Os atos violentos ocorridos em Brasília neste 8 de janeiro merecem a dura reprovação do Estado e da sociedade, mas além disso eles precisam ser entendidos. A despeito de sua ineficiência pragmática, eles têm uma profunda natureza ideológica e simbólica.
Um ponto de vista riquíssimo a partir do qual poderíamos interpretar o evento é o do filósofo alemão Eric Voegelin (1901-1985). Na coluna de hoje acompanharemos o amigo Anderson Paz numa reflexão sobre como o “pós-cristianismo” e o “pós-conservadorismo” criaram uma nova simbologia política para o imaginário social brasileiro. Anderson sustenta – com o que concordo de todo o coração – que a direita nacional precisa retornar à tradição clássica conservadora e ao ensino original cristão sobre política.
Narrativas ideológicas e a simbologia política
O filósofo alemão Eric Voegelin identificou, no século 20, que as ideologias políticas são, efetivamente, religiões seculares que prometem “imanentizar o escathon”, isto é, elas prometem redimir o mundo e trazer um suposto paraíso para a terra. Para tanto, uma ideologia política: a) cria uma narrativa com elementos verdadeiros misturados com aspectos falsos; b) identifica um ou alguns inimigos; e c) sugere vencer ou destruir o inimigo prometendo um novo mundo na terra. A narrativa ideológica promete atalhos revolucionários para a paz.
Voegelin identificou que as ideologias políticas são, efetivamente, religiões seculares que prometem “imanentizar o escathon”, isto é, elas prometem redimir o mundo e trazer um suposto paraíso para a terra
Para Voegelin, sob esse fenômeno subjaz um problema espiritual, qual seja, a perda da esperança transcendente. Se a expectativa por paz está no aqui e agora, a construção de uma narrativa política redentora justifica até uma revolta revolucionária violenta. Por isso, Voegelin entende que a narrativa ideológica representa a desordem da consciência e do espírito sobre a existência.
Voegelin também nos lembra que a política é formada por meio de “símbolos” cujos exemplos ultrapassam o período de sua ocorrência. Símbolos políticos são expressões de sentimentos, atitudes e experiências de um povo. A experiência histórica de um povo cria símbolos que expressam seus valores e suas convicções políticas. Para Voegelin, símbolos políticos são a principal chave para compreender as experiências de um povo. Eles marcam a diferenciação entre um antes e um depois. E expressam um significado que modela o imaginário de uma nação.
Como essa reflexão de Voegelin pode nos ajudar a entender o 8 de janeiro de 2023 brasileiro?
Uma nova simbologia no imaginário político brasileiro
Os atos violentos do dia 8 de janeiro de 2023 em Brasília ilustram muito bem o problema da narrativa ideológica e a importância da simbologia política para o imaginário social. De fato, no Brasil, há alguns anos tem havido uma série de decisões judiciais com forte impacto político com base em inquéritos inconstitucionais. A partir desse fato, uma ala da direita brasileira criou uma narrativa ideológica bastante ampla: os inimigos do povo são ministros, parlamentares e membros do Executivo; haverá paz se uma entidade salvadora – o Exército – nos redimir; se este não agir, agiremos nós.
Essa narrativa ideológica alimentou um ímpeto revolucionário. O resultado é conhecido: um ataque violento ao símbolo maior da democracia brasileira – a sede dos poderes da República. O evento criou uma nova simbologia para o imaginário social nacional: pessoas supostamente conservadoras e cristãs são capazes de atacar prédios públicos, vandalizar obras de arte nacionais e cantar hinos cristãos invocando o nome de Deus para legitimar suas ações.
Tragicamente, os eventos de 8 de janeiro de 2023 criaram uma nova simbologia política que causará uma série de consequências culturais, intelectuais e morais para o país nas próximas décadas. Como se chegou a esse ponto? A narrativa ideológica – usando o nome de Deus e em defesa da pátria e família – justificou a ética de Maquiavel: não importando o meio, o que interessa é imanentizar e manter o escathon, isto é, todo meio é legítimo para alcançar e manter uma suposta paz futura no Brasil.
O 8 de janeiro mostrou que pessoas supostamente conservadoras e cristãs são capazes de atacar prédios públicos, vandalizar obras de arte nacionais e cantar hinos cristãos invocando o nome de Deus para legitimar suas ações
De nada vale a alegação de que, no passado, grupos de esquerda vandalizaram prédios públicos da Praça dos Três Poderes. A simbologia criada no 8 de janeiro é completamente nova: ela comunicou ao povo brasileiro que o discurso em nome de Deus e em defesa da família e da pátria é capaz de justificar um ataque violento contra a simbologia democrática do país.
Que tipo de narrativa ideológica possibilitou tais atos violentos? Um tipo de “pós-cristianismo” e “pós-conservadorismo” político em que a ética do Sermão da Montanha foi abandonada e a tradição cética conservadora foi superada. Os atos violentos mostraram que o “pós-cristianismo” e “pós-conservadorismo” – que utilizam o nome de Deus e supostamente defendem a família, a pátria e até a democracia – apenas mantêm os termos, os chavões e até os hinos, mas sua natureza, sua estética e seus símbolos são de um movimento eminentemente secular e revolucionário.
A sabedoria da tradição cristã e conservadora
Voegelin pode nos ajudar mais uma vez: diante das narrativas ideológicas que justificam uma ruptura revolucionária, é preciso entender o presente por meio da análise do passado para consolidar uma consciência moral que nos oriente no mundo e nos livre da deturpação da violência ideológica.
Como isso nos ajuda? Voegelin indicou um remédio importante contra as narrativas ideológicas que resultam em violência: é preciso que a direita brasileira volte a seus valores clássicos e crie uma consciência moral distinta do extremismo do “pós-cristianismo” e “pós-conservadorismo”.
A tradição conservadora clássica se apoia no ceticismo quanto ao poder do homem em trazer paz à terra. Por isso, conservadores defendem reformas das instituições e são antirrevolucionários. Já a tradição cristã se apoia na atitude política do Mestre Jesus: ele criticou autoridades públicas, como quando chamou Herodes de “raposa” (Lc 13,32), mas em nenhum momento Ele suspendeu sua ética, seus valores e sua esperança escatológica. Além disso, mesmo não tendo a obrigação de pagar impostos por ser o Filho de Deus, Ele pagou seu imposto e o do aflito Pedro (Mt 17,24-27). Mesmo quando injustamente julgado, Ele não fez revolução política, mas apenas protestou (Jo 18,22-23) e demonstrou sua confiança de que estaria sentado à direita do Pai (Lc 22,69).
Cristãos e conservadores não destroem as instituições e as pessoas que nelas estão, mas agem para reformar as instituições e protestam contra atos autoritários ou equivocados de autoridades públicas
Conservadores clássicos nunca abriram espaço para um “pós-conservadorismo” revolucionário e violento. Assim também, Jesus nunca abriu espaço para um “pós-cristianismo” orientado por redenção no aqui e agora. A tradição cristã e a tradição conservadora são antirrevolucionárias. Cristãos e conservadores não destroem as instituições e as pessoas que nelas estão, mas agem para reformar as instituições e protestam contra atos autoritários ou equivocados de autoridades públicas.
Nesse sentido, a maior parte da tradição conservadora e cristã (protestante e católica) defende que, em caso de autoritarismo de autoridade pública, a resistência deve se dar de forma “constitucional”, e não por meio de atos individuais de cidadãos. Isto é, a resistência ao autoritarismo deve ser por meio de representantes do povo.
Portanto, critiquemos firmemente os Herodes de nosso tempo e protestemos contra as injustiças, dentro da legalidade e civilidade. Recobremos a temperança: a polarização odienta está destruindo esse país. Façamos oposição com fatos, denúncias e críticas nos limites da lei e da civilidade. Que possamos, assim, construir um projeto de direita moderado, capaz de se opor ao progressismo de esquerda em termos intelectuais, morais e culturais.
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