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Tornou-se notícia nacional a ação do IBDR, juntamente com o Partido Novo, contra o Conselho Federal de Psicologia no STF, que lançou em abril deste ano um ataque sem precedentes conta a liberdade religiosa e a liberdade de expressão dos psicólogos. Segundo a definição de laicidade do CFP, está proibido aos psicólogos associarem sua atividade à fé religiosa, e até mesmo integrar conceitos científicos e religiosos em seus conceitos, métodos e técnicas. O nível de desrespeito é absurdo – os psicólogos têm de pensar como ateístas.
O fato é que a psicologia moderna está longe de ser “laica”, nos termos fantasiados pelo CFP. Como já argumentamos nessa coluna, o individualismo expressivo é a religião secular de parte da psicologia moderna, promovendo um paraíso psicologizado e alimentando uma falsa consciência de neutralidade religiosa.
Tratando do assunto na coluna de hoje temos o jurista e nosso confrade no IBDR, Bruno Bracco, mestre e doutor pela USP com pesquisas explorando as interfaces entre a psicologia, a religião e o direito. Professor, autor de livros e artigos, tem publicações recentes no site “The Symbolic World” e na revista VoegelinView.
A estranha “laicidade” do Conselho Federal de Psicologia
Em abril deste ano, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou a Resolução 07/2023, versando sobre a “laicidade no exercício da Psicologia” – conforme termos utilizados pelo próprio conselho em seu website. Em síntese, o documento determina, ainda segundo o sítio eletrônico do CFP, “que, no exercício profissional, a(o) psicóloga(o) deve utilizar princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional, e considerar a laicidade como pressuposto do Estado Democrático de Direito”. O ponto central, como se vê, é delinear uma prática psicológica independente de qualquer religião, em prol de um ideal de neutralidade científica. Tal resolução motivou o manejo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.426, de lavra conjunta do Partido Novo e do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).
Segundo a definição de laicidade do CFP, está proibido aos psicólogos associarem sua atividade à fé religiosa, e até mesmo integrar conceitos científicos e religiosos em seus conceitos, métodos e técnicas. Os psicólogos têm de pensar como ateístas
Embora bastante curta e direta, contando com não mais que três artigos e duas dezenas de incisos, a Resolução 07/2023 desvela uma série de pressupostos importantes não apenas sobre o significado de laicidade, mas sobre as multifacetadas relações entre a psicologia e as religiões. Ótimos argumentos jurídicos de enfrentamento à resolução já foram habilmente manejados na inicial da referida ADI, e serão apreciados pelo ministro Alexandre de Moraes. Neste artigo, porém, quero abordar outros aspectos da questão.
Neutralidade possível?
O artigo 2.º, I, da resolução menciona que o psicólogo, no exercício profissional, deve considerar “a laicidade como pressuposto do Estado Democrático de Direito, fundado no pluralismo e na garantia dos direitos fundamentais”. Aqui já se oculta, em semente, muito do que a resolução explora nos dispositivos seguintes. Como fica claro, parte-se de uma concepção de “laicidade” ora como se se tratasse de um sinônimo perfeito de “neutralidade”, ora como recurso verbal que pretende garantir que nenhuma tradição religiosa seja utilizada como instrumento de intolerância em relação a outras religiões. O grande problema é que se trata de uma concepção de laicidade que, embora muito usual, passa ao largo de abarcar a complexidade do tema.
O que a resolução pretende, em diversos momentos, é estabelecer um distanciamento científico entre o campo das religiões e o campo da psicologia. A esta última caberia aceitar a religião como fato humano e social, ao mesmo tempo em que se imporia, ao psicólogo, que se abstivesse de menções ou ligações em relação a qualquer tradição religiosa. O campo religioso deve permanecer, portanto, afastado, em absoluto, do setting terapêutico; este, por sua vez, deve manter-se devidamente esterilizado de tudo quanto não seja perfeitamente técnico, científico e neutro.
Trata-se, contudo, de uma impossibilidade pura e simples. Lembro-me – e o menciono a título de ilustração – das acaloradas discussões sobre a tal “escola sem partido”. Seus defensores partiam do pressuposto de que, de fato, era possível uma escola sem partido – uma escola sem viés valorativo ou ideológico. O que ignoravam profundamente era, por exemplo, que a estrutura em si de virtualmente qualquer escola já se baseava em valores e ideologias. Isso foi constatado tanto por um Michel Foucault quanto por um John Taylor Gatto, pensadores, convenhamos, que ocupam posições muito diferentes no espectro político-ideológico.
As disposições enfileiradas das carteiras, a posição de autoridade do professor, as matérias eleitas como obrigatórias, os sinos que marcam rigidamente o início e o fim das aulas: nada disso é gratuito. Uma “escola sem partido”, supostamente sem ideologia, seria, no fim das contas, aquela que apenas exprimiria, em si mesma, uma ideologia oculta, pressuposta, despercebida. Seus defensores, portanto, iludiam-se com uma ideia irrealista de “neutralidade”: algo similar ao que acontece comigo mesmo, que, esbanjando um autêntico “paulistanês”, tenho a mais profunda convicção de que não tenho sotaque. Sotaques, como ideologias, são coisas dos outros.
Os redatores da Resolução CFP 07/2023 parecem ter ilusão semelhante. Parecem acreditar que a ciência psicológica é, em si mesma, neutra, e que Freud, Adler, Jung, Lacan ou Aaron Beck não se lastreavam em valores e ideologias, nem tinham uma cosmovisão pessoal: diziam o que diziam do alto da mais irrepreensível técnica, construindo, cada qual a seu modo, uma perfeita ciência psicológica. Ideologias e vieses ideológicos são coisas dos outros – dos religiosos, especialmente. No campo das ciências psi há objetividade e verdade, precisamente como meu límpido paulistanês é verdadeira e objetiva expressão de um português esterilizado de toda impureza.
O fato é que, queiram ou não admitir os defensores da pureza científica, a laicidade e o secularismo são, em si, conceitos muitíssimo problemáticos e intrincados. Charles Taylor, por exemplo, construiu uma obra monumental questionando as narrativas mais aceitas sobre a secularização: em síntese bastante breve, o que questiona, ao fim, é a pretensão de neutralidade presente nas narrativas seculares. Não há verdadeira neutralidade, sugere enfim Taylor, e a pretensão da civilização ocidental moderna nesse sentido é justamente um dos traços que a tornam mais idiossincrática, e menos neutra.
Mas, se tal pretensão de neutralidade científica já é, como detectou Taylor, problemática em relação à questão da laicidade tomada em seu todo, torna-se ainda mais problemática quando o assunto é a psicologia. Destrinchemos um pouco mais o problema.
As religiões, desde tempos muito remotos, investigam os domínios psicológicos do ser humano
Fronteiras psicoteológicas
O artigo 3.º, VI, da resolução indica que é vedado ao profissional da psicologia “associar conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas”. Este dispositivo me chama particularmente a atenção por uma razão simples: tive a felicidade de, por muitos anos da minha vida, estudar Carl Gustav Jung, certamente um dos mais importantes nomes das ciências psi. E o fundador da Psicologia Analítica, corrente muito popular no Brasil e no mundo, tinha um traço pessoal muito característico: ele amava estudar religiões. Afeiçoava-se por correntes esotéricas, gnósticas, alquímicas, mas também era um profundo conhecedor das grandes religiões, especialmente em sua dimensão simbólica. E a simbologia religiosa permeia toda a sua obra.
Imaginemos que um psicoterapeuta junguiano, conhecedor da bagagem religiosa de seu paciente, resolva explorar as diversas implicações de um símbolo como a cruz. Ou resolva empreender uma interpretação simbólica da figura de Maomé, Moisés, Buda ou Jesus Cristo, estabelecendo pontes de conexão com os conceitos junguianos de individuação ou Self. Ou imaginemos uma psicóloga junguiana que se dedique a estabelecer ligações simbólicas entre arquétipos e orixás. Nesses casos, o psicoterapeuta estaria associando conceitos da ciência psicológica a crenças religiosas? Estaria incorrendo em atitude vedada pela resolução? Seria punido pelo fato mesmo de, sendo de linhagem junguiana, utilizar-se de crenças e doutrinas religiosas como fundamento da própria prática psicoterapêutica? A Psicologia Analítica, assim, deveria ser proibida, ou ao menos dilacerada, para enquadrar-se nos estreitos limites da resolução?
E o que dizer das abordagens logoterapêuticas? Viktor Frankl, seu fundador, escreveu em A presença ignorada de Deus (Vozes, 2017) estas palavras muito diretas: “ninguém que seja honesto e leve a psicoterapia a sério pode jamais se esquivar do confronto com a teologia”. Na linha da análise existencial, Igor Caruso trazia contribuições religiosas ao seu pensamento, e o mesmo se pode dizer de figuras tão diversas e importantes quanto William James, James Hillman, Marie-Louise Von Franz, Erich Fromm ou Rollo May – ou, ainda, de ramos recentes da psicologia, como a Transpessoal, que encontra importantes fundamentos em Abraham Maslow e se desenvolve a partir de uma grande proximidade em relação a ideias religiosas e espiritualistas. Todos esses esforços, e muitos outros mais, deveriam ser ignorados ou ao menos severamente mutilados pelos profissionais brasileiros de psicologia, sob pena de violações à resolução?
Acredito que sejam questionamentos válidos.
Teorias psicológicas de fundo religioso
O fato é que as religiões, desde tempos muito remotos, investigam os domínios psicológicos do ser humano. A partir dos livros de D. T. Suzuki, por exemplo, tomamos conhecimento de que o budismo explora há séculos ideias próximas ao conceito freudiano de inconsciente. Há escritos importantes de autores muçulmanos que procuram esculpir uma ciência psicológica com base no Corão, nos ditos do Profeta e na magnífica literatura islâmica. Na tradição cristã, não são raras, também, formulações de uma verdadeira “psicologia cristã”, baseada, por exemplo, nos escritos dos Padres da Igreja – que, de seu turno, extraem muitas de suas concepções psicológicas da tradição grega. Jean-Claude Larchet pode ser citado como um exemplo contemporâneo neste sentido, como se vê em sua obra O Inconsciente Espiritual, que conta com uma tradução para o português. Também há esforços pela construção de uma “Psicologia Tomista”, como se vê, para nos limitarmos a mais um exemplo que conta com tradução para a nossa língua, nos trabalhos de Martín Echavarría. Estaríamos diante de traduções fadadas a serem incluídas no Index do CFP, uma vez que a mera menção a tais obras, pelo profissional de psicologia, teria o condão de estabelecer um vínculo proibido entre tradições religiosas e a laicíssima ciência psicológica?
Aparentemente, sim. Um Comunicado do CFP, de 2017, disponível no sitedo conselho, versa justamente sobre a possibilidade de uma Psicologia Cristã. E, para o CFP, trata-se mesmo de algo inadmissível, como lemos no documento:
“[...] 2. De acordo com a resolução CFP 13/2007, o Conselho Federal de Psicologia reconhece apenas uma Psicologia, que se constitui por 12 especialidades, técnica e cientificamente validadas. “Psicologia Cristã” não é uma delas; 3. A Constituição brasileira assegura a laicidade do Estado, e o Sistema Conselhos de Psicologia pauta-se por tal referencial ao realizar suas ações de orientação, fiscalização e regulamentação da profissão; 4. A autarquia comunica, adicionalmente, que encaminhou ofícios a estabelecimentos de ensino que não se referem à formação em Psicologia conforme a definição legal em que solicitou alteração no nome do curso e nas campanhas de divulgação.”
A declaração é muito problemática. Para começar, a mencionada Resolução CFP 13/2007 de fato elenca 12 especialidades. Trata-se, porém, de um elenco genérico – que não fala, por exemplo, em “Psicanálise” ou “Psicologia Analítica”, exatamente da mesma forma como não menciona “Psicologia Cristã”. No entanto, parece muito improvável que um psicanalista sofresse a objeção de que “a Psicanálise não é uma das especialidades técnica e cientificamente validadas”. Claro que nem poderia sê-lo, pela razão simples de que a Psicanálise, embora não expressamente mencionada, é espécie do gênero “Psicologia Clínica”! Eis as 12 especialidades, de acordo com a Resolução: “I. Psicologia Escolar/Educacional; II. Psicologia Organizacional e do Trabalho; III. Psicologia de Trânsito; IV. Psicologia Jurídica; V. Psicologia do Esporte; VI. Psicologia Clínica; VII. Psicologia Hospitalar; VIII. Psicopedagogia; IX. Psicomotricidade; X. Psicologia Social; XI. Neuropsicologia”. Também é curioso que o CFP tenha especialidades bastante peculiares, como uma “Psicologia do Trânsito”, mas não mencione a “Psicologia da Religião”, ramo reconhecido e muito estudado em diversos países.
A Resolução 07/2023 do CFP promove precisamente a intolerância religiosa que pretende combater – e intolerância da pior espécie, pois direcionada à religião como um todo
Mas voltemos ao mérito da questão: há esforços similares em outros campos: do espiritismo ao candomblé, são esforços pela união de duas dimensões da integridade humana – a psicológica e a espiritual ou noética – que, afinal de contas, não estão tão distantes assim. No entanto, parece bastante claro que eventual psicólogo ou psicóloga que resolvesse se valer de sérios estudos e aplicar, em seu setting terapêutico, conceitos de religiões de matriz afro, revelando suas intenções sem camuflagens, incorreria em violação a ao menos dois dispositivos da resolução: “V – utilizar o título de psicóloga ou psicólogo associado a vertentes religiosas” e “VI – associar conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas”. E o mesmo, claro, se daria com eventual profissional cristão que, sem disfarces, se revelasse como tal, por acreditar no gigantesco potencial de auxílio psicológico escondido nas doutrinas, nos ensinamentos e nos símbolos evangélicos. Aparentemente, aos profissionais da psicologia no Brasil é amplamente permitido, como muito se vê na prática, uma mistura pessoalíssima de correntes psicológicas diversas, de forma muito pouco técnica ou científica, aliás. A quem menciona religião, porém, resta apenas um veredito: por violação à sagrada ciência e à sacrossanta laicidade, seja anátema!
A resolução não é, ao final, de todo má. É bastante salutar, de fato, que psicólogos e psicólogas não pratiquem “atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão à crença religiosa” (artigo 3.º, I), não se utilizem “de práticas psicológicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência” (artigo 3.º, III) e não exerçam ação “que promova ou legitime práticas de intolerância e racismo religioso” (artigo 3.º, VII).
No que tem de bom, contudo, a resolução é redundante e desnecessária: há instrumentos legais de status muito mais elevado que já vedam essas coisas: racismo e tortura, por exemplo, são crimes inafiançáveis, e não por força de uma mera resolução. No que lhe compete propriamente, a Resolução 07/2023 do CFP, ao partir de ideias grosseiras sobre o sentido de laicidade e ao pressupor uma impossível “neutralidade científica” no campo das ciências psi, não apenas demonstra uma seríssimo desconhecimento dos fundamentos profundos de diversas correntes da psicologia, como também promove precisamente a intolerância religiosa que pretende combater – e intolerância da pior espécie, pois direcionada à religião como um todo, em suas mais variadas vertentes.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos