O relato nos diz que o rei de Salém (provavelmente Jerusalém, muito antes da conquista pelos hebreus) abençoou Abraão e dele recebeu o dízimo de tudo. E com isso se cumpriu a promessa divina: “te abençoarei... e tu serás uma bênção”. Abraão é o herdeiro da terra, e cuida dela como se já fosse sua, ainda que por ora ele seja apenas... um estrangeiro.
É claro que o rei de Sodoma também ficou felicíssimo ao ver as pessoas e os bens retornando à sua cidade, e fez a Abraão uma proposta irrecusável: “Entrega-me as pessoas e fica com os bens para ti”. Para quem sabe ler, um pingo é letra: nos termos da época, Abraão seria oficialmente aliado e súdito do rei de Sodoma. Nosso herói não pensou duas vezes, e disse “na cara do rei” que não receberia dos sodomitas nem mesmo um tostão.
Vale mencionar, aqui, que recusar tal oferta era um gesto diplomaticamente arriscado. O que significa ter nos arredores um estrangeiro rico e militarmente eficiente, que se recusa a fazer alianças e assinar os documentos? Isso era praticamente um convite à suspeita e à segregação.
A mensagem é clara: quando necessário, houve cobeligerância de Abraão com o rei de Sodoma, estritamente para fazer justiça, cumprindo os termos do pacto de Noé. Mas nada além disso; nada de cooperar com o sistema e o “projeto civilizatório” sodomita, mesmo que isso causasse uma situação de insegurança. E sabemos, pela Escritura, que Sodoma era um antro de arrogância, violência sexual e desprezo pelo pobre e necessitado.
Assim, veio finalmente o julgamento divino contra Sodoma e Gomorra, a chuva de fogo dos céus. Mas não sem antes Abraão oferecer uma longa intercessão a Deus, para que as cidades fossem poupadas. E se não fosse a intercessão de Abraão, Ló e suas filhas teriam sido consumidos pelo mesmo fogo.
Abraão, portanto, não saiu da Mesopotâmia fisicamente, apenas; ele mostrou que a Mesopotâmia saía aos poucos de seu coração, à medida que ele jornadeava em Canaã. E no processo de caminhar ele não se torna omisso, de forma alguma! Trata-se de uma peregrinação missionária. Abraão está naquele mundo sem pertencer a ele; seu coração está em Jerusalém, a nova cidade. Assim ele pratica a cobeligerância, e também ora pelos seus inimigos, buscando a graça de Deus. Abraão é um sinal da futura bênção divina, uma espécie de embaixada ambulante do reino de Deus, demonstrando seus valores e dispensando suas graças a cada passo da jornada.
O desespero e a impaciência não constroem a cidade de Deus, e além disso aumentam o nosso sofrimento
Podemos chamar esse santo trabalho de “política peregrina”. Ela espera e anuncia o reino de Deus, e até mesmo o demonstra hoje, mas não pretende “implementá-lo”; porque isso seria precisamente Babel e o maldito espírito de Nimrode. É uma política humilde, porque se mantém saudando a Civitas Dei e, em esperança, fazendo-a transparecer bem no meio da Civitas Mundi. Essa política aceita cooperar com os poderes terrenos, mas recusa-se a vender a eles a alma.
Podemos fazer uma analogia, aqui, com outro episódio da história de Abraão, quando Sara, não aguentando mais o sofrimento e a espera pela promessa de Deus, sugere ao patriarca que ele tenha um filho com sua escrava Agar (segundo os costumes da época). Abraão concorda e da união nasce Ismael. Mas, quando o assunto é trazido à presença do Todo-Poderoso, o patriarca recebe um “soco no estômago”: Deus diz com toda a clareza que Ismael não é o filho da promessa.
Foi Abraão que deu o “soco” em si mesmo, ao descontrolar-se em ansiedade e agir por conta própria; depois que Isaac nasceu, ele foi obrigado a mandar embora esse filho. Abstraindo por um momento do emaranhado moral dessa história triste, seu ponto chave é transparente: o desespero e a impaciência não constroem a cidade de Deus, e além disso aumentam o nosso sofrimento.
O Brasil dos filhos de Abraão
Em conclusão, eu gostaria de dizer algumas coisas bem claras e diretas: é perfeitamente legítimo, para os cristãos e para os evangélicos, especificamente, envolver-se com a vida pública e a política. Mais do que isso: a omissão histórica é inadmissível para os herdeiros de Abraão. Mas se o fizermos em desespero, com os olhos nos resultados e não nos princípios da ação, estaremos no caminho de Nimrode. Deus não escolherá o que ele não iniciou; o filho de Agar terá de ir embora, mais cedo ou mais tarde. E quem tirou o coração da esperança divina para apostá-lo em alguma utopia histórica vai chorar amargamente.
A paixão pragmática da esquerda evangélica e dos católicos da libertação com o lulopetismo eram claramente “o filho de Agar”; e o fanático suporte bolsonarista à atual presidência, como se essa fosse a última linha de defesa da liberdade religiosa, da luta antiaborto, do globalismo e da moralidade ocidental, e como se tudo o mais pudesse ser mandado para o inferno, pertence ao mesmo gênero. Essas paixões políticas são todas filhas do desespero, que em vez de perguntar “qual é a doutrina social cristã?”, e então segui-la com alma e vontade, sem desviar-se nem para a esquerda, nem para a direita (figurativa, mas também literalmente), perguntam apenas: “qual candidato garante que estejamos no poder?” – mesmo que o sujeito seja uma negação do espírito do cristianismo.
É perfeitamente legítimo, para os cristãos, envolver-se com a vida pública e a política. Mas se o fizermos em desespero, com os olhos nos resultados e não nos princípios da ação, estaremos no caminho de Nimrode. Deus não escolherá o que ele não iniciou
Não me entendam mal; não quero dizer que esteja vedada, aos cristãos, a cobeligerância. Se, quando isso era justo, Abraão lutou até mesmo ao lado do rei de Sodoma, e depois intercedeu pela preservação da cidade, a despeito de sua impiedade, por que cristãos não poderiam, hoje, participar de um governo bolsonarista ou de um governo lulopetista, ou da burocracia de outros regimes imperfeitos, mas minimamente comprometidos com o Estado Democrático de Direito? É claro que podem (embora, por tudo o que já sabemos desses extremos, seja obviamente difícil fazê-lo). Os cristãos podem cooperar no que é justo, se houver reconhecimento de seus princípios teológico-políticos, e podem orar, pensando no bem dos 50, 30 ou 10 justos que ali houver, como fez o patriarca.
Mas há uma coisa que eles não podem: pertencer. Os cristãos já têm pátria, e ela está nos céus, como nos lembra o apóstolo Paulo em sua carta aos Filipenses (Fp 3,21). Vencer essa tentação nos dá uma liberdade tremenda. Podemos servir onde estamos, mas sem fazer alianças de sangue com ninguém. Isso significa que não lutamos batalhas nas quais não acreditamos, em nome do mero poder; não precisamos tratar o governante como se fora um messias divino; não precisamos negar a razão e a ciência para apoiar suas políticas, nem pintar de ouro suas trapalhadas. Os cristãos devem formar uma embaixada da Civitas Dei, cooperando com a sociedade e a política na medida em que isso ajuda a sinalizar a bênção divina que se aproxima.
Ao contrário da hegemonia babilônica, a presença cristã deveria se dar como uma comunidade dispersa, como a semente de Abraão se espalhou entre as nações, para abençoá-las. Um dia Deus reverteria a confusão de Babel, fazendo com que todos se entendessem; mas ele não o fez por meio da espada, como o tentaram Alexandre, Júlio César, Napoleão ou outros tantos, mas pelo milagre do Pentecostes contado nos Atos dos Apóstolos, quando todos os presentes falaram, em diferentes línguas, das mesmas grandezas de Deus. Da confusão Deus trará a sua ordem divina e seu reino universal. Deus, e ninguém mais.
Os cristãos podem cooperar no que é justo, se houver reconhecimento de seus princípios teológico-políticos. Mas há uma coisa que eles não podem: pertencer. Os cristãos já têm pátria, e ela está nos céus
Até mesmo se um partido de democracia cristã realmente sério fosse criado no Brasil, o “pertencimento” a ele deveria ser marcado por esse paradoxo, de uma presença fiel e historicamente responsável, mas ao mesmo tempo peregrina e voltada para a eternidade. Sua agenda política deveria ser estritamente principial, orientada por uma doutrina social bíblica. Sua ética política deveria ser contramoderna, visando não a eficácia maquiaveliana, mas a demonstração de um princípio e a apresentação de um testemunho. Seu sucesso político não estaria em ser o primeiro, mas em ser o último e servir como Jesus Cristo, promovendo o bem comum, e não o império.
Mas não é preciso um partido político para tanto. Aliás, a vocação abraâmica transcende o campo das forças políticas e pode se projetar em qualquer das esferas da sociedade moderna. Em todas elas, a lógica deverá ser a mesma: uma sociedade peregrina que promove o bem comum onde está, mas que não confunde nenhum projeto temporal com o bem supremo, e não faz nenhuma aliança com os reis de Sodoma. A comunidade cristã seria, assim, uma cidade sutil, já presente, mas ainda não, já visível, mas ainda nos ares, como um raio de esperança e um sinal do reino futuro.
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