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Mario Vieira de Mello nos acusou de sermos uma nação de estetas, alheios a uma cultura genuinamente ética, sendo esse “o problema fundamental de nossa época”. E o desenvolvimentismo, esse grande paradigma que reinou sobre a intelectualidade brasileira praticamente até a emergência do identitarismo, teria sido uma cria do nosso estetismo. Por minha conta e risco eu incluiria o identitarismo na linha de tiro do embaixador-filósofo. Na coluna de hoje comentaremos uma crítica muito pertinente, levantada por Mario Vieira de Mello contra ninguém menos que Sergio Buarque de Holanda, e proporemos desse limão uma limonada, iluminando melhor o estetismo nacional.
Aqueles interessados em obter uma tipologia moral do brasileiro – ou, mais especificamente, de suas saliências morais problemáticas, encontram em Sergio Buarque de Holanda uma abordagem ímpar. Já nos debruçamos sobre o tema, numa discussão em torno do clássico “Raízes do Brasil”, nessa coluna: de Holanda brindou os brasileiros com a sua concepção de “homem cordial”, não no sentido, que emergiu em sua disputa com Cassiano Ricardo, de “bondoso” ou “afável”, mas no sentido de alguém dominado por seus afetos, para o qual a racionalidade e as regras sociais devem dobrar-se e adaptar-se a um naturalismo do instinto, dos impulsos e dos apegos emocionais. Segundo o nosso grande historiador cultural, a formação do homem cordial explicaria o problema da “falta de coesão em nossa vida social”.
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A força do tipo ideal construído por de Holanda fica ainda mais clara a partir da crítica lançada por Mario Vieira de Mello à concepção holandiana. Mas antes da crítica, retornaremos rapidamente ao “homem cordial”, para refrescar a memória do leitor.
Cordial/Visceral
A faca corta para os dois lados, aqui. De Holanda escolheu o termo “cordial” com a mente no termo latino cordis, ou “coração”. O homem cordial pode ser afetuoso, caloroso, sentimental, inclinado à intimidade, mas não é só isso o que vem do coração. Ele também pode ser “entrão”, desconhecer os limites do eu e do outro, do público e do privado, derreter as normas e desgastar suas “quinas” para que prevaleça o interesse privado; e significa, enfim, o império da paixão, dos sentimentos agressivos e da impulsividade, dos personalismos em situações de divergência. Daí que a expressão original do Dr. De Holanda seja sempre e inevitavelmente corrigida por “homem visceral”. Ainda que “cordial” seja mais sutil, com uma ironia implícita e um sugestionamento sobre a verdadeira origem da afetividade nacional, o ponto do tipo ideal Holandiano é iluminar o governo das paixões, do reino do próprio ventre.
Mais do que isso: a prevalência de um tipo de sociabilidade na qual o instinto e o afeto reinam soberanos: a ordem familiar, biológica e estruturada sobre laços de preferência. A crítica do homem cordial é inseparável da crítica ao familismo brasileiro, que organiza as lealdades de forma contrária à vida social racional. De Holanda ironiza as “virtudes familiares”, cuja força resiste à modernização e suas regras de iniciativa e responsabilidade individual, isonomia, transparência, separação entre o público e o privado; essas virtudes coroam uma ordem patriarcal autoritária, doentia, incapaz de formar indivíduos para a sociedade moderna. Sua postura antifamília é explicita:
“Onde quer que prospere e assente em bases muito sólicas a ideia de família – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo os conceitos atuais.”
Se a vida doméstica sempre forneceu “o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”, essa esfera, na qual os laços de sangue e de coração são dominantes, é a partir dessa ordem que se projetou o ethos cordial para a sociedade brasileira, e apenas a sua abolição, no mundo público, garante a operação livre do Estado. E assim Sergio Buarque de Holanda que, como Capistrano de Abreu, sofreu as penas de um ambiente familiar patriarcal e opressivo, via na urbanização capitalista, na burocratização, no Estado moderno e no individualismo o processo que enfim aposentaria a matriz social do homem cordial.
Tudo isso é interessantíssimo, como peça de história cultural e de sociologia compreensiva segundo a tradição weberiana, e forneceria um excelente atalho para as discussões sobre o ethos nacional, não fosse o fato de o próprio Sérgio Buarque de Holanda evitar uma interpretação “moral” de seu trabalho (o que, de resto, os weberianos sempre se esforçam para esclarecer). Mario Vieira de Mello indignou-se precisamente com essa reticência em dar o nome aos bois, em extrair as obvias implicações de uma abordagem sociológica que, em todo o caso, assume a força dos fins humanos na história e na constituição social.
Seria, o Homem Cordial... um Esteta?
Sergio Buarque de Holanda quer ficar apenas na história e na sociologia, mas a discussão de um perfil pessoal dominado pelos afetos, pelos laços de amizade e consanguinidade, e incapaz de se submeter a regras impessoais, ou de priorizar o bem comum sobre o interesse privado e, acima de qualquer dúvida, uma discussão implicitamente moral. A preferência de Holanda por um novo mundo no qual o patriarcalismo se torne passado é um julgamento intrinsecamente moral. Mas qual é essa moral implícita?
“A idade Média mal conheceu as aspirações conscientes para uma reforma da sociedade civil. O mundo era organizado segundo leis eternas indiscutíveis, impostas do outro mundo pelo supremo ordenador de todas as coisas. Por um paradoxo singular, o princípio formador da sociedade era, em sua expressão mais nítida, uma força inimiga, inimiga do mundo e da vida. Todo o trabalho dos pensadores, dos grandes construtores de sistemas, não significava outra coisa senão o empenho em disfarçar, quanto possível, esse antagonismo entre o Espírito e a Vida (Gratia naturam non tollit sed perficit). Trabalho de certa maneira fecundo e venerável, mas cujo sentido nossa época já não quer compreender em sua essência.”
Logo nas primeiras páginas da obra nosso autor anuncia honestamente sua postura avessa à síntese católica de natureza e graça, denunciando os esforços de ordenar a vida moral a partir de uma lei transcendente como algo forçado e superficial, como um paradigma heterônomo. Herdeiro como era de Max Weber e de Wilhelm Dilthey, segundo nota o professor José Carlos Reis, de Holanda era um historicista, alguém para o qual não há possibilidade de vermos a história sub specie aeternitatis. O que temos é tão somente o discernimento de um processo progressivo de modernização que envolve racionalização, e que causa necessariamente a decadência das velhas formas de sociabilidade.
É assim que um eticista com outras perspectivas poderia criticar a formação moral fornecida pelo catolicismo de contra-reforma a partir de discussões de mérito e de substância, e um protestante poderia, talvez, criticar a síntese romanista de natureza-e-graça a partir da cosmovisão calvinista, mas tudo isso sem desprezar a existência de “leis eternas indiscutíveis”. Não será que nosso intérprete do Brasil se esqueceu de que o mundo protestante, com sua ética protestante profundamente afirmadora da vida e do trabalho, era também um mundo organizado “segundo leis eternas indiscutíveis, impostas do outro mundo pelo supremo ordenador de todas as coisas.”? É como se de Holanda projetasse a modernidade secular diretamente sobre suas raízes ainda cristãos e religiosas.
Essa recusa à ética como saber axiomático e às fontes transcendentes da moral não passou em branco para Mario Vieira de Mello:
“Ora, perguntemos, por que uma tal questão parece ao Senhor Buarque de Holanda desprovida de importância? Por que não se lhe afigurou indispensável situar o fenômeno da cordialidade brasileira dentro de um contexto geral de cultura? Uma única resposta parece cabível no caso: se esse contexto não emergiu ao seu horizonte é porque ele próprio se situava dentro dos contornos de tal contexto. Em outras palavras: se o senhor Buarque de Holanda com a expressão cordialidade eliminou deliberadamente os juízos éticos e as intenções apologéticas da sua concepção do homem brasileiro e se, por outra parte, não compreendeu que a segunda alternativa, a possibilidade de fazer intervir o elemento estético na sua interpretação do problema constituía a solução que então se impunha, a razão disso só poderemos encontrá-la no fato de estar o autor de Raízes do Brasil de tal modo identificado com uma maneira estetizante de compreender o mundo que lhe falta o recuo necessário para distinguir no fenômeno da cordialidade brasileira a manifestação inequívoca de uma cultura determinada pela ideia do Belo. Se a cordialidade do homem brasileiro não lhe parece indissoluvelmente ligada a um tipo de cultura determinado pela ideia do Belo é porque a noção de um tal tipo de cultura não emergiu ainda ao nível de seu horizonte visual. E isto quer dizer que ele próprio é um representante deste tipo de cultura e, por conseguinte, o considera como o único tipo possível e imaginável.”
A longa citação se justifica por sua importância. O embaixador-filósofo reconheceu, no estilo do “homem cordial”, o paradigma estetizante discutido em sua obra “Desenvolvimento e Cultura”, voltado para a temporalidade e para a felicidade temporal, hedonista, esvaziado de orientação para a transcendência e insensível ao chamado e aos comandos do Bem absoluto. Ora, essa identificação cria um evidente paradoxo: Mario Vieira de Mello identifica na influência do romantismo francês a nossa formação como uma nação de estetas, mas é claro que o paradigma “cordial” é muito anterior. Poderíamos salvar a sua tese com a hipótese de que o espírito já visceral e pouco religioso do brasileiro forneceu o “engate” apropriado para receber os produtos da exportação cultural francesa. Mas, nesse caso, a influência francesa não seria tanto a “fonte” do nosso estetismo, mas a sua consolidação.
O ponto do título do artigo
Há outra dificuldade nessa identificação de estetismo e cordialidade, e uma dificuldade formidável: o homem cordial é familista e patriarcal, autoritário e comprometido visceralmente com os seus e suas coisas privadas e, com isso, guarda uma atitude para com a coisa pública e o bem comum que vai do descompromisso até ao parasitismo. Ora, isso não é facilmente identificável com a atitude estético-romântica que, embora possa ser também de sensibilidade naturalista, expressivista e emocional, pode muito bem recusar os elementos autoritários e assumir um acentuado individualismo. Por sinal, é a partir desse lugar que Sergio Buarque de Holanda faz a sua crítica ao homem cordial e aos modos antigos e tradicionais de sociabilidade. Ele recusa claramente a moralidade “cordial”.
No entanto, Mario Vieira de Mello foi capaz de classificar o próprio de Holanda como um esteta; mas daqueles estetas de uma classe especial, para a qual seria possível contornar as questões éticas e resolver nossos dilemas existenciais e sociais por meio da ciência e da engenharia social. Nisso ele seria um herdeiro, se não das doutrinas, do espírito do positivismo – no que nada haveria de surpreendente, já que essa é uma tara típica de sociólogos. Mario Vieira de Mello desenvolveu uma categoria distinta só para descrever esse perfil, típico da inteligência brasileira: o “homem curioso”.
Nesse caso, o “homem cordial” deveria ser visto como uma fase/manifestação particular do estetismo nacional. O próprio desenvolvimentismo seria uma outra fase – com Sérgio Buarque de Holanda postando-se precisamente na transição entre uma e outra fase.
Como cantei a pedra acima, eu também classificaria o identitarismo como uma forma de estetismo, no sentido Melliano, já que sua paixão moral gira ao redor da absolutização do bem-estar emocional, da autenticidade e da autoexpressão, o que são valores originários do romantismo, segundo Charles Taylor – e, de modo muito interessante, foi esse mesmo romantismo o que alimentou o desenvolvimentismo brasileiro, numa fase anterior. A diferença é que o desenvolvimentismo era nacionalista e socialista, ao passo que o identitarismo é liberal e individualista. O identitarismo seria, então, a terceira fase do estetismo nacional.
A coisa poderia ser colocada, grosso modo, nos seguintes termos: a primeira fase do estetismo nacional seria a fase cordial, conservadora, resultante da composição das moralidades que se miscigenaram no país com o catolicismo de contra-reforma; a segunda fase seria a fase nacional-desenvolvimentista, governada por uma intelectualidade cientificista e de inclinação socialista, cobrindo toda a trajetória do desenvolvimentismo nacional, até a ascensão de FHC à presidência. Nessa fase temos uma forte reação contra o autoritarismo cordial, contra a religião e contra as formas sociais do Brasil antigo.
A terceira fase seria, naturalmente, a fase identitarista, de matiz liberal, com um ethos terapêutico e pilotada pelos campos afetivos modernos, segundo a lógica do capitalismo emocional. Essa fase aprofunda a resistência ao autoritarismo cordial, mas sua paixão permanece, ainda, ironicamente, cordial, afetivista e visceral. Essas três “fases” não seriam meramente “etapas” mas, empregando a ambiguidade da analogia química, seriam também substratos que se formam e se adicionam à cultura nacional.
E quanto à cultura ética, no sentido preconizado por Mario Vieira de Mello? Não penso que seria justo negar sua presença ao longo dessas três fases da cultura nacional. Eu faria uma qualificação em seu argumento: ela nunca foi dominante no imaginário moral brasileiro, mas sempre teve uma representação minoritária, principalmente a partir das igrejas católicas e evangélicas.
Cabem ainda algumas palavras finais sobre o grande Sergio Buarque de Holanda: a despeito das críticas de Mario Vieira de Mello, seus méritos devem ser reconhecidos. Embora não tenha sido capaz de enquadrar adequadamente suas descobertas, é certo que sua interpretação foi momentosa, e se tomada como ponto de partida, fornece à discussão melliana da ausência de uma cultura ética nacional uma fundamentação histórico-cultural inestimável.