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O incendiário artigo de Antonio Risério “Racismo de negros contra brancos ganha força com o identitarismo”, publicado na Folha de S.Paulo, é uma mistura apimentada de verdades duras de engolir e algumas generalizações dolorosas. Um exemplo é essa pequena pérola: “Militantes negros, como os pastores evangélicos, querem o poder”. Associando toda a militância negra a um grupo social ainda mais malvisto nos círculos que ele frequenta – os pastores evangélicos –, ele capta (ou tenta captar) a simpatia de um naco dos leitores. É claro que essa verve unilateral e provocativa acirraria os ânimos.
Isso não é novidade: no livro Em Busca da Nação ele desanca o neopentecostalismo, às vezes estendendo seu olhar desfavorável aos evangélicos como um todo, manifestando explícito desprezo por esse grupo. Como pastor evangélico e negro-índio, considero essa associação sem maiores explicações como muito descuidada, no mínimo.
Mas, enfim, essa mordidinha foi só um detalhe, inconsequente para o argumento de Risério. No conjunto, ainda mantenho meu apoio à sua liberdade de expressão e ao mérito de seu questionamento: o identitarismo transformou o combate ao racismo em uma ferramenta. Estou com o Eli Vieira, a Bruna Frascolla, o Joel Pinheiro e outros que assinaram a carta em defesa do antropólogo.
O que o “caso Risério” fez transparecer é algo muito pior que uma alegada ameaça de racismo antibranco: é o fenômeno do autoritarismo da esquerda identitária
Ainda assim, acho que a questão não foi bem colocada. Em primeiro lugar, concordo com Risério sobre a natureza ambígua e falaciosa do uso da palavra “racismo” pelos identitaristas. Esse tipo de ambiguidade é método; a mesma coisa é feita com a noção de “homotransfobia”. Mas não creio que Risério tenha apresentado uma boa alternativa.
Tudo isso me parece, no entanto, apenas uma saliência, na superfície do problema. O que o “caso Risério” fez transparecer é algo muito pior que uma alegada ameaça de racismo antibranco: é o fenômeno do autoritarismo da esquerda identitária. Ela joga com esses conceitos e armamentiza essas categorias com a função política de controlar a consciência social por meio da academia e da imprensa. De modo que nossas elucubrações vão começar com o problema aparente e avançar para o problema real.
O problema aparente
Vamos começar com a saliência, a falsa alegação de que Risério defende um “racismo reverso”. O que ele defende, na verdade, é o fim da manipulação do conceito de racismo. Ao citar o professor Wilson Gomes, definindo racismo de forma simples como “1. acreditar em raças humanas, 2. acreditar que outra raça é inferior; 3. tratar indivíduos com hostilidade com base no fato de que sua ‘raça’ é inferior”, penso que acerta num ponto: racismo envolve agência pessoal, é uma coisa atitudinal. Pode-se explorar os vieses cognitivos, preconceitos e até valores distorcidos por trás disso, mas é um fenômeno da consciência. O racismo seria uma forma de má consciência.
Por esse ângulo, no entanto, dificilmente se justificaria a tese de que um negro que desenvolveu amargura ou ressentimento contra brancos já seria, por isso, racista. Amargura e ódio nem sempre envolvem tratar alguém como inferior e, muito menos, uma etnia inteira como inferior. É possível até mesmo considerar alguém superior e odiá-lo precisamente por isso. Talvez essa raiva não considere os brancos inferiores, mas apenas circunstancialmente culpados, sem essencializar o mal. Nesse caso, precisaríamos encontrar uma definição de racismo ainda mais econômica que a de Wilson Gomes.
É verdade que a raiva de militantes negros contra brancos pode levar à violência racial, e talvez possamos chamar isso de racismo, segundo uma definição mais econômica de “ódio racial”; mas essa raiva pode não implicar a formação de crenças específicas sobre a inferioridade dos brancos, e não levar a consequências sociais de marginalização de brancos em instituições ou assimetria no uso da força pela polícia.
Que consequências seriam essas? Consideremos, por exemplo, a descoberta da minha esposa, que é historiadora, sobre as práticas educacionais em escolas públicas de Belo Horizonte, no início do século. Estudantes negros às vezes assistiam às aulas do lado de fora das salas, acompanhando pelas janelas. Não era um apartheid institucionalizado, mas um fenômeno ocasional, resultante de um preconceito generalizado. Recentemente um amigo pessoal reportou que, em seus primeiros anos como profissional de engenharia de computação, notou que, mesmo tendo desempenho geralmente superior ao de outros candidatos, era regularmente preterido se a competição fosse com um branco. Até que a qualidade de seu trabalho se tornou tão superior à média que o peso da preferência racial foi superado. E ele me perguntou: “por que a gente tem sempre de ser melhor para chegar aos mesmos lugares e ganhar as mesmas coisas?”
São histórias anedóticas, mas que ilustram realidades sociais bem conhecidas por nós. O racismo culturalmente institucionalizado, que manteve gerações de negros na precariedade social, não tem o mesmo peso que o possível ódio racial ou racialismo de um punhado de negros militantes. É um fenômeno aparentado, sim, mas não é exatamente o mesmo fenômeno. Por sinal, devo dizer que nunca encontrei pessoalmente um negro que odiasse brancos, ou que os considerasse inferiores (talvez, admito, porque tomei distância dos identitaristas há tempos). Já encontrei muitos negros com vergonha, ressentimento ou medo traumático de brancos, mas não racistas. Talvez Risério esteja contemplando um mundo possível: se o identitarismo for deixado à solta, sem contestação, poderia gerar um verdadeiro racismo antibranco? Sim. Mas, francamente, ainda estamos muito longe disso.
Racismo envolve agência pessoal, é uma coisa atitudinal. Pode-se explorar os vieses cognitivos, preconceitos e até valores distorcidos por trás disso, mas é um fenômeno da consciência. O racismo seria uma forma de má consciência
Quanto às críticas ao conceito de “racismo estrutural” como uma “malandragem jurídico-ideológica”, me parecem um exagero enorme. É verdade que o conceito de estrutura parece mal curado, misturando a crítica ao modo de produção econômica que reproduz exclusões, com a cultura e os valores racistas e aquele racismo psicológico, do preconceito contra a cor e a etnia; mas não procede negar que existam causas históricas e sistêmicas para a exclusão do negro. Se temos 1. um sistema social e econômico com baixa mobilidade social, de modo que o pobre tem dificuldades para ascender socialmente e, 2. a maioria dos negros é pobre e, além disso, 3. há evidência de um racismo cultural que faz o negro ser preterido no mercado de trabalho, é claro que temos um problema de ordem estrutural que afeta o negro de modo desproporcional.
Concordo com Risério de que não faz sentido chamar isso de “racismo”. Racismo psicológico, ideológico, até cultural podem existir, mas empregar “racismo estrutural”, em substituição ao racismo atitudinal, não faz sentido. Cria exatamente a confusão denunciada por ele, culpabilizando a má consciência do branco e legitimando a má consciência do militante negro. Mas ainda temos de nomear o fenômeno, e acusar malandragens não resolve nada. Sugiro falarmos em desigualdade racial estrutural. Em todo caso, o tratamento de tal desigualdade não precisaria se basear em teorias neomarxistas nem abandonar a ideia de igualdade de oportunidades pela de igualdade de resultados.
O verdadeiro problema
Não há como documentar a virulenta reação crítica a Risério; bastam para nós algumas menções honrosas em tuítes: Talíria Petrone o acusou de endossar a supremacia branca; Silvio Almeida, diretamente atingido pelos ataques ao racismo estrutural (sua bandeira), falou em “artigos de arruaceiros, nulidades e oportunistas que têm assento na grande imprensa”, e disparou: “não vou gastar meu tempo e nem minha coluna pra lidar com esse tipo de gangsterismo intelectual”. Confesso que engoli seco ao ler o homem chamando Risério de “nulidade”. Falta muito angu ainda.
À parte das dezenas de denúncias e retuítes, saltou aos olhos, naturalmente, a carta aberta assinada por 186 profissionais da Folha de S.Paulo, questionando a empresa pela publicação do artigo. Com o perdão da expressão forte, a carta teve a cara de pau de falar em “supostos excessos das lutas identitárias (...) levando a racismo reverso”. Podemos até concordar sobre a inexistência de racismo reverso, mas que os excessos são apenas “supostos” é exasperante. Pior: na carta, a ideia de “caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira” é tratada como um absoluto científico ou moral, que não pode ser negado nem relativizado. E isso é tratado como racismo. Vejam bem: o questionamento de um construto teórico é chamado de racismo. Por jornalistas.
Esse, meus amigos, é o problema mais grave; é que há um evidente dogmatismo teórico e um absolutismo moral, promovido por acadêmicos como Thiago Amparo e Silvio Almeida, e por defensores dos direitos humanos como Debora Diniz, e retransmitido por um jornalismo altamente ideológico. Nesse dogmatismo, a militância política e ética e a atividade científica se confundem perigosamente. O construto teórico e as células acadêmicas que o propagam não podem ser questionados, porque isso seria racismo e supremacismo branco. Coisa de louco ou não?
Como é possível que acadêmicos e jornalistas sejam tão unilaterais na abordagem desses assuntos, como se a posição da esquerda identitária pudesse ser tratada como uma espécie de verdade pública e autoevidente, e sua moralidade implícita como um universal moral? Se a Folha levasse a sério esses 186 jornalistas, a liberdade de expressão seria destruída no veículo, juntamente com sua confiabilidade.
Na carta dos jornalistas, a ideia de “caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira” é tratada como um absoluto científico ou moral, que não pode ser negado nem relativizado. E isso é tratado como racismo. Vejam bem: o questionamento de um construto teórico é chamado de racismo. Por jornalistas
Há explicação científica para isso. Em março de 2020, Cory Clark (da Universidade de Durham) e Bo Winegard (do Marietta College) publicaram um artigo de grande repercussão na revista Psychological Inquiry, sobre “Tribalismo na guerra e na paz: A natureza e a evolução da epistemologia e sua significância para a moderna ciência social”. No estudo os pesquisadores se puseram a investigar o papel dos vieses intragrupais, que levam ao favoritismo e ao tribalismo, e de uma epistemologia tribalizada, com diversas consequências ideológicas. Essas tendências seriam intensificadas em contextos que combinam uniformidade com um contexto de conflito ideológico e político. Claro, tais efeitos são bem conhecidos em psicologia social e política, em economia comportamental etc. A diferença, no caso, é que Clark e Winegard propuseram aplicar essas categorias à própria classe dos cientistas sociais. E adivinhem: a falta de representação de conservadores nas ciências sociais está diretamente ligada a distorções e omissões graves na interpretação de dados científicos. Os autores até mesmo identificaram um conjunto de pressuposições questionáveis, que interferem no julgamento dos cientistas sociais, e que eles descreveram como “equalitarismo” (diferentemente de “igualitarismo”):
“Quando a maioria dos cientistas compartilha de uma ideologia similar e especialmente quando eles compartilham de valores sagrados similares, essa estrutura de incentivo (a instituição científica) pode falhar, permitindo que algumas ideias floresçam sem sujeitá-las à crítica rigorosa enquanto silencia e ignora outras ideias sem dar a elas uma oportunidade justa.”
“Nossa sugestão nesse paper é que esses cientistas sociais deveram aplicar suas próprias teorias e sua cuidadosa erudição a si mesmos, tornando-se, por assim dizer, os objetos de sua própria análise crítica. Assim como não podemos ver os óculos com os quais vemos o mundo, também não notamos os vieses com os quais o avaliamos. Não podemos remover esses óculos, mas podemos nos tornar conscientes deles.”
O chilique dos 186 da Folha é o fruto podre de um establishment nas ciências humanas e no jornalismo brasileiro que é evangelista e militante, mas deseja se passar por objetivo e cientificamente rigoroso
Emprestando a metáfora dos pesquisadores, parece que Antonio Risério puxou os óculos de alguns professores e jornalistas por um instante, e a travessura expôs a coisa toda: construtos são construtos, e podem ser questionados. Teorias sobre a natureza das diferenças sociais, sobre a discriminação e sobre como enfrentá-la, e sobre a desigualdade social de modo geral têm um componente doutrinário e moral muito forte, e dificilmente terão a clareza que temos nas ciências naturais. O chilique dos 186 é o fruto podre de um establishment nas ciências humanas e no jornalismo brasileiro que é evangelista e militante, mas deseja se passar por objetivo e cientificamente rigoroso; que promove o “equalitarismo”, o liberalismo expressivo e teorias peculiares de revolução social e emancipação. Por mim, não tenho problema com evangelistas, desde que eles sejam honestos. A testemunha de Jeová, nesse sentido, é costumeiramente mais honesta que alguns colunistas da Folha.
Mas o tribalismo ideológico não é coração do problema manifestado nas reações histéricas a Antonio Risério. O outro problema, já mencionado em nossa discussão sobre autoritarismo e bolsonarismo na semana passada, é o que Thomas Costello, da Emory University, denomina “autoritarismo de esquerda”. O autoritarismo de direita é um fenômeno bem estudado em psicologia social, ligado a personalidades conservadoras e autoritárias, e há instrumentos validados para o diagnóstico social desses padrões. Mas alegava-se até pouco tempo atrás que o autoritarismo de esquerda não existiria. Até que um amplo estudo com milhares de participantes comprovou e formalizou um instrumento para investigar o autoritarismo de esquerda: “Clarificando a estrutura e a natureza do autoritarismo de esquerda”, publicado no Journal of Personality and Social Psychology. Segundo os pesquisadores, a esquerda radical – na qual se insere o identitarismo militante – compartilha dos mesmos traços psicológicos da extrema-direita: ousadia psicopática, dogmatismo, desinibição, fatalismo, crença em teorias conspiratórias e, especialmente, a crença em um mundo perigoso e em instituições dominadas pelo mal. Autoritários de esquerda são agressivos, raciocinam com um absolutismo moral que justifica, na visão deles, a censura autoritária, e alimentam um forte anticonvencionalismo, ou seja, um anseio por destruir ou revolucionar as instituições e a ordem social em geral.
Os 186 acham que Risério é um problema, mas eles são parte do problema muito pior: por seu viés tribal e ideológico, o establishment acadêmico e jornalístico brasileiro está engordando um autoritarismo de esquerda, instalado no coração do identitarismo. O ovo da serpente vem sendo chocado no ninho da galinha. O mero fato de a Folha de S. Paulo tomar essa lavada de seus próprios funcionários sinaliza o quanto a situação está fora de controle.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos