Ouça este conteúdo
Há muitos anos tivemos em nossa casa um colaborador contratado, gentil e primoroso na limpeza das coisas, mas bastante sugestionável. O sujeito era neopentecostal e muito devoto, embora nem sempre muito honesto – frequentemente, sem permissão e por pura caridade, aliviava a nossa geladeira das cargas da feira semanal. De certa feita, numa visita casual à sua residência, notamos em seu varal uma coleção (até então desaparecida) de panos de prato que minha esposa ganhara de sua avó. Limpinhas como novas.
Confesso que gostava do sujeito e fazia vistas grossas. Mas o que me irritava mesmo era a Coca-Cola. Não durava nada; se deixássemos uma garrafa aberta no domingo à noite, na terça não restaria um gole que só; o sujeito virava tudo na segunda feira.
Até que a igreja do homem veio em meu socorro: ele ouviu lá que a marca “Coca-Cola”, com aquelas belas letras estilizadas, era na verdade uma invocação demoníaca cifrada. Esvaziada a garrafa, qualquer um poderia ler a mensagem no verso do adesivo: “Alô diabo”. Intrigado, constatei a blasfêmia ali, tortuosamente grafada, mas nítida! A Coca-Cola, sangue negro do capitalismo, seria mesmo um agente dos infernos, e seus bebedores, aliançados com o tinhoso. Assim, graças a essa grande revelação, a Coca-Cola dominical voltou a durar até quarta-feira.
Acredito no que a Bíblia chama de “forças espirituais do mal”, mas não posso acreditar que o demônio nos domine por meio de mensagens cifradas, simbologias desconhecidas e esquisitices similares. Se o diabo está em algum lugar, esse lugar é a mentira
Pois bem; francamente, como qualquer evangélico típico, eu acredito no que a Bíblia chama de “forças espirituais do mal”, e nisso estou de acordo com meu antigo colaborador neopentecostal; mas não posso acreditar que o demônio nos domine por meio de mensagens cifradas, simbologias desconhecidas e esquisitices similares, como o famoso disco da Xuxa tocado ao contrário, ou a adaga amaldiçoada no corpo do boneco Fofão. Se o diabo está em algum lugar, esse lugar é a mentira.
Tocando o hino ao contrário
A historieta ajuda a entender essa patologia na imaginação identitarista: havendo rejeitado a boa e velha visão cristã do pecado, os modernos puseram-se a encontrar algum substituto sociológico, mas terminaram abraçando uma extensa mitologia da opressão universal.
Poucos negarão, por exemplo, a existência do racismo e as misérias que ele provoca; devemos reconhecer, inclusive, que o racismo brasileiro tem um caráter sistêmico. Mas a imaginação antirracista, em sua obsessão por exorcizar esse poder quase onipresente e frequentemente invisível, já começa a criar um tipo de mundo paralelo, em que a inexplicável maldade e universalidade do racismo é explicada com teorias conspiratórias e hipóteses gratuitas, infalsificáveis. E agora escorregamos todos para a magia, esperando que por meio de encantamentos, da exposição de simbologias ocultas e por exorcismos linguísticos, seja possível mudar o mundo.
Saltou-me aos olhos o parentesco entre o meu causo e a recente “revelação” do cantor evangélico Kleber Lucas sobre o velho hino Alvo mais que a neve, presente em hinários de várias denominações cristãs, como o Cantor Cristão, a Harpa Cristã e o hinário adventista. O cantor acusou o hino de ser racista.
Bendito seja o Cordeiro
Que na cruz por nós padeceu
Bendito seja o Seu sangue
Que por nós ali Ele verteu
Eis nesse sangue, lavados
Com roupas que tão alvas são
Os pecadores remidos
Que perante seu Deus já estão
Alvo mais que a neve
Alvo mais que a neve
Sim, neste sangue lavado
Mais alvo que a neve serei
Em uma live com ninguém menos que Caetano Veloso, Kleber atacou o refrão do velho hino como se fora um reforço ao racismo, uma vez que levaria negros a associar sua cor de pele com o pecado, e a comunhão com Deus com um “embranquecimento”. E Caetano, um legítimo representante da nossa elite cosmopolita branca e laica, sorri maravilhado com o esclarecimento cometido pelo cantor evangélico.
O identitarismo vem se acostumando a projeções anacrônicas, a teorias infalsificáveis, à imaginação reversa e à acusação, sem provas, de ramificações e causas racistas por trás de todo tipo de problema social
A verdade é que o hino, composto por Eden Reeder Latta em 1881, com melodia de Henry Southwick Perkins – dois nomes dos quais quase nada se sabe – apenas repete temas clássicos da teologia evangélica, inexistindo quaisquer indícios históricos de motivação racista.
Mas isso não é problema para o identitarismo; ele vem se acostumando a projeções anacrônicas, a teorias infalsificáveis, à imaginação reversa e à acusação, sem provas, de ramificações e causas racistas por trás de todo tipo de problema social. Um exemplo óbvio, que já levantei nessa coluna: a crise da paternidade em famílias negras é um fortíssimo marcador de risco social, que é sistematicamente ignorado na pesquisa e na política pública nacional porque não serve à ideologia antifamília da elite branca. Ela precisa desesperadamente achar as causas do problema em outro lugar.
Para essa nova religião secular, o racismo existe como uma espécie de pecado original, levando a culpa por todos os problemas da comunidade negra. Não é preciso querer ser racista, ou sustentar teses racistas, para ser racista; basta nascer em uma sociedade racista. E quem não viveu a iluminação wokeísta, nem adotou certas teses antirracistas específicas, deverá se considerar natural e automaticamente racista, culpado até prova em contrário.
Por outro lado, quem tiver seus olhos abertos pela militância encontrará racismo em todos os lugares, mais ou menos como os neopentecostais veem demônios em todos os lugares. E se o demônio não estiver descaradamente visível, a técnica hermenêutica irá revelá-lo: basta ler do lado inverso ou tocar o disco ao contrário. Olhando bem, o “Alô diabo” está lá.
O conspiracionismo do cantor evangélico ilustra a corrupção dupla que o identitarismo e certas versões de antirracismo provocam: a corrupção na autocompreensão do cristianismo e a corrupção na comunicação do cristianismo.
Entendendo tudo errado
Consideremos a letra do hino: sua linguagem é antiquíssima, remontando aos Salmos bíblicos e à profecia de Isaías, compostos entre 2,5 mil e 2,8 mil anos atrás, muito antes do nascimento do racismo ocidental, e cantados por gente que provavelmente tinha a mesma cor do brasileiro típico.
1 “Ó Deus, compadece-te de mim, segundo teu amor; apaga minhas transgressões, por tuas grandes misericórdias.” 2 Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. 5 Eu nasci em iniquidade, e em pecado minha mãe me concebeu. 6 Tu desejas que a verdade esteja no íntimo; no coração me ensinas a sabedoria. 7 Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve. (Salmo 51,1-2.5-7)
16 Lavai-vos e purificai-vos; tirai de diante dos meus olhos as vossas obras más; parai de praticar o mal; 17 aprendei a praticar o bem; buscai a justiça, acabai com a opressão, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva. 18 Vinde e raciocinemos, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã. (Isaías 1,16-18)
Os trechos bastam para iluminar o ponto: é claro que a linguagem sobre ficar “mais branco do que a neve” nada tem a ver com “branquitude” ou “embranquecimento” em um sentido racial. O contraste, por sinal, nem é com a cor preta ou parda, mas com a cor vermelha! Mas, enfim, são metáforas. Imagens que se misturam a muitas outras nas Escrituras e na tradição cristã, como a das “vestes brancas”, das “ruas de ouro” na Nova Jerusalém, de Deus como a “rocha” ou o “sol da justiça”, do povo de Deus como a sua “esposa”, ou do Messias como um “Leão”. O complexo de metáforas e analogias que forma a linguagem bíblica é um substrato profundo da teologia cristã histórica que não pode ser simplesmente alterado sem corromper seu teor original. É assim que funciona um Cânon.
A linguagem sobre ficar “mais branco do que a neve” nada tem a ver com “branquitude” ou “embranquecimento” em um sentido racial. O contraste, por sinal, nem é com a cor preta ou parda, mas com a cor vermelha!
Naturalmente, em nosso contexto moderno marcado pela escravidão negra, essas coisas podem assumir outros sentidos potenciais e soar mal aos ouvidos contemporâneos; mas isso se aplica a quase qualquer coisa. A linguagem sobre dominar a terra, em Gênesis, pode soar como legitimação da destruição ambiental; de Deus como Pai, como legitimação dos abusos do patriarcalismo; da igreja formada por pastores e ovelhas, como legitimação do poder religioso abusivo, e assim por diante. Onde há uma experiência humana, pode existir uma corrupção, um abuso, e uma vítima. Levando essa linha de raciocínio ao limite, ad absurdum, toda analogia, metáfora, experiência histórica ou contexto pode funcionar como gatilho para um trauma ou uma memória de sofrimento comunitário ou individual. E assim, as histórias antigas deixarão de ser as histórias que são, e se tornarão meramente inventários da maldade humana.
Há uma singular insanidade aqui. O sujeito pode sofrer de intolerância à lactose, e certos alimentos lhe fazerem mal, de verdade. Se ele quer comer um queijo, provavelmente precisará se prevenir com um remedinho. Mas não faz sentido reduzir o sabor e a riqueza do queijo à memória das suas diarreias. O queijo não foi inventado para provocá-las, nem são os amantes do queijo culpados delas.
Há coisas na Bíblia que soam mal aos ouvidos progressistas? Sim. A solução para isso? Não amputar a Bíblia, mas aprender a lê-la. A ignorância e o trauma se vencem com educação e terapia.
Ora, se um crente negro moderno não puder mais cantar “alvo mais que a neve”, poderá ele orar o Salmo 51? É evidente que não. E nesse caso, restará ao crente progressista proceder a um grande expurgo da linguagem bíblica, em nome do conforto emocional de todos. E o que sobrará desse expurgo? Inevitavelmente, uma religião servil, mera imagem espelhada da cultura hodierna.
Exatamente aqui está o vício primário desse tipo de abordagem: a ideia de que a função primária da linguagem teológica cristã seja expressar e validar uma experiência moderna. Assim, se a linguagem bíblica ou tradicional não expressa e não valida uma experiência contemporânea, ela deve ser corrigida a qualquer custo. Não importa o que digam a Escritura e a tradição; importa o que eu preciso que elas digam.
E assim temos esse absurdo, de que a capacidade imaginativa dos crentes comuns é totalmente subestimada, como se eles fossem verdadeiros idiotas, incapazes de entender a metáfora bíblica e de se conectar espiritualmente com seus antepassados espirituais. Como se a agenda identitária fosse um zape, uma chave mestra e uma prioridade suprema, que sempre derrota outras prioridades espirituais na imaginação religiosa.
O triste nisso tudo é que há, indubitavelmente, racismo no movimento evangélico. Mas não se combate esse racismo inventando fatos, encontrando rostos em nuvens e trocando o poder libertador do evangelho por um método político intrinsecamente doente, baseado na estimulação de dores e na exploração de ressentimentos.
Há coisas na Bíblia que soam mal aos ouvidos progressistas? Sim. A solução para isso? Não amputar a Bíblia, mas aprender a lê-la
É claro que se alguém é formado para ver racismo em tudo e para tratar a luta antirracista como um zape moral, Alvo mais que a neve causará gastura, náuseas e indignação. Não porque o hino alimente de fato uma mentalidade racista, mas porque essa pessoa foi artificialmente condicionada para ser literalista e neurótica. Em casos como esses, a ofensa racista não existe objetivamente; ela está sendo construída na imaginação e na vida sentimental das pessoas, e uma vez introjetada, seu ruído tornará a linguagem bíblica inaudível.
A função primária da linguagem teológica cristã não é expressar ou afirmar a experiência do ser humano moderno, ou de um grupo identitário em particular; a função primária da linguagem teológica cristã é provocar um choque e manifestar a contradição essencial entre a Palavra de Deus e a existência contemporânea. Esse choque levará à condenação de todo orgulho humano, seja ele racista ou wokeísta.
Mas no que se refere ao identitarismo evangélico, a situação toda deixa muito claro o seu vício essencial: ele deseja tanto falar e se afirmar, que perdeu a capacidade de ouvir até mesmo os velhos hinos de seus ancestrais. Ele põe a mensagem cristã no lugar da ninfa Eco, como uma repetidora da voz de Narciso.
Explicando tudo errado
E entendendo tudo errado, o evangélico wokeísta acaba explicando tudo errado também. Caetano ilustra esse transe; seu deleite não nasce, ao menos naquele instante, de uma audição da voz divina ou ao menos da experiência cristã histórica, mas dessa maravilha que é um famoso cantor evangélico dizendo exatamente... o que eles, a elite branca progressista, pensam desde sempre, vejam só! Não é um verdadeiro milagre?
E assim, em vez de entender mais a teologia, a imaginação e a experiência evangélica, a elite cosmopolita a entenderá ainda menos, e se afastará ainda mais das fontes do cristianismo.
Ao mesmo tempo, nasce assim o novo bom evangélico, o novo evangélico do bem: aquele que aceitou ser o retransmissor da imagem de realidade cultivada por nossas elites cosmopolitas junto à barbárie evangélica conservadora. O evangélico colaboracionista, domado e adestrado, é a esperança do establishment.
A elite cosmopolita branca odeia os evangélicos e sua fé; mas, não sendo plausível eliminar ou suprimir essa comunidade, essa elite tenta ao menos reeducar os evangélicos, ensinando-lhes sobre democracia, laicidade, transformação social e diversidade
Não quero ser injusto aqui com o próprio Caetano; não duvido que ele esteja em um processo de sensibilização religiosa muito importante, que poderia levá-lo até a uma conversão ao cristianismo. O problema está do outro lado desse telefone sem fio, numa representação pasteurizada do cristianismo como se este fosse, na sua melhor versão, uma afirmação do sistema de valores do nosso estabelecimento cultural.
É claro que, se isso soa simpático para um Caetano, para muitos de seus companheiros soará apenas como uma oportunidade contra o evangelicismo. Pois a verdade é que muitos cosmopolitas brancos odeiam os evangélicos e a fé evangélica; eles os veem como corpos estranhos, obstáculos à hegemonia cultural e ao progresso civilizatório nacional. Mas, não sendo plausível eliminar ou suprimir essa comunidade, muitos nessa elite vêm se envolvendo em esforços para tentar ao menos reeducar os evangélicos, ensinando-lhes sobre democracia, laicidade, transformação social e diversidade.
E daí temos o que Paulo Cruz descreveu, irônica, mas acertadamente, como “brancos de esquerda e seus satélites negros”. Eu apenas adicionaria que, nesse momento, temos muitos brancos de esquerda (a elite cosmopolita) em caça desesperada por satélites evangélicos, dispostos a jogar o jogo identitarista: negros, mulheres, LGBTQIA+ e progressistas em geral.
O evangélico colaboracionista, domado e adestrado, é a esperança do establishment
O problema central aqui é o evangélico que aceita jogar esse jogo, que cede ao discurso woke para se integrar na elite cosmopolita. Muitos músicos evangélicos, por exemplo, queimados em seus antigos círculos religiosos tradicionais, se esforçam para ser aceitos em salões laicos e para ampliar seu escopo de influência. Comunicar uma versão da mensagem cristã conta, sim, entre seus objetivos, não nego; o problema é que, do outro lado, não é a mensagem cristã o que é ouvido por eles, mas uma confirmação de que, no fundo, os progressistas laicos é que estão certos, e evangélico bom é ex-evangélico.
Qualquer um pode confirmar o meu ponto: basta conferir se esses cosmopolitas brancos que vêm abraçando evangélicos arrependidos como Kleber Lucas estão se tornando cristãos comprometidos e membros de igrejas evangélicas. Não estão, porque eles já têm a sua religião woke. Se alguma conversão vem acontecendo, é a desses pobres evangélicos progressistas.
E assim, o identitarismo evangélico, alimentado por sua própria cepa de conspiracionismos e tocando a sua tradição teológica e litúrgica ao contrário, não apenas entende tudo errado, mas explica tudo errado, encontrando novos diabos até onde não há nenhum.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos