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Na próxima segunda feira, em seguida ao Domingo da Trindade, celebram-se 100 anos de uma blasfêmia. Uma grande blasfêmia.
Em 31 de maio de 1921, a partir de uma acusação nunca confirmada de agressão sexual que teria sido cometida pelo jovem negro Dick Rowland, 19 anos, contra Sarah Page, operadora de elevador de 17 anos (aparentemente, ele pegou no braço da moça), deu-se um dos mais graves tumultos raciais da história dos Estados Unidos: o massacre ou “pogrom” de Tulsa, Oklahoma. Multidões de brancos atacaram Greenwood, a “pequena África” de Tulsa, um distrito de negros considerado o mais rico dos EUA e por isso apelidada de “Wall Street Negra”, resultando em um número indeterminado de mortos (estimado entre 150 e 300), 800 pessoas internadas em hospitais, mais de 10 mil negros desabrigados, 6 mil detidos temporariamente, 191 lojas e estabelecimentos comerciais destruídos, 21 igrejas, dois cinemas e 1.256 casas queimadas, bem como o único hospital do distrito, 35 quarteirões arrasados e milhões de dólares em prejuízos. Os supremacistas usaram até mesmo aviões para lançar bombas incendiárias e fertilizantes sobre as casas da Little Africa.
Segundo as investigações posteriores, as autoridades se esforçaram para proteger o jovem negro de um linchamento. Um grupo de negros de Greenwood, temendo outro linchamento, uma vez que centenas de brancos exigiam a entrega do acusado, e expressando sua própria indignação, compareceu armado para oferecer apoio à polícia local. Por enorme azar, eles acabaram trocando tiros com um bando de supremacistas brancos, o que levou a uma terrível escalada das tensões. E o que se seguiu foi absolutamente desproporcional.
O medo da comunidade negra de Greenwood nascia de uma permanente sensação de ser odiado, de não ser bem quisto, de ser desprezado e evitado; e nascia de fatos
Mas a história foi praticamente apagada por décadas. Foi whitewashed, como os antirracistas dizem; ninguém aprendia sobre ela na escola, ninguém falava sobre o assunto, e até mesmo muitos negros cresceram ignorando-a. Apenas em 1996 o caso foi reexaminado por uma comissão bipartidária e em 2001, no relatório final, se admitiu que o governo da cidade conspirou com os brancos para a destruição de Greenwood.
A cidade está se preparando hoje para belas comemorações; um memorial foi levantado, um museu está sendo construído e as valas comuns sendo procuradas. Num dos vídeos comemorativos, de iniciativa do Oklahoma Center for Community & Justice, temos diversos testemunhos, incluindo os de um pastor negro e um branco comprometidos com a verdade e a reconciliação. O projeto “Greenwood Rising” é belíssimo exemplo de como recuperar a memória de modo construtivo. O presidente Joe Biden anunciou que visitará Tulsa para as comemorações.
Medo e raiva
A história toda ilustra tristemente várias coisas; mas me importa particularmente, aqui, o medo. A comunidade negra de Greenwood vivia já sob uma espécie de trauma com os linchamentos e a vigilância imposta pelas leis Jim Crow. Foi o medo e a raiva que levaram à fatídica decisão de mover um grupo armado de negros para a porta do tribunal; mas, como os eventos trágicos revelaram, não era um medo injustificado. O medo nascia de uma permanente sensação de ser odiado, de não ser bem quisto, de ser desprezado e evitado; e nascia de fatos. O jovem inicialmente fugiu da polícia por medo de ser linchado. É verdade que a polícia, por sua parte, se esforçou para defendê-lo, inicialmente; no entanto, a comunidade inteira foi linchada pelos cidadãos brancos de Tulsa, e o Estado falhou miseravelmente em proteger Greenwood. Houve grave omissão.
De certo modo essa é sempre a história dos guetos; ali vivem pessoas que são discriminadas e evitadas. Na dúvida, são culpadas de alguma coisa e, se não fossem, deveriam. Se um jovem negro foi acusado, deve ser linchado; se um bando de negros abriu fogo, pode-se arrasar 35 quarteirões de casas. É assim que os judeus foram tratados na Europa por centenas de anos antes de Hitler; é assim que cristãos são tratados em alguns países islâmicos.
Guardadas as proporções – não estamos falando apenas de cor de pele, de religião ou de classe social, mas de uma mistura de fatores –, é o que acontece frequentemente a jovens de nossas periferias e favelas, esses onipresentes e precários assentamentos urbanos. Bandidos se escondem e se multiplicam nesses lugares, e todos, bandidos e gente honesta, compartilham da cultura dessas comunidades.
E lá existe o medo. Sim, o medo do bandido; mas também o medo da polícia e um medo mais tênue, misturado com ressentimento contra a “sociedade”. Pois a verdade é que muitos bem-nascidos gostariam de ver as favelas brasileiras desaparecerem com seus moradores junto; o favelado sabe disso, e favelado negro sabe ainda mais. Na verdade, quem não é preto, mas é um pouco mais escuro do que o aceitável, dependendo do contexto, tem plena consciência do que significa ser indesejado, observado e vigiado, preterido e, para os mais azarados, visado pela polícia.
O medo e o Estado
Um ponto que me impressiona nos relatos de Tulsa é precisamente o estado de medo, a desconfiança, o espírito prevenido da comunidade de Greenwood. Cidadãos honestos se sentiam desamparados não, como é comum, porque o Estado seria ineficiente no combate ao crime, mas porque era ineficiente para proteger a comunidade do arbítrio e da maldade de seus concidadãos.
Os repetidos relatos sobre incursões da polícia nas comunidades do Rio de Janeiro com vítimas inocentes têm me feito pensar bastante a respeito; já levantamos o tema nessa coluna, numa entrevista com Lucas Louback, da ONG Rio de Paz. O fundador da ONG, pastor Antônio Carlos Costa, costuma dizer que no imaginário moral dos brasileiros algumas pessoas são “matáveis”. Tem gente que, se morrer, não faz diferença, não dói. Se for bandido até merece mesmo. Se for um jovem negro ou preto e favelado, é triste, mas não muito.
Muitos bem-nascidos gostariam de ver as favelas brasileiras desaparecerem com seus moradores junto; o favelado sabe disso, e favelado negro sabe ainda mais
Seria uma grande injustiça acusar a polícia brasileira de “genocídio”, como alguns setores da esquerda gostam de falar. Mas há, sim, uma injustiça singular quando uma parte da população sente que suas perdas são vistas pela sociedade como efeitos colaterais inevitáveis; quando o fato de sentirem medo de ser atingidos acidentalmente em incursões policiais parece ter sido normalizado; e quando o jovem passa com medo ao lado da polícia apenas por ser negro e se vestir como seus pares.
Eu, como tantos outros negros e pardos, tive meu batismo de medo da polícia. Apesar de morar relativamente bem, no bairro Floresta, em Belo Horizonte, fui pego pela polícia aos 12 anos. Eu vivia subindo e descendo a Rua Plombagina, que faz margem com o Colégio Batista Mineiro. Vivia nesse caminho, de bicicleta ou a pé, e assistia a todos os cultos que podia na Igreja Batista da Floresta, ali perto. Frequentemente passava tardes na casa de um amigo da igreja, uns quatro quarteirões acima da minha.
De certa feita, descendo da casa desse colega, por volta das 22 horas, fui abordado por policiais. Eu estava com um aparelho de som do meu pai – o finado “toca-fitas” – e houvera uma denúncia de roubo de um toca-fitas naquela noite. Pois bem, a polícia decidiu que era eu o salteador. De nada adiantou dizer que tinha apenas 12 anos; riram na minha cara e começaram a me empurrar. Disseram que, se eu fosse para a delegacia, seria uma surra na certa. Zombavam. Paramos no portão do edifício onde eu morava, número 44, apartamento 701, e, mesmo depois de confirmar que meus pais estavam lá, queriam me levar. Mas o chefe afinou: “vai dar problema isso aí, solta o menino”.
Não me soltaram; me empurraram para fora do carro.
Não preciso dizer que depois, por um bom tempo, eu não conseguia olhar no rosto de um policial, nem me comportar naturalmente na presença deles. Eu percebia que os policiais notavam meu desacerto porque eles de repente começavam a me encarar. Minha namorada e futura esposa, anos depois, notou esse comportamento estranho. Parece bobagem, mas levei anos para relaxar.
Peço que o leitor me acompanhe aqui: sofri um tipo de abuso por estar no lugar errado na hora errada, e por me encaixar em certo estereótipo; mas em minha história esse foi um fato isolado. O que dizer, no entanto, de pessoas que realmente vivem sob suspeita permanente? E o que dizer de pessoas que sofreram abusos graves e consumados de autoridade? O que dizer dos negros norte-americanos e dos negros em nossas favelas?
A teologia da polícia
Eu conheço muito bem as justificativas filosóficas e teológicas para o uso da força pelo Estado. Conheço porque concordo, em grande medida; entendo que a justiça envolve retribuição, e não compro a tese inacreditável de que eliminar a repressão direta ao crime produziria uma sociedade menos violenta. “Lei e Ordem” importa; se não quisermos ver a tirania se levantar, precisamos impedir o caos; a leniência com o caos alimenta os autoritarismos e coisas piores. Aqueles mais afastados do espírito W.E.I.R.D. e mais próximos de sensibilidades morais sociocêntricas tendem a respeitar mais os princípios de autoridade e justiça, e o cristianismo conservador favorece esse tipo de sensibilidade.
Assim, os cristãos adeptos do discurso de Lei e Ordem costumam citar o capítulo 13 da Carta de Paulo aos Romanos para justificar sua visão do Estado como sendo, basicamente, uma instância divinamente estabelecida para garantir a justiça pública e usar a espada contra o crime. Em suma, garantir justiça e segurança. Vamos retomar o trecho aqui:
“Todos devem sujeitar-se às autoridades do governo, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram ordenadas por ele. Por isso, quem recusa sujeitar-se à autoridade opõe-se à ordem de Deus, e os que fazem isso trarão condenação sobre si mesmos.
Porque os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal. Não queres temer a autoridade? Faze o bem e receberás o louvor dela. Porque ela é serva de Deus para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não é sem razão que ela traz a espada, pois é serva de Deus e agente de punição de ira contra quem pratica o mal.
Por isso é necessário sujeitar-se a ela, não somente por causa da ira, mas também por causa da consciência. Por essa razão também pagais imposto; porque eles são servos de Deus, para atenderem a isso.
Dai a cada um o que lhe é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra.” (Romanos 13,1-7)
A justiça envolve retribuição, e não compro a tese inacreditável de que eliminar a repressão direta ao crime produziria uma sociedade menos violenta
Estou ciente de que as alegações bíblicas de que toda a autoridade vem de Deus são difíceis para leitores modernos e secularizados, embora pense que não deveriam ser tão difíceis assim. O fato é que ninguém tem a menor ideia de onde a autoridade vem e de como se legitima. Ou melhor, há diversas propostas, mas nenhuma certeza, e a socialização em um ambiente democrático mantém essa inconsciência apenas até certo ponto. E, no entanto, a autoridade está aí. Gostemos ou não, os fundamentos teológicos do pensamento político são uma assombração permanente.
Mas vamos ao que interessa: a posição do apóstolo, que influenciou o pensamento político moderno por meio de pesos-pesados como Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, não é apenas de que a autoridade vem de Deus, mas que ela é “serva de Deus para o teu bem”. Daí, como expus numa homilia dominical, dizermos que a autoridade é, em última instância, a autoridade do bem. A autoridade envolve direito ao poder porque há direito; e o direito se funda no bem e em suas formas fundamentais, como explica John Finnis.
De modo que, embora o apóstolo Paulo não desenvolva o ponto explicitamente, a “autoridade” que não existe (ainda que inconsistentemente) a partir e a serviço do bem é ilegítima. Segundo uma famosa declaração do reformador de segunda geração Theorodus Beza (1519-1605), “as pessoas não foram criadas em benefício dos governantes, mas os governantes em benefício das pessoas”.
Compreender isso já seria um avanço para a teologia política popular, que tende a legitimar autoridades parentais, pastorais e políticas, mesmo quando elas começam a atuar como gangues e deixam o bem em nome da exploração. Os protestantes de segunda geração entenderam isso muito bem e propuseram as primeiras teorias modernas de resistência ao Estado.
Mas há sempre espaço para aprender coisas novas. Em 2020 o teólogo anglicano Esau McCaulley, negro e professor do respeitado Wheaton College, publicou a obra Reading while Black: African American Biblical Interpretation as an Exercise in Hope com uma abordagem atípica, afastando-se tanto de interpretações “conformistas” sobre a relação entre religião e racismo quanto do progressismo negro, que tende a se afastar do evangelicismo tradicional e se alienar da maioria dos negros evangélicos. A obra, que colecionou diversos prêmios (e será lançada no Brasil pela editora Mundo Cristão neste ano), apresenta leituras bíblicas inovadoras a partir de um ponto de partida afroamericano, e da perspectiva do sofrimento da comunidade negra na América.
Entre essas leituras se encontra sua genial interpretação de Romanos 13 como um capítulo não tanto sobre o “Estado”, num sentido abstrato, mas sobre seu braço armado e a serviço do povo: ou seja, sobre a polícia.
Gente de bem e honesta não deveria ter medo da polícia. Mas os cristãos do tempo do apóstolo Paulo tinham, assim como os negros dos EUA e os moradores de favelas brasileiras. Por razões variadas, experimentaram o medo de autoridades que deveriam lhes inspirar confiança
McCaulley apresenta uma série de evidências intrigantes sobre o intenso contato das comunidades cristas antigas e particularmente da comunidade cristã em Roma com agentes do Estado responsáveis pelas garantias de segurança e repressão do crime, e aponta o que não é evidente para o leitor desatento, mas que salta aos olhos para um membro da comunidade negra: “Os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal. Não queres temer a autoridade? Faze o bem e receberás o louvor dela”.
O problema é que isso não funciona para os negros em muitas cidades dos EUA. O próprio McCaulley apresenta seu testemunho pessoal, de quando na juventude sofreu uma abordagem policial injusta e discriminatória que passou perto de levar a uma ficha na polícia – e isso significaria, no caso dele, a perda de uma vaga e uma bolsa na universidade. Embora não tenha sofrido tantas abordagens quanto McCaulley, apenas por ser negro, tenho uma vaga ideia do que significou pra ele o medo da polícia.
Gente de bem e honesta não deveria ter medo da polícia. Mas os cristãos do tempo do apóstolo tinham, assim como os negros dos EUA e os moradores de favelas brasileiras. Por razões variadas, experimentaram o medo de autoridades que deveriam lhes inspirar confiança. Penso que esse fenômeno deveria levar todos os que prezam a polícia e que desejam ver mais “Lei e Ordem” a uma séria reflexão. Às vezes um inocente, por medo, se comporta como se fosse culpado, sem o ser; medo inspira medo e justifica a violência. Se o bandido tem medo da polícia, está tudo bem; se a população vulnerável tem medo da polícia apenas porque é pobre, negra e mora no lugar errado, a polícia fracassou em seu papel.
Aos que não têm medo da polícia
Não quero me juntar aos denunciantes de nossos policiais. Meus reclames se dirigem à sociedade como um todo e, particularmente, à que não precisa ter medo. A lembrança do massacre de Tulsa é um bom momento para meditação crítica; eu não tenho medo, mas tem gente que tem, e isso é injusto.
Aqueles cristãos que leem Romanos 13 e não percebem essa contradição pertencem, provavelmente, ao grupo dos que não têm medo. E aqui Esau McCaulley traz uma formidável advertência: quem usa a Escritura para legitimar as autoridades, mas não consegue notar quando elas desobedecem a Deus, não está lendo a Bíblia corretamente. Como eu diria, o ponto de vista correto para ler a Bíblia não é o ponto de vista da autoridade, mas o ponto de vista do bem. Porque a autoridade é a autoridade do bem.
Se queremos governos minimamente compatíveis com a visão bíblica das coisas, não podemos tolerar um Estado que deixa gente honesta com medo
Os conservadores e os cristãos conscientes não podem mais tratar esse fato como um dano colateral e dizer a si mesmos, como Caim: “por acaso sou eu o cuidador do meu irmão?” Precisamos pensar seriamente em como dar todo apoio à polícia, especialmente diante do crescente movimento antipolícia; mas não vamos ajudar a polícia deixando-a decidir sozinha o que fazer, porque ela é uma serva de Deus para o bem da sociedade. Precisamos ouvir os medos e as raivas de quem vive sendo humilhado, vigiado e esquecido, e repensar a polícia a partir daí.
Se queremos governos minimamente compatíveis com a visão bíblica das coisas, não podemos tolerar um Estado que deixa gente honesta com medo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos