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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Abuso sexual

Assassinato de almas na Convenção Batista do Sul

(Foto: Tumisu/Pixabay)

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“Tudo isso é muito mais do que uma crise. É ainda mais do que apenas um crime. É blasfêmia. E qualquer um que se importe com o céu tem a obrigação de estar furioso.” (Russell Moore)

A raiva é tratada na Bíblia como um pecado, uma “obra da carne”, segundo listas de vícios e virtudes como as que encontramos nas cartas do apóstolo Paulo. Mas e quanto a Deus? Ele também aparece irado nas Escrituras. “A ira de Deus se revela do céu contra a impiedade e injustiça dos homens”, anuncia o mesmo apóstolo Paulo. A raiva pode ser o mero derrame da agressividade, motivada por alguma patologia moral, como a inveja, o egoísmo ou um viés intragrupal, mas quando se volta contra a impiedade e injustiça pode ser justa e boa. Pode ser até mesmo obrigatória.

O eticista e teólogo batista Russell Moore publicou um artigo na Christianity Today, na semana passada, compartilhando seus sentimentos diante do relatório da Sexual Abuse Task Force da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos (SBC). E o sentimento dominante é esse mesmo: “quando li o relatório, percebi que eu não conseguia deslizar a tela e passar para a próxima página, porque minhas mãos estavam tremendo de raiva”. O título do artigo? “O apocalipse da Convenção Batista do Sul”.

E a raiva de Moore foi dupla. Em primeiro lugar, pela sujeira desesperadora que foi encontrada, uma sujeira com o cheiro específico da maldade e do abuso. A raiva por tantas mulheres, crianças e fiéis que tiveram a sua confiança traída e a sua fé abalada por líderes que deveriam cuidar de suas almas. Christa Brown, uma sobrevivente de abuso sexual tornada uma das mais importantes ativistas na área, diz que sua fé ficou neurologicamente conectada com a história do abuso e dos esforços de líderes religiosos para neutralizar o caso. A coisa toda é, em sua expressão absolutamente perfeita, um “assassinato de almas”.

Os abusadores eram protegidos, sendo frequentemente transferidos para outras igrejas; os crimes permaneciam sem comunicação; e as vítimas e acusadores eram difamados e assediados

O caso é que, como se não bastasse a mera ocorrência desses abusos, parte da liderança da enorme denominação dos Southern Baptists (com mais de 15 milhões de membros e 46 mil igrejas) construiu um sistema para identificar os casos de abuso com o fim de acobertá-los. Os abusadores eram protegidos, sendo frequentemente transferidos para outras igrejas; os crimes permaneciam sem comunicação; e as vítimas e acusadores eram difamados e assediados. Um grande escritório de advocacia, que serviu à denominação por 60 anos, aconselhava e auxiliava membros do Conselho Executivo da denominação a silenciar acusações e eximir a instituição de qualquer culpa, para evitar riscos políticos e jurídicos. E assim o comitê executivo da SBC reuniu uma lista secreta de 700 pastores envolvidos com o problema e não fez absolutamente nada.

As justificativas? Uma, institucional, era a de que, dado o sistema democrático e congregacionalista dos Batistas do Sul, a denominação não teria poder para interferir nas igrejas locais. Para quem não sabe, esse é um ponto crucial para os batistas: cada congregação local é uma igreja independente, e elas se unem apenas espontaneamente em uma federação de igrejas, uma convenção. Esse princípio torna o movimento batista um modelo de sucesso na evangelização e formação de liderança local; um modelo grassroots. Esse valor foi manipulado, no entanto, para evitar a necessidade de compliance ético na denominação.

A outra justificativa, digamos, mais “espiritual”, foi que essas denúncias, ainda mais inflamadas com o movimento #MeToo, desanimariam os membros, levariam à desfiliação de igrejas e a quedas de arrecadação no plano cooperativo, que distribui recursos para missões e plantação de novas igrejas. O plano, em si, é uma coisa muito boa – muitas igrejas negras na convenção se beneficiam desse plano, por exemplo. Assim, Augie Boto, presidente do Comitê Executivo até 2019, tratava as acusações contra a SBC como um “esquema de Satanás”, que atrapalharia a evangelização.

É inacreditável constatar que para muitos desses pastores e executivos denominacionais a ação satânica estaria no clamor das vítimas, e não no seu acobertamento de predadores sexuais. A verdade é que o seu esquema de silenciamento e sua cultura de abuso eram o próprio esquema de Satanás para destruir a fé e o testemunho de milhões de crentes e milhares de igrejas.

Daí a segunda raiva de Moore: quando ainda executivo da SBC, ele pressionou e obteve a instalação de uma comissão de investigação, mas a tal custo político e psicológico que ele acabou abandonando a Comissão de Ética e Liberdade Religiosa da denominação. Moore se demitiu em fevereiro de 2020 por meio de uma carta de enorme ressonância, na qual acusou a liderança da SBC por sua tolerância com abusos sexuais e racismo. A carta e a saída de Moore foram descritas como um “terremoto” num artigo da revista The Atlantic. Depois de descrever a corrupção no sistema, o teólogo afirmou, na carta datada de 24 de fevereiro de 2020:

“Estou tentando dizer isso a vocês tão claramente quanto é possível, meus irmãos e irmãs: essas são as táticas que têm sido usadas para criar uma cultura na qual incontáveis crianças têm sido rasgadas aos trapos, na qual mulheres têm sido estupradas e depois esfaceladas.”

É inacreditável constatar que para muitos pastores e executivos denominacionais a ação satânica estaria no clamor das vítimas, e não no seu acobertamento de predadores sexuais

E agora, com a publicação do relatório, Moore constatou “uma realidade ainda mais perversa e sistêmica do que eu imaginei ser possível”. E, no entanto, ele foi perseguido, investigado e “cancelado” até o ponto de deixar a denominação por pastores e líderes que, mesmo quando não envolvidos diretamente no esquema, deram seu suporte a um modelo de governança autoritário, machista, sem transparência e ideologicamente viciado. Daí, creio eu, o outro lado da sua raiva. A raiva de ter a razão, comunicá-la de modo razoável, e ser fritado por isso.

E sim, a ideologia política pesou na conta: o movimento contra Russell Moore na SBC era majoritariamente trumpista e muito ressentido com suas críticas ao ex-presidente dos EUA. De algum modo a ala mais conservadora da SBC quis filtrar o “mosquito” das críticas de Moore a Donald Trump, mas engoliu o “camelo” da cultura de abuso sexual e da tolerância ao supremacismo branco.

Chama a minha atenção, particularmente, o fato de que não temos, em todos esses casos, apenas o recorrente problema da promiscuidade sexual em ambientes religiosos, ou mesmo o da hipocrisia religiosa, do qual já tratamos nessa coluna, com respeito ao “Caso Flordelis”. A questão é sistêmica, segundo Moore; é uma cultura do abuso. Uma cultura institucional, ligada ao exercício arbitrário do poder, a práticas corporativistas, a certo autarquismo das comunidades. É, também, um fenômeno masculino, uma perpetuação, no ambiente eclesiástico, de uma masculinidade predatória.

Seria, também, um fenômeno branco, ou ligado ao racismo? Parece que não. As culturas negras não são menos abusadoras que as brancas; segundo um artigo de 2020 na BMC Public Health, nos últimos anos as taxas já altas de violência sexual na África aumentaram ainda mais, enquanto na Europa e nos EUA elas seguem diminuindo. Além disso, segundo uma pesquisa recente da Lifeway Research, pastores de igrejas pentecostais e igrejas negras dos EUA têm maior tolerância com colegas envolvidos em abusos sexuais do que pastores de igrejas conservadoras e brancas. Em todo o caso, a maioria dos pastores entende que indivíduos que abusam deveriam ser permanentemente banidos do serviço pastoral, independentemente de raça ou denominação.

Seria um fenômeno apenas norte-americano? Francamente, isso me parece impossível. A cultura evangélica brasileira é pesadamente influenciada pelo evangelicismo dos EUA, desde o seu nascimento. Ademais, não faltam evidências de que autoritarismo, autarquismo e machismo são graves problemas nacionais. Os índices de abuso sexual doméstico são alarmantes no Brasil. Não temos sistemas de auditoria e compliance para ter um quadro claro como o da SBC, mas eu suspeito que uma investigação similar em nosso país nos deixaria de cabelo em pé.

Ainda mais por conta de uma estatística em particular, levantada na pesquisa da Lifeway: pastores pentecostais são, entre todos, os mais tolerantes a colegas abusadores. O meu palpite é que isso pode ter relação com as culturas institucionais dessas igrejas, muito mais carismáticas e personalistas. Isso pode favorecer a subserviência dos fiéis em situações claramente abusivas, algo do qual o caso Flordelis me pareceu exemplar.

A questão é sistêmica; é uma cultura do abuso. Uma cultura institucional, ligada ao exercício arbitrário do poder, a práticas corporativistas, a certo autarquismo das comunidades

E quanto aos batistas, históricos, tradicionais, e democráticos como são? Se tomarmos o testemunho de Russell Moore como referência, aparentemente algo da estrutura de governança da SBC a tornou vulnerável a essa infecção moral: o autarquismo das igrejas locais, associado com a forma democrática de associação. Isso dificultou a adoção de instrumentos de compliance, e deixou o espaço aberto para a ação de pastores-predadores, agindo também autarquicamente.

Esses parecem ser vícios típicos da liberdade. Ou melhor, de seu abuso. Tenho a impressão de que o discurso libertário é frequentemente empregado para proteger arranjos institucionais injustos e opressivos, que desobrigam a transparência e a prestação de contas e externalizam todos os seus custos humanos. Foi assim com o racismo nos EUA, e a coisa se repete na mesma denominação que evitava confrontar igrejas racistas em nome da sua liberdade na federação denominacional. E agora as vítimas foram mulheres e crianças.

O problema é que o trabalho de uma liderança cristã consiste precisamente em ser orientada para o serviço do vulnerável e do necessitado. Vou ter que citar a Bíblia aqui:

“A palavra do Senhor veio a mim:
‘Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetiza e dize aos pastores: Assim diz o Senhor Deus: Ai dos pastores de Israel, que cuidam de si mesmos! Não devem os pastores cuidar das ovelhas?
Comeis a gordura e vos vestis da lã; matais o animal engordado; mas não cuidais das ovelhas. Não fortalecestes a fraca, não curastes a doente, não enfaixastes a ferida, não fostes procurar a desgarrada e não buscastes a perdida; mas dominais sobre elas com rigor e dureza.
Assim se espalharam, por falta de pastor; e serviram de alimento para todos os animais selvagens, pois se espalharam. As minhas ovelhas andaram desgarradas por todos os montes e por toda montanha alta; as minhas ovelhas andaram espalhadas por toda a face da terra, sem que ninguém as procurasse ou as buscasse’.’
(Ezequiel 34.1-6)

O abuso espiritual, que torna possível o abuso sexual, precisa ser nomeado e contido. O assassinato de almas tem de parar, e não vai parar enquanto tivermos mais raiva dos críticos da igreja que de nossos próprios pecados

Esse princípio é tão importante que moldou a própria ordem política moderna. John Witte Jr., fundador do Centro de Estudos de Direito e Religião da Universidade Emory, menciona em The Reformation of Rights que foi Theodorus Beza, o sucessor de João Calvino na liderança da Reforma Protestante em Genebra, quem primeiro argumentou que “o povo não existe para as autoridades, mas as autoridades para o povo”, com base no modelo de serviço de Jesus, alimentando as raízes do moderno Estado de Direito, como já vimos aqui. Não é uma vergonha, então, ver igrejas praticando o contrário? O aparato institucional de uma igreja ou convenção precisa funcionar para proteger seus membros mais vulneráveis, e não pode proteger lobos e predadores.

As igrejas evangélicas precisam mudar. Precisamos de mais estruturas colegiadas e menos personalistas. Precisamos de mais transparência no trato de crimes de lideranças. Precisamos da voz e da participação nas igrejas de membros que pertencem a grupos historicamente oprimidos, como mulheres, mães, retintos, negros ou pardos – dependendo da composição étnica de cada congregação religiosa – e até mesmo de certas regiões. Precisamos de formação pastoral lidando de forma aberta, fundamentada e prioritária com o problema do autoritarismo e do corporativismo religioso. Não quero dizer com isso que igrejas episcopais, por exemplo, devam abrir mão de suas eclesiologias, mas que as práticas de autoridade e participação precisam mudar e tomar um pouco de sol. Há mofo demais na governança de nossas igrejas.

Russell Moore está correto. A obrigação de ficar furioso diante desse estado de coisas pesa sobre os líderes cristãos, mas especialmente sobre nós, os batistas. Mas nem todos estamos com a raiva certa no lugar certo. Muitos pastores estão, como se diz, “passando pano” para os erros da SBC, como o teólogo Yago Martins revelou em um excelente vídeo sobre o tema nessa semana, em seu canal: “Grandes teólogos que encobrem abusos em suas igrejas”.

Mas defender as burocracias eclesiásticas, nesse momento, não é o mesmo que defender a igreja de Jesus; isso seria “zelo sem entendimento”. Pessoas estão perdendo a sua fé por causa desse apocalipse moral. O abuso espiritual, que torna possível o abuso sexual, precisa ser nomeado e contido. O assassinato de almas tem de parar, e não vai parar enquanto tivermos mais raiva dos críticos da igreja que de nossos próprios pecados.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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