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A websérie A Nova Família, produzida e distribuída pelo canal de Yago Martins, o “Dois Dedos de Teologia”, foi concluída na última terça-feira, com o sétimo e último vídeo, A desestatização do casamento.
O trabalho vem sendo reconhecido como uma das melhores apresentações populares da compreensão conservadora do casamento e da família. A série é consistentemente crítica da concepção revisionista do casamento, baseada em um monopólio de discursos morais sentimentalistas, e defende a visão conjugal da instituição.
Mas um dos pontos altos da série foi a revelação do trabalho intelectual de Dienny Riker, jurista e doutoranda em Direito na UFPA. Sua comunicação eloquente e magnética em diversos momentos da série gerou interesse e curiosidade. No sexto episódio foi anunciado o lançamento de seu livro, fruto da dissertação de mestrado na UFPA: A Razão do Casamento: uma reflexão filosófica a partir da lei natural. A genial Dienny Riker é a nossa entrevistada para a coluna da semana. Boa leitura!
Dienny, seu livro foi bastante aguardado e acabou de ser lançado pela editora Episteme. Qual é a ideia mestra, o “palmito” do livro?
O foco do livro é apresentar, em profundidade, o conceito do casamento a partir da Nova Teoria da Lei Natural. Ao longo de minha graduação em Direito, notei a ausência de argumentos positivos pelo casamento conjugal e decidi pesquisar o tema. Comecei pelo artigo What is Marriage?, de Robert George, Ryan Anderson e Sheriff Girgis, depois passei a ler os escritos de John Finnis e ele se tornou o principal referencial teórico da obra. No percurso metodológico, eu tinha dois caminhos: poderia ou 1. apresentar o debate em que Finnis está inserido, com suas críticas e respostas; ou 2. me aprofundar na construção dos fundamentos da teoria metaética que subjaz a doutrina do casamento como bem humano básico, assim como no possível lugar desse conceito no direito e na política. Diante do escasso conteúdo disponível sobre o tema em português, achei mais interessante a construção densa do argumento, para que ele possa vir a ser inserido no debate nacional. Minha intenção era conhecer bem esse posicionamento e, em uma segunda obra, debatê-lo e compará-lo a outros.
Assim, o foco do livro é o conceito do casamento como bem humano básico e, para compreendê-lo, começo, no primeiro capítulo, explicando a metodologia empregada no estudo dos atos e comunidades humanas; passo, no segundo capítulo, para a análise da razão prática e sua relação com a moralidade, em que apresento a visão de Finnis sobre o aspecto inteligível dos bens e da realização humana. No terceiro capítulo, tentei construir uma abordagem didática do pensamento de Finnis sobre o casamento e verificar seu desenvolvimento até alcançar o que chamei de “fase madura”, fase essa inserida no pano de fundo construído no capítulo dois. Finalmente, no quarto capítulo, apresento algumas considerações em teoria do direito e teoria política a partir da Nova Teoria da Lei Natural para expor, de modo ainda primitivo, algumas repercussões de toda a teoria apresentada na arena pública.
John Finnis e Robert George pesaram bastante no seu trabalho. O que você nos diz sobre suas influências intelectuais principais?
Como disse, meu primeiro contato com o tema foi um artigo que incluía a coautoria de Robert George – fiquei muito impressionada com a profundidade filosófica e clareza do trabalho. Finnis e George são ambos intelectuais respeitados e condecorados na academia. Finnis fez o doutorado em Filosofia na Universidade de Oxford, entre 1962 e 1965, sob a orientação do grande positivista Hebert L. A. Hart – que havia acabado de publicar a obra O conceito do direito (1961). Hart o convidou, em 1966, a escrever para uma coleção de livros em direito (a Clarendon Law Series) um volume tratando sobre direito natural. O resultado desta jornada foi a obra Lei Natural e Direitos Naturais (1980), que se tornou o principal referencial em teoria do direito sob a vertente da Lei Natural. Finnis lecionou em Oxford de 1967 a 2010, ano em que tornou-se professor emérito da instituição. Em 2019, ele foi condecorado pela rainha com o “Companion of the Order of Australia”, maior honra cívica que um cidadão australiano pode alcançar, pelo proeminente serviço prestado ao direito, à educação, à teoria jurídica e à investigação filosófica, e também como um autor, acadêmico e jurista inovador.
“Há muitos direitos civis e patrimoniais que podem ser regulamentados sem que se redefina o conceito de casamento e acho que esse seria o caminho mais adequado.”
Dienny Riker, doutoranda em Direito.
Robert George formou-se em direito em Harvard e cursou o doutorado sob a orientação de John Finnis, em Oxford. É professor catedrático de Teoria do Direito na Universidade de Princeton e diretor do James Madison Program in American Ideals and Institutions nessa mesma instituição. Também é professor visitante na Universidade de Harvard. Serviu no Conselho Presidencial de Bioética, na Comissão Americana sobre Direitos Civis (indicado pelo próprio presidente dos Estados Unidos) e na Comissão Mundial de Ética do Conhecimento Científico e da Tecnologia, vinculada à Unesco, da qual continua sendo membro consultivo. Tem doutorados honoríficos em Direito, Letras, Ciência, Ética, Letras Humanas, Direito Civil e Ciência do Direito. Recebeu, também, diversas condecorações, entre elas a United States Presidential Citizens Medal, outorgada pelo presidente dos EUA em 2008, e a medalha honorífica pela defesa dos direitos humanos da República da Polônia, o que demonstra seu engajamento com a defesa dos direitos fundamentais.
Uma pergunta que muitos fazem diante dos progressos do jusnaturalismo é a respeito de sua convivência com outros paradigmas. Se alcançarmos uma legislação mais protetiva para a família tradicional e o casamento conjugal, como ficaria a proteção de outros modos de vida?
Confesso que esse não foi um tema que desenvolvi no livro, não por subestimá-lo, mas por uma questão de gerenciamento de tempo; optei por focar na construção do argumento positivo pelo casamento conjugal, como mencionei acima.
Nada obstante, de partida, acredito que os casos devem ser analisados a partir de suas características e bens próprios. Então as primeiras perguntas que a perspectiva da lei natural imporia são “qual modo de vida? Qual o bem que essa associação quer promover? E por que o Estado deveria se envolver com ela?” Há muitos direitos civis e patrimoniais que podem ser regulamentados sem que se redefina o conceito de casamento e acho que esse seria o caminho mais adequado, por reformas legislativas pautadas em debates públicos e sérios. Também acredito que a academia brasileira tem muito a contribuir e poderia se debruçar sobre o tema, mas a sensibilidade da matéria e o clima belicoso que a circunda muitas vezes bloqueia o desenvolvimento sério de reflexões nessa área.
O próprio Finnis reconhece que “pode haver base para a lei do Estado divergir dos contornos moralmente verdadeiros do casamento, assim como a lei de Moisés sobre o casamento e o divórcio divergiu (...) por causa da ‘dureza do coração’ das pessoas”. Contudo, “quanto maior a divergência, maior o risco de que a inteligibilidade do casamento real e, portanto, sua desejabilidade, sejam obscurecidas. Como os casamentos, ao contrário dos sistemas jurídicos positivos, são realidades factuais cuja vida e duração dependem da compreensão que as pessoas têm da verdade do casamento (‘realidade’, ‘valor’) como um ideal, esse risco só pode ser aceito com relutância, cautela e vontade de ir ‘de volta’, bem como ‘para a frente’” – Parece-me que essa é a perspectiva mais adequada sobre as reformas e alterações no que concerne ao casamento.
Assim, apesar de não ter um caminho pronto, não vejo óbice para a inclusão de alguns direitos ou alterações jurídicas, desde que isso não obscureça por completo o significado e valor social e pessoal do casamento.
Na sua opinião, é viável uma forma de pluralismo de moralidades? Não como fato dado, mas como projeto nacional?
Esse é um assunto muito debatido na academia, tema, inclusive, de muitas obras clássicas, como Uma Teoria da Justiça, de Rawls. Não tenho uma posição madura e clara em relação a isso. A princípio, quando falamos de pluralismo de moralidade, parece que temos todos de “pular dentro” e abraçar. No entanto, seria conveniente um pluralismo de moralidades no tema da pedofilia? Da tortura? Do estupro? Da legitimidade ou não do assassinato por vingança? O que quero dizer é que esta pergunta é muito difícil e claramente nem todo tipo de pluralismo é bem-vindo. O que resta, então, é identificar qual é o critério que está sendo utilizado para dizer que o pluralismo nessa esfera moral vale, mas naquela não.
Então, me pareceria, inicialmente, que é necessário, sim, haver espaço para as pessoas tomarem suas próprias decisões e construírem suas vidas, mesmo que seja para realizar coisas que pareceriam incorretas sob alguma outra perspectiva moral. Não obstante, precisamos ter um mínimo moral que viabilize a convivência e o progresso social, e impeça atrocidades contra a dignidade humana – sobre esse mínimo, não dá para ser plural na prática (a academia, por outro lado, deve estar sempre incondicionalmente aberta). O problema surge, então, nos critérios que serão chamados para aferir esse mínimo. Em alguns temas, isso parece muito simples, como a promoção e proteção do direito à vida (adulta, pelo menos); em outros, a arena parece ficar mais entenebrecida, como a proteção e promoção do casamento, por exemplo.
Acho que concordamos que a ideia de “lei natural” é ainda frutífera e tem um futuro no pensamento social brasileiro. Mas a defesa dela no Brasil é majoritariamente católico-romana. O que é ser evangélica e trabalhar com essas categorias? Há pontos de tensão?
Não acho que a religião seja um obstáculo para trabalharmos esse pensamento. O principal precursor da lei natural, junto com Aquino, foi Aristóteles, e ele era pagão. O relevante não é a análise das posturas teológicas, mas o conteúdo dos argumentos filosóficos.
Que alguns desses argumentos sejam compatíveis com uma posição religiosa não diminui a sua razoabilidade filosófica. Você pode, por exemplo, defender o direito de não ser submetido à tortura a partir de considerações filosóficas como o imperativo categórico kantiano. Isso não muda o fato de que uma perspectiva cristã que defenda a inviolabilidade do corpo enquanto templo do Espírito Santo e portador da imagem de Deus fornece instrumentos para apresentarmos um argumento teológico contra a tortura. O fato de que a religião possa afirmar o mesmo que uma perspectiva filosófica não diminui o argumento filosófico e esse argumento tem de ser provado errado em seus próprios termos. É com esse espírito e abertura que me aproximo do estudo da lei natural, ou de qualquer outro estudo.
“É triste que as pessoas queiram reduzir outras completamente a uma ideia ou duas, como se, a partir disso, elas pudessem dizer quem ela é – e não é assim.”
Dienny Riker
Não acredito que haja uma perspectiva absolutamente neutra em nenhum lugar. Todos que escrevem têm alguma concepção religiosa, entendendo aqui até mesmo o ateísmo e o niilismo como posturas religiosas, e conquanto eu possa ter isso em mente ao ler os autores, isso não tira a legitimidade ou verdade que possa estar presente nos argumentos.
E como é, para você, ser mulher e conservadora na filosofia do direito?
Não acho algo extraordinário. Entre os conservadores, talvez o ponto que traga algum sentimento de inadequação ou desconforto seja mais com as gerações anteriores, no sentido de que são predominantemente homens. Mas isso é mais um incômodo pessoal meu do que resultado de algum tratamento que possa ter recebido, que, por sinal, é sempre muito cortês. Na minha geração já encontro outras mulheres com quem consigo me identificar mais e me relacionar a um nível mais profundo dentro da filosofia do direito (e pessoal). Além disso, no Pará, temos um grupo consolidado e forte academicamente, que me proporciona grandes momentos de aprendizado e partilha. Nunca achei que o fato de ser mulher fosse óbice para minha participação em nenhum lugar entre os conservadores.
Infelizmente, essa realidade não é sempre assim em grupos que têm outro alinhamento ideológico, em que a realidade de valorização da mulher não acompanha o discurso. Enquanto com a maioria de meus colegas conservadores (e muitos liberais também) posso ser completamente ouvida e contrargumentada, minha experiência na universidade, em regra, tem sido de hostilidade e rejeição de colegas que seguem vertentes divergentes mais radicais. O que eu, sinceramente, lastimo. É triste que as pessoas queiram reduzir outras completamente a uma ideia ou duas, como se, a partir disso, elas pudessem dizer quem ela é – e não é assim. Ideias erradas podem ser alteradas, mas apenas a partir do diálogo. Porém, para que o diálogo possa verdadeiramente existir, você precisa achar que as pessoas, e cada pessoa, realmente vale a pena, ou pelo menos vale alguma coisa. Se você a reduzir apenas a um “fascista” ou “comunista” ou qualquer outro “ista”, dificilmente você vai querer entender o que ela realmente acredita.
“A atuação do STF em alguns casos mais polêmicos tem contribuído para um clima de insegurança jurídica e usurpação do poder democrático”
Dienny Riker
Como não é novidade para ninguém, vários evangélicos como eu tem sido críticos de certas atitudes intelectuais e políticas de líderes evangélicos e de uma parcela dos fiéis também. O que você acha que precisa melhorar na postura evangélica pública?
Acho que a postura cristã no meio público deve observar três coisas: caráter, competência e credibilidade. O caráter é o básico da transformação que deve seguir a conversão e o processo de santificação, sendo exibido na postura honesta, corajosa, serena, dialógica e solidária. Antes de tudo, não estamos apenas na missão de mudar o Estado, mas de testemunhar a todos sobre Cristo, e isso começa a partir do bom caráter que os outros possam ver em nós.
A competência está relacionada à destreza técnica com que desempenhamos nossas funções. Seria bom e desejável que fôssemos os melhores em nossas respectivas áreas de atuação, mas creio que o dever do cristão é, na verdade, primeiramente autorreferencial: não se trata de ser o melhor, mas de ser o melhor que você pode ser. O cristão não pode ser medíocre, ele tem o dever religioso de ser bom no que ele faz, de buscar crescer, de entender, e de usar todo o seu talento e conhecimento como um meio, novamente, de dar testemunho de Cristo. As pessoas precisam reconhecer que você é bom no que faz e que o é, não a despeito de sua religião, mas justamente por causa dela, testificando, assim, tanto de sua competência, quanto da razoabilidade da fé que te move.
No mundo em que vivemos, os títulos são importantes e, por isso, o cristão deve, sim, buscar atender a universidade, fazer cursos, desenvolver habilidades técnicas e buscar os papéis que o legitimem no espaço público para atuar e influenciar profissionalmente.
Acho que essa é a chave da postura evangélica e de qualquer cristão que verdadeiramente deseje honrar a Cristo no espaço público e dar um testemunho coerente de sua fé.
Sendo você jurista, a pergunta é inevitável (ou quase): o que você pensa da atuação do STF nos últimos anos?
Em uma palestra do professor Luiz Barzotto, ele compartilhou conosco sua ideia das quatro dimensões da liberdade, que seriam: a dignidade da pessoa, a democracia, o Estado de Direito e a economia de mercado. Note que a lei é um componente fundamental da nossa liberdade – conhecer as exigências do Estado e da sociedade sobre mim é fundamental para que eu saiba até onde posso ir e atue livremente na sociedade. Além disso, a principal razão pela qual o direito tem poder sobre mim é porque, no exercício democrático, por meio de meu voto, eu legitimo um representante para exercer esse poder, ainda que, no fim, a norma advinda possa ser contrária ao que eu gostaria. Não obstante, como diz o parágrafo único do artigo primeiro de nossa Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Parece-me que a atuação do STF em alguns casos mais polêmicos tem contribuído para um clima de insegurança jurídica e usurpação do poder democrático. Sobre isso, recordo-me do caso na Corte de Apelações do Sexto Circuito referente às leis estatais promulgadas com o fito específico de afirmar o casamento como uma união monogâmica e heterossexual em alguns estados nos Estados Unidos. Acho que o voto todo merece ser lido, mas transcrevo abaixo um trecho que contribui para nossa reflexão:
“A teoria da constituição viva se baseia na premissa de que toda geração tem o direito de governar a si mesma. Se essa premissa, por um lado, impede os juízes de insistir em princípios que a sociedade ultrapassou, por outro, ela também impede os juízes de antecipar princípios que a sociedade ainda não abraçou. Segue-se que os Estados devem gozar de alguma latitude em questões de tempo, pois pessoas razoáveis podem discordar sobre quando as normas públicas evoluíram o suficiente para exigir uma resposta democrática.” (p. 35)
“Apesar de todo o poder que acompanha a autoridade de interpretar a Constituição dos Estados Unidos, os tribunais federais não têm capacidade duradoura para mudar o que as pessoas pensam e acreditam sobre novas questões sociais. Se os demandantes estão convencidos de que o litígio é a melhor maneira de resolver o debate de hoje e mudar cabeças e corações no processo, quem somos nós para questionar? Contudo, talvez esse não seja o único ponto. Sim, não podemos negar que pensamos que os reclamantes merecem mais – vitórias conquistadas por meio de iniciativas e legislação e a maior aceitação que vem com elas. Mas talvez o povo americano também mereça mais – não apenas no sentido de ter uma palavra a dizer por meio de representantes no Legislativo, em vez de por meio de representantes nos tribunais, mas também no sentido de ter de enfrentar a questão. Os direitos não precisam ser contramajoritários para contar. [...] O objetivo não é criar uma cultura em que a maioria dos cidadãos dignifique e respeite os direitos dos grupos minoritários por meio de leis majoritárias, em vez de por meio de decisões emitidas pela maioria dos juízes da Suprema Corte? É perigoso e humilhante para os cidadãos presumir que nós, e somente nós, podemos entender de forma justa os argumentos a favor e contra o casamento gay.” (p. 37)
“Se a sociedade realmente abraçou novos valores, não há motivo para buscar o Judiciário, ela se fará valer em seus representantes.”
Dienny Riker
O povo brasileiro também merece o poder para debater as questões controversas e decidir sobre elas democraticamente. Se a sociedade está mudando, é de esperar que o Poder Legislativo, representante das ideias populares, também abrace essas mudanças e represente ali os argumentos do povo e todas as suas preocupações. Veja, se a sociedade realmente abraçou novos valores, não há motivo para buscar o Judiciário, ela se fará valer em seus representantes. A busca pelo Judiciário para tratar sobre questões morais controversas atuais parece muito mais uma evidência de que a sociedade, na realidade, não mudou naquele sentido específico e, ainda assim, o STF tem interferido em assuntos que não são de sua alçada.
Em especial, é um ato absolutamente ultrajante a tipificação criminal via Judiciário. Como pode um novo tipo penal, com poder de tirar a liberdade de brasileiros, ser-lhes imposto pelo meio judiciário? A despeito do conteúdo e dos valores eventualmente positivos que a medida promova, a Constituição diz que o poder pertence ao povo que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes – o que não é o caso dos ministros do Supremo. Se os limites do poder desse órgão não são claros, e se não somos nós quem promulgamos as leis que nos regem, parece-me que estamos, agora sim, um pouco mais distantes da verdadeira liberdade que o direito deveria nos proporcionar.
E sobre o mundo acadêmico hoje? O que poderia ser feito para reforçar o respeito à pluralidade, ao dissenso e ao diálogo? Alguma ideia?
Uma coisa que tenho observado nos programas de pós-graduação, em regra, é a internalização do discente da postura de seu orientador. Os orientandos de professores mais abertos ao diálogo geralmente são, também, mais abertos ao diálogo. Então, acho que a primeira coisa é o exemplo – começa com os professores, ativamente, adotando e encorajando essa postura.
Depois, creio que precisamos ter uma perspectiva não reducionista das pessoas e encontrar pontos de convergência – talvez haja dissenso sobre uma ideia, mas tem aquele esporte de que gostamos juntos, ou aquela música, ou aquele livro, ou aquela outra ideia com que concordamos. Considerar outra pessoa enquanto pessoa, em mais de um nível de sua complexidade, as vezes pode ser assustador na medida em que a retira da caixa abstrata em que possamos querer enquadrá-la e nos força a vê-la como um alguém concreto, que, ao mesmo tempo, quebra e não cabe em um único paradigma de definições pré-estabelecido. A percepção concreta do outro aumenta as chances de sermos solidários, de simpatizarmos e de, efetivamente, o ouvirmos.
Só que, quando ouvimos alguém, sempre corremos o risco de mudar de ideia – por isso, às vezes, pode ser difícil ouvir. Entretanto, a democracia não é apenas o direito de falar, mas inclui também o direito de ser ouvido. Quem luta por ideal democrático, mas não sabe ouvir é uma pessoa simplesmente incoerente ou deliberadamente maliciosa.
“Muitas vezes, as pessoas não compartilham o que verdadeiramente acreditam porque têm medo de serem hostilizadas – acho que hoje isso é real, principalmente entre os conservadores, na academia.”
Dienny Riker
Então, para superar o medo de ouvir, precisamos admitir a possibilidade de estar errados e amar algo mais do que nossos próprios interesses – precisamos amar a verdade. E, aqui, o cristão possui uma vantagem: uma vez que a plenitude do conhecimento é o próprio Logos, o próprio Cristo, o amor à verdade é um bem que o chama para fora de si, em direção ao próprio Deus. Por isso, o cristão nunca pode ter medo da verdade, ele nunca deve ter medo de pensar coerentemente, de conversar, de conhecer.
Por outro lado, no contexto atual existe também a pressão para os dissidentes se “amoldarem”. Muitas vezes, as pessoas não compartilham o que verdadeiramente acreditam porque têm medo de serem hostilizadas – acho que hoje isso é real, principalmente entre os conservadores, na academia. Isso também precisa mudar. Precisamos falar abertamente o que pensamos. Às vezes, as pessoas não falam porque não têm como fundamentar suas ideias; outras vezes, porque estão com medo de não serem aceitas. Aos primeiros, é importante falar porque isso vai incentivá-los a estudar mais e a fundamentar melhor suas próprias ideias (ou abandoná-las por outras que realmente tenham fundamento). Aos segundos, a única maneira de você ser aceito é sendo quem você é. Se você tem de fingir que é algo que não é para ser aceito, você já foi rejeitado – você nunca, nem sequer, se deu uma chance. A experiência de se entregar a outra pessoa em amizade, de ser quem se é e, ainda assim, ser aceito pelo outro é uma experiência maravilhosa – se você tem de “fingir” para ser aceito ou ter um amigo, você nunca foi aceito, e você não tem esse amigo.
Óbvio que não estou dizendo que precisamos ser conflituosos. Apenas acredito que, ainda que haja pressão pelo alinhamento ideológico em algumas instituições, se você for você mesmo, você terá maiores chances de encontrar outros como você, de refinar suas próprias ideias e de contribuir para um ambiente plural na academia.
Em suma, creio que o respeito à pluralidade, ao dissenso e ao diálogo pode ser promovido pelo: exemplo hierárquico, empatia, solidariedade e amizade, amor à verdade, coragem e honestidade.
O que você gostaria de dizer a jovens cristãos e cristãs envolvidos no estudo do direito hoje?
Permaneça firme, forte e fiel! Lembre-se sempre de que Cristo pode mudar mais vidas do que os seus argumentos. Busque aprender, mas tenha sempre um grau de independência no sentido de que sua segurança esteja firmada na obra redentora de Cristo e não na sua própria. Assim, quando as frustrações e adversidades vierem, você prevalecerá. Deus abençoe a todos nós!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos