O recente documentário O Dilema das Redes, do cineasta americano Jeff Orlowski, deixou muita gente de cabelo em pé. O problema que ele apresenta não chega a ser novidade; a ascensão do Big Data e o incrível potencial de investigação e modelagem comportamental já vinham sendo discutidos há muito tempo, e contribuíram com estudos modernos de contágio social. Esse ponto tem sido objeto de estudos científicos como o desenvolvido por Eric Araújo, do Departamento de Computação da Ufla, e que já contribuiu com a nossa coluna. Os usos publicitários e comerciais disso também são bem conhecidos; a informação obtida pelas Big Techs é empregada estrategicamente para modificar o mercado e gerar demanda.
O que o documentário fez de especial foi levantar com maior clareza e grande publicidade os dilemas éticos dessa atividade. A intervenção promovida pelas grandes companhias de mídia digital consiste realmente em um grande programa de condicionamento e manipulação comportamental, muito mais agressivo do que parece. De nudge em nudge o usuário é viciado em novos padrões comportamentais; suas emoções são interpretadas por meio de inteligência artificial e manipuladas com precisão para pôr indivíduos a serviço de interesses econômicos.
A sociedade da transparência deixa a todos nus, e tão nus que não há mais nada para ver
Parece que – agora sim – temos a nossa “Matrix”: uma grande interface de manipulação cognitiva e emocional que nos transforma em fontes de energia para o sistema de consumo.
Com risco de colocar mais peso sobre as almas atribuladas dos usuários das mídias sociais, eu gostaria de introduzir um outro “dilema das redes”, que está em uma relação interna com o dilema do documentário: refiro-me à reformatação sistemática das relações humanas pela internet.
O panóptico digital
O problema do panóptico digital foi levantado por Byung-Chul Han no final de seu livrinho Sociedade da Transparência. Han nota que vivemos em uma “sociedade positiva”, que rejeita toda “negatividade”. A negatividade é aquilo que é opaco e intransparente; que não conseguimos enxergar totalmente e, por isso, controlar. Para haver máximo controle é necessário máxima transparência; daí que na sociedade moderna há um esforço para eliminar toda opacidade.
O problema é que alteridade é opacidade; o outro é o que me transcende, que não posso absorver, que não posso prever completamente nem entender completamente. O outro me faz lembrar que tenho limites, que não posso tudo, que posso aceitar minha relativa ignorância.
A sociedade da transparência deixa a todos nus, e tão nus que não há mais nada para ver. É uma sociedade pornográfica. E por isso ela destrói o Eros; pois o Eros é paixão pela alteridade, pelo diferente, o que lhe falta. A pornografia destrói essa distância, e transforma o outro em um objeto que não tem interioridade, mas é apenas a casca: “A sociedade exposta é uma sociedade pornográfica; tudo está voltado para fora, desvelado, despido, desnudo, exposto. O excesso de exposição transforma tudo em mercadoria”, afirma Han.
Não há lugar para Deus na sociedade da transparência, porque ele não tem perfil verificado no Twitter
Ele explica que não se trata apenas da pornografia literal aqui; há uma pornografia da informação. Tudo o que o outro é fica reduzido a informações que já estão disponíveis, então eu já sei o que é o outro e como usá-lo ou não. Não existe mais mistério; tudo poder ser calculado e planejado.
Por que isso acontece? Vale lembrar novamente Christopher Turcke, para quem vivemos na sociedade do “sou percebido, logo existo”. A importância de cada um é confirmada na medida em que se pode colocar sua imagem em público e mostrar-se bem. Todos precisamos de confirmação social; mas, com a fragmentação dos modos tradicionais de validação do Self, como a comunidade, a religião e a família, os indivíduos buscam validação e aprovação em um grande sistema de autopromoção social. É o que une as políticas de identidade e as mídias sociais.
Mas isso gera um efeito colateral: todos precisam tratar e disponibilizar a informação sobre si, e vigiam a informação que outros dão de si mesmos. As mídias sociais se tornaram, segundo Han, um grande “panóptico digital”. O panóptico proposto por Jeremy Bentham era um presídio no qual um agente carcerário poderia ver todos os presos sem que eles se vissem ou vissem um agente. E por meio dessa vigilância poderia ser feita a reeducação moral dos condenados. Mas a sociedade contemporânea criou um grande panóptico digital, no qual todos vigiam todos e são vigiados por todos.
O encontro pessoal, em toda a sua complexidade, quando nos aproximamos de alguém que tem interioridade e que não se submete aos nossos estereótipos, nos confronta, incomoda, mas também apaixona e causa admiração. Essas experiências de alteridade ensaiam e antecipam a grande experiência com Deus, totaliter aliter, o totalmente outro, infinitamente apaixonante e aterrorizante. Mas não há lugar para esse Deus na sociedade da transparência, porque ele não tem perfil verificado no Twitter. E com isso, aos poucos, o lugar para seres humanos reais desaparece.
O panóptico digital destrói, então, o Eros. A transparência total é invisibilidade total. E as pessoas deixam de se conhecer, de fato.
Mas como chegamos ao panóptico?
O amor liquefeito
Em outras ocasiões levantamos nessa coluna o que consideramos o espírito e o problema moral da civilização moderna: o liberalismo terapêutico. Liberalismo, no sentido lato, porque a nossa civilização tem uma força claramente centrípeta e atomizadora, fazendo todas as coisas girarem ao redor do indivíduo, de sua plena autonomia, integridade e autodeterminação. O mercado gira ao redor do indivíduo, assim como a educação com foco na emancipação individual, e o Estado é aos poucos domado para se tornar um sistema de democracia liberal constitucional, reconhecendo esse primado do individuo.
Terapêutico porque, segundo a contribuição do antropólogo Philip Rieff, a modernidade gerou um novo paradigma do humano, que, diferentemente de outros paradigmas clássicos, como o heroico, o religioso ou o racionalista, tem como propósito a maximização do bem-estar e da autorrealização. Rieff chamou de “homem psicológico” a esse novo paradigma: “o homem religioso desejava ser salvo... o homem psicológico deseja ser agradado”.
Toda sociedade tem uma terapêutica, segundo Rieff. A função da terapêutica, em cada cultura, é mediar indivíduo e sociedade; promover o equacionamento entre as demandas internas de cada pessoa e de suas microrrelações sociais com as exigências de certa cultura e civilização.
Mas, à diferença das terapêuticas de todas as outras culturas, os modernos criaram uma terapêutica anticultural, tema também tratado recentemente por Patrick Deenen; em seu âmago, a nova terapêutica não promove um ajustamento de Self e sociedade, mas incute um compromisso moral com a batalha contra toda imposição social, contra todos os estereótipos, tradições, uniformidades morais e modos sacrificiais de existência. A sociedade anticultural, comprometida com a revolução permanente do capitalismo de hiperconsumo, precisa manter uma permanente desinstitucionalização.
A nossa civilização tem uma força claramente centrípeta e atomizadora, fazendo todas as coisas girarem ao redor do indivíduo, de sua plena autonomia, integridade e autodeterminação
A ideia de uma modernidade líquida, com suas relações líquidas e com amores líquidos, desenvolvida por Zygmunt Bauman, deve ser entendida como a descrição do tipo de sociedade necessária ao liberalismo terapêutico. Ela não é causa, mas produto de um programa. A liquefação da cultura, dos valores, das instituições e das estruturas da vida comunitária é necessária à plena emancipação do individuo, em sua busca por bem-estar, autoexpressão e autorrealização.
A terapêutica moderna e secular visa formar e assistir ao indivíduo para que jamais desista dessa emancipação, e para que aprenda a ser também líquido; e se propõe a tratar de suas feridas psicológicas, em sua guerra contra os limites e coerções da cultura.
No entanto, como diz Gilles Lipovetsky, “narciso libertado é, também, narciso acorrentado”. O Self moderno é mantido vivo por um mercado terapêutico, que anestesia suas dores, e por um Estado terapêutico, que vigia e pune as invasões da liberdade individual, e fornece condições para o máximo acesso ao bem-estar e autorrealização.
Essa desinstitucionalização e liquefação das estruturas da vida comunitária cria a oportunidade para novas formas de aproximação humana e de relacionamentos. Mas quem pode canalizar esse mundo líquido? As grandes forças que dominam a sociedade moderna: os campos do mercado e do Estado.
Capitalismo afetivo on-line: o “liquidificador”
Em O Amor nos Tempos do Capitalismo, Eva Illouz discute um dos mais curiosos e preocupantes resultados da absorção da afetividade pelo capitalismo de consumo. A tese de Illouz é de que a afetividade se tornou capitalista, e que o capitalismo se tornou afetivo; vivemos um laissez-faire emocional, que criou novas pobrezas e vulnerabilidades psicológicas, e também um sistema de consumo que joga o tempo inteiro com as nossas emoções. Elas foram anexadas, e se tornaram aspectos de um sistema de vendas.
Um dos lugares estudados por Illouz, a esse respeito, é o namoro on-line. Investigando websites de relacionamento e de encontros, ela detectou uma retração da paixão, e a emergência de um tipo racionalizado de aproximação amorosa. Onde, antes, pessoas se encontravam em lugares públicos ou privados, como festas de amigos, feiras, casamentos, e experimentavam o choque psíquico da atratividade holística, envolvendo olhares, cheiros, movimentos, entonações, e uma clara “alteridade”, – o saber pouco ou nada sobre a pessoa atraente –, o que temos agora é o cálculo racional.
O fato é que, nesses sites de relacionamento, muita coisa ocorre antes de um match, mas tudo é bastante abstrato; informações sobre altura, peso, idade, estudos, interesses e hobbies, gostos pessoais precedem o encontro. Se, por um lado, isso cria a cultura de escolher relacionar-se ou não com as pessoas antes mesmo de um encontro realmente pessoal, por meio de filtros prévios, por outro lado permite que cada um construa racional e intencionalmente a sua imagem pública, o seu facebook.
Uma espécie de perda moral e um empobrecimento da experiência humana está em curso
Assim, um filtro cognitivo é passado antes mesmo da experiência positiva. É verdade que, mais cedo ou mais tarde, um encontro pessoal há de acontecer quando há o match; mas inúmeras possiblidades são eliminadas quando construímos de forma tão intencional o estereótipo das pessoas com as quais poderemos nos relacionar e com as quais jamais nos relacionaremos.
Paradoxalmente, então, essa “racionalização” capitalista da afetividade é, também, um empobrecimento enorme, visto que a experiência cognitiva humana não funciona assim. Não evoluímos para conhecer pessoas e estabelecer relacionamentos significativos por meio de filtros abstratos, mas por meio de encontros holísticos e da contemplação do rosto do outro.
Assim, Eva Illouz descobre uma profunda mutação no modo como as relações românticas se processam na atualidade e, deixando um pouco o olhar estritamente analítico, admite que uma espécie de perda moral e um empobrecimento da experiência humana está em curso: “a ordem em que as interações românticas são tradicionalmente conduzidas se inverte: se a atração costuma preceder o conhecimento de outra pessoa, na rede o conhecimento precede a atração ou, pelo menos, a presença física e a corporalização das interações românticas”.
A tese de Illouz nos ajuda a compreender melhor o que significa o processo de liquefação das relações humanas orgânicas: trata-se de sua substituição por relações artificiais, reguladas por uma ética terapêutica rígida e por uma lógica de consumo. O centramento subjetivo exige uma nova afetividade, uma “nova família”, uma nova sexualidade, e uma nova sociabilidade.
É como ocorre quando deixamos o suco de laranja natural por um suco de laranja processado; os critérios e o modo desse processamento são ambíguos e não garantem a reprodução da experiência original. Assim seria a afetividade passada nos liquificadores da modernidade.
De algum modo, então, a lógica interna do capitalismo emocional parece ser acelerada por meio da internet: “A tecnologia da internet funde duas grandes lógicas culturais ou maneiras de mobilizar o eu: a da psicologia e a do consumismo. Usando e confiando na lógica do consumismo e da psicologia, a internet radicaliza a demanda de se encontrar para si o melhor negócio (econômico e psicológico)”, diz Eva Illouz.
Bauman notou a mesma coisa, ao avaliar o papel da internet na lógica da afetividade líquida: “O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais frequentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para poderem condensar-se em laços... Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, e também para serem rompidos. A distância não é obstáculo para se entrar em contato – mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à parte”.
O foco de Illouz é, claramente, um tipo particular de relação afetiva: a relação romântica. Mas é claro que o padrão da racionalização e achatamento da experiência social se derrama para outros campos da vida. O mesmo tipo de filtro abstrato é aplicado ao se escolher amigos, lugares de passeio, comidas, comunidades, coletivos sociais e – assunto de minha preocupação especial: igrejas, no campo da religião.
Não evoluímos para conhecer pessoas e estabelecer relacionamentos significativos por meio de filtros abstratos, mas por meio de encontros holísticos e da contemplação do rosto do outro
Tornou-se muito mais comum, agora, que pessoas pesquisem por igrejas na internet, e que se aproximem com máxima segurança, aplicando filtros cognitivos, éticos e estéticos de forma racional, exatamente como ocorre com relacionamentos românticos. Com isso os estereótipos mentais sobre o que igrejas deveriam ser e pensar, sobre como deveriam cultuar e como poderiam agregar na imagem pessoal, ganham maior precedência. Não é que não houvesse antes tais estereótipos; é que a experiência da presença pessoal foi substituída pela mediação abstrata, de modo muito mais sistemático.
Alguém poderia objetar, naturalmente: “não seria um ganho a possibilidade de comparar opções de igrejas on-line e ter a liberdade de escolha crítica?” Sim, num certo sentido; do ponto de vista da liberdade religiosa e da máxima abertura para a pregação do evangelho, é bom ter uma sociedade com certa liquidez e mobilidade das crenças.
Mas isso não é toda a história; esse processo dificulta o pertencimento, pois faz com que as razões para participar de uma comunidade sejam restringidas a um conjunto de motivos que favorece a autorrealização do indivíduo, e elimina das considerações elementos que favorecem o pertencimento, como a lealdade a alguém, a experiência coletiva do sagrado, a herança de uma narrativa comum, e todos os elementos que Roel Kuiper descreve como necessários para formar “capital moral” – caráter e hábitos virtuosos.
Conhecimento pessoal
O estilo de aproximação humana promovido pelas redes sociais parece ser, portanto, abstrato e desencarnado. É claro que isso pode ser facilmente contornado, por meio do encontro pessoal. Mas isso foge da questão: os hábitos interpretativos cultivados na vida on-line treinam o nosso cérebro para a estereotipificação sistemática do outro, pela aplicação de filtros de categorias abstratas, estabelecidos em parte pelo imaginário do consumo emocional e em parte pelo imaginário identitário moderno. A realidade da pessoa recede e se afoga sob o entulho de preconceitos, julgamentos enviesados e mentalidade tribal. Eva Illouz acerta na mosca: “A internet proporciona um tipo de conhecimento que, por estar desinserido e desvinculado de um conhecimento contextual e prático da outra pessoa, não pode ser usado para compreendê-la como um todo”.
Para os antigos, o conhecimento não seria um edifício de crenças verdadeiras e justificadas; não seria um fenômeno meramente proposicional. Para os hebreus o conhecimento era um encontro com a própria realidade multidimensional, envolvendo crenças, sim, mas também memória, percepção, confiança e o próprio corpo. Não por acaso, a união sexual é descrita no Antigo Testamento como um “conhecer”: “Adão conheceu Eva”.
O teólogo Dru Johnson observou que, entre as teorias modernas do conhecimento, a que provavelmente mais se aproxima da visão bíblica é a de Michael Polanyi. Polanyi, cientista e um dos maiores filósofos da ciência do século 20, propôs a ideia de saber tácito, e desenvolveu uma teoria do conhecimento pessoal. O saber tácito é tudo o que sabemos e que usamos para entender um problema, um fato particular, um fenômeno que captura a nossa atenção; e “conhecimento pessoal” é uma referência ao modo como tudo o que somos como pessoas compõe o nosso órgão cognitivo.
Os hábitos interpretativos cultivados na vida on-line treinam o nosso cérebro para a estereotipificação sistemática do outro
Podemos fazer perguntas, interrogar, questionar e duvidar de muitas coisas quando tentamos entender uma ideia, um ente ou um acontecimento que entra em nosso campo de atenção. Mas para entender esse fato novo, precisamos de referências; nós examinamos esse fato utilizando nossos saberes prévios, experiências parecidas com essa, métodos de observação, opinião de outros, e até mesmo a linguagem que compartilhamos com os outros. Usamos nossos corpos e, se possível, os cinco sentidos!
A descoberta de Polanyi nos ajuda a entender o quanto a experiência cognitiva totalmente racionalizada pelas mídias sociais é pobre. Pois ela nos leva a concluir julgamentos desencarnados e fazer escolhas unidimensionais. Não fomos criados para conhecer pessoas apenas conferindo um pequeno conjunto de critérios abstratos. Não evoluímos para decidir se gostamos ou não de alguém sem saber se a pessoa é fedida ou cheirosa! Precisamos ouvir sua voz e testemunhar sua respiração.
É por isso que, para vermos a glória de Deus, segundo o apóstolo João em seu Evangelho, era necessário que o verbo se fizesse “carne” e habitasse entre nós por um tempo. Aqui temos uma combinação importante: para que haja a habitação, é preciso que haja corpo, tempo e espaço. A habitação é necessária para uma plena compreensão da pessoa de Deus e, podemos dizer, de qualquer pessoa.
Não é de se admirar, como nota Patrick Deenen, que o liberalismo destrua as experiências de corporeidade, pertencimento espacial e temporalidade. O liberalismo não se dá bem com a finitude.
Assim, o que sabemos é mais do que o que podemos dizer (Polanyi). O saber explícito, proposicional, é a ponta do iceberg; é uma pequena parte de toda a nossa experiência cognitiva. E muitas vezes confiamos demais nessa pequena ponta. Isso, segundo o apóstolo Paulo, é a ciência que incha, que pode nos tornar orgulhosos. O saber completo, por outro lado, é o saber do amor. Aquele que ama conhece a Deus, diz João. Aquele que ama sabe que Deus o conhece, ou seja: está numa relação, que é algo bem maior do que as meras informações que temos sobre uma pessoa.
Se o conhecimento opera desse modo, entendemos por que a internet se tornou uma aceleradora da atual crise nas relações humanas e, particularmente, do processo de polarização radical. Nas mídias sociais, o conhecimento explícito é a base para julgar todas as coisas, eliminando-se o papel da confiança, da intuição, da habitação. Na internet recebemos uma versão pasteurizada, ou processada, das pessoas, que não é o que encontramos habitando com elas, “apalpando-as”, como o apóstolo João disse ter feito com o Verbo da Vida.
E com isso podemos voltar a Byung-Chul Han.
A sociedade da suspeita
“A confiança só é possível em uma situação que conjuga saber e não saber... se de antemão sei tudo, já se torna supérflua a confiança. Transparência é um estado no qual se elimina todo e qualquer não saber, pois onde impera a transparência já não há espaço para a confiança. Em vez do mote transparência cria confiança dever-se-ia propriamente dizer: a transparência destrói a confiança”, diz Byung-Chul Han.
A partir da internet não confiamos em ninguém, pois tudo deve ser exposto e vigiado. O julgamento é imediato e rápido, e não se dá o crédito e o tempo para saber melhor. Confiar reduz o controle; queremos saber para não precisar confiar.
Assim, é mais fácil estereotiparmos as pessoas. Estereotipar torna-se um hábito excessivo, um vício cognitivo. E outros vícios cognitivos passam a controlar nossos engajamentos: vieses afetivos, viés intragrupal e pensamento tribal, e preconceitos de todos os tipos.
Não pense que sabe de fato o suficiente sobre qualquer perfil que atravessa a sua vida on-line. Tenha amigos reais, e uma comunidade real, e pessoas em quem confiar
Fazemos isso ao interpretar “amigos” na internet, amigos de amigos, possíveis parceiros românticos, pastores, teólogos, artistas cristãos, e também igrejas. Passamos a saber “tudo” sobre todos, mas na verdade não sabemos nada. E baseamos todas os nossos julgamentos nesses filtros abstratos. Estamos todos no controle de tudo, sabemos tudo, e não confiamos em ninguém.
Centramento subjetivo, descorporificação e estereotipificação sistemática: é evidente que tais processos, extremamente destrutivos para a vida social, tornam as relações humanas on-line um elemento químico profundamente instável. Como lidar com esse processo de um ponto de vista sistêmico é um problema difícil demais de administrar; inclino-me a pensar que ele é irreversível, mas também que tornará – a despeito de seus detratores cultos – as comunidades religiosas em verdadeiros oásis de relações humanas reais.
Mas eu teria um conselho mínimo e despretensioso ao leitor: não desconfie de todos, e não tente controlar tudo. Não pense que sabe de fato o suficiente sobre qualquer perfil que atravessa a sua vida on-line. Tenha amigos reais, e uma comunidade real, e pessoas em quem confiar. E suspenda seus julgamentos on-line.
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