Ontem celebramos 72 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, da qual o Brasil é signatário. Mas a festa foi anteontem de madrugada, com a Polícia Militar do DF inviabilizando uma manifestação em defesa dos direitos humanos.
Foi com surpresa e indignação que acompanhei as notícias sobre o desmonte da manifestação da ONG Rio de Paz pela PM do Distrito Federal. A Rio de Paz, fundada pelo pastor presbiteriano Antônio Carlos Costa, é conhecida por seu estilo midiático e seu pesado investimento no impacto simbólico, como as já conhecidas cruzes representando mortes de pessoas que deveriam ser protegidas pelo Estado brasileiro.
A lógica faz muito sentido; como o pastor gosta de dizer, no imaginário moral dos brasileiros algumas pessoas são “matáveis”. É uma pena que morram, mas não um grande desastre. A abordagem da Rio de Paz visa dissolver essa atitude blasé e, particularmente, colocar sob a luz pública a omissão, inconsequência ou a culpa direta do Estado por diversas violações de direitos humanos.
No imaginário moral dos brasileiros algumas pessoas são “matáveis”
Mas na última quarta-feira de madrugada a própria Rio de Paz foi vítima do desinteresse da máquina pública pelos direitos humanos. Particularmente, pela liberdade de expressão que, no caso, por método da ONG, dependia do impacto visual, da cenografia, do simbolismo. O propósito da montagem era protestar contra o fim do auxílio emergencial; os membros da ONG visitaram uma favela a 15 minutos do Plano Piloto e as fotos deixam clara a situação. O que eles iam fazer, na prática, era “transplantar” simbolicamente a realidade daquela comunidade para a Esplanada. Mas, para a Polícia Militar do DF, eram apenas mais um punhado de barracos.
O que torna a ação das autoridades simbolicamente significativa é o momento. Ontem, dia 10 de dezembro de 2020, celebramos 72 anos da DUDH; apenas um dia depois da manifestação. E esse foi o presente de 72 anos entregue pela PM do DF: proibir uma manifestação de uma das mais importantes agências de advocacy e conscientização de direitos humanos do país, sob a justificativa de que acampamentos seriam vedados no local. Tudo feito com toda a justiça e nos termos da lei – que foi aplicada com todo o rigor... neste caso.
Em nossa coluna de hoje recebemos Lucas Louback, coordenador de projetos e articulador de advocacy na ONG Rio de Paz, que estava no local e nos apresentou seu relato de primeira mão.
Lucas, o que é a Rio de Paz e como vocês trabalham?
Rio de Paz é uma organização composta por membros da sociedade civil que têm como objetivo principal potencializar a voz e visibilidade a todos os que são ignorados ou têm seus direitos civis, políticos e sociais violados pelo Estado brasileiro. Em um contexto de tantas violações é indispensável que pessoas e organizações atuem junto às instituições do Estado com a finalidade de influenciar a sociedade e o poder público na construção de políticas públicas que valorizem a vida.
Ou seja: nossa principal frente de atuação é o ativismo com foco em advocacy. Atuamos pressionando sistematicamente as instituições do poder público com o objetivo de influenciar a formulação de políticas públicas que garantam redução de homicídios, combate à desigualdade social e empobrecimento. Somos reconhecidos no Brasil e no exterior por nosso modelo de protesto urbano pacífico e criativo contra medidas que prejudiquem a vida, sobretudo dos mais pobres.
O Rio de Paz é filiado ao Departamento de Informação Pública da ONU e atua para se manter referência na produção de informações sobre direitos humanos, condutores de políticas públicas e alerta para distorções sociais e violação dos direitos do povo brasileiro.
O que aconteceu no dia da montagem da manifestação?
Chegamos por volta das 2 horas à Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso Nacional, para montagem da nossa manifestação pública contra o fim do auxílio emergencial. Em nossas manifestações, buscamos símbolos que comuniquem a causa da pauta. Preparamos seis barracos removíveis e uma mesa de cinco metros, entre outros utensílios; o objetivo era ilustrar a precariedade de moradia em que vivem muitos moradores de favelas e que também estão sob o risco do espectro da fome e da insegurança alimentar. Gente que depende do auxílio emergencial em tempos de crise.
Por volta das 3h30 fomos interpelados pela PM do DF com a ordem de desmontagem. Apresentamos nossa documentação de solicitação à secretaria, mas o croqui do ato e nosso histórico de manifestações em Brasília.
A PM foi irredutível. Buscamos o diálogo e entender o argumento legal que proibia a instalação no gramado da Esplanada dos Ministérios. Eles alegaram que naquele local não era permitida nenhuma estrutura. Buscamos compreender o conceito de estrutura, já que a Secretaria de Justiça não nos apresentou nenhuma proibição ou informação após nossa solicitação.
“É indispensável que pessoas e organizações atuem junto às instituições do Estado com a finalidade de influenciar a sociedade e o poder público na construção de políticas públicas que valorizem a vida.”
Lucas Louback
Depois de muitas tentativas de diálogo, apresentando o nosso argumento sobre o direito que a Constituição garante, eles ordenaram a desmontagem dos barracos. A única condição para a permanência dos barracos era de voluntários sustentando as madeiras – o que era praticamente impossível. Como não tínhamos voluntários suficientes, desmontamos cinco barracos sob a pressão da polícia e a fiscalização da PM. Apenas um ficou mantido, com voluntários se revezando para sustentar.
E, no fim da tarde, a PM acionou o DF Legal, que apreendeu todo o material dos barracos e da mesa. Solicitamos a documentação para apreensão e o argumento jurídico para tal. Ficaram de nos apresentar, mas não apresentaram e informaram que só conseguiríamos o documento no depósito.
E quanto a essa alegação da PM do DF, ao fazer o desmonte e recolher o material? Na opinião de vocês, o argumento procede?
O argumento da PM foi o de que não era mais permitida a instalação de estrutura no espaço, e o argumento do DF Legal foi a Lei 972 (que “dispõe sobre os atos lesivos à limpeza pública e dá outras providências”). Isso foi usado para retirar um material que, para nós, consistia em uma demonstração artística e pacífica. Todo o material pertencia a uma cooperativa que presta auxílio trabalhista a egressos do sistema penal.
E vocês receberam algum feedback posterior da Secretaria de Segurança Pública do DF?
Não recebemos nenhum feedback.
Mas houve algum contato da Rio de Paz com órgãos públicos de defesa dos direitos humanos do DF ou federais? O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi contatado?
Entramos em um diálogo inicial com alguns órgãos políticos para uma abordagem institucional. Ainda estamos analisando o argumento dado pela PM e a forma como a DF Legal aprendeu o material.
Vocês têm larga experiência com manifestações simbólicas em seu trabalho de advocacy. Aparentemente essa resposta da Polícia Militar foi diferente do normal. Vocês têm alguma hipótese sobre a mudança?
Já realizamos diversas manifestações em Brasília nos últimos anos e em governos passados, e nunca nos foi negado o direito ao protesto.
Todas as manifestações da RdP são pacíficas, nunca provocamos danos materiais ou pessoais, e diante do nosso histórico acreditamos que a forma como fomos impedidos revela que atualmente há um rigor maior em cercear o direito ao protesto. Sentimos que não nos foi dado o direito de entender o argumento para proibição do nosso ato.
“Já realizamos diversas manifestações em Brasília nos últimos anos e em governos passados, e nunca nos foi negado o direito ao protesto. a forma como fomos impedidos revela que atualmente há um rigor maior em cercear o direito ao protesto.”
Lucas Louback
Como você conheceu a Rio de Paz, e o que significa pra você hoje?
Atuo já há alguns anos com desenvolvimento comunitário nas favelas do Rio. Conheci a Rio de Paz através do ativismo e ações de advocacy pela vida de moradores de comunidades pobres que têm direitos violados de forma recorrente. Percebi que, além do esforço “micro” para o desenvolvimento comunitário, era necessário pressão política para envolver o Estado em sua responsabilidade. Comecei como voluntário, apoiando manifestações, e atualmente coordeno projetos de impacto social na ONG envolvendo desenvolvimento comunitário e ativismo.
Ontem comemoramos os 72 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, mas para muitos no Brasil hoje há pouco a comemorar. Quais são os maiores desafios em direitos humanos no presente momento de nosso país?
Somos a sétima maior economia do mundo e o nono país mais desigual. Entre os efeitos dessa desigualdade econômica estão impactos e flagelos sociais absurdos. Cerca de 13,5 milhões de pessoas vivem em extrema pobreza, sobrevivendo com R$ 145 mensais. E 52,5 milhões vivem em pobreza. A precariedade dos recursos para sobrevivência viola uma série de direitos: insegurança alimentar, educação precária, saúde etc.
O Brasil viveu três séculos de sua curta história em um regime escravocrata e a libertação dos escravos não significou garantia de igualdade e plena liberdade. As marcas desse passado ainda estão muito presente na sociedade através do racismo. Negros são os que mais morrem violentamente, os condenados pelo sistema penal e os que menos ocupam cargos de liderança institucional.
Somos a terceira maior população carcerária do mundo. E a condição dos presídios pelo Brasil é extremamente desumana. Existe um imaginário social de que “bandido bom é bandido morto”, e quando essa justiça não é feita através de execução por milícias ou forças do Estado, é feita através de condições precárias dentro das celas. Os presídios estão superlotados em todo o país.
“52,5 milhões de brasileiros vivem em pobreza. A precariedade dos recursos para sobrevivência viola uma série de direitos.”
Lucas Louback
O Brasil tem o nono maior índice de homicídios no mundo. Nossa taxa continua alta. Quase 30 para cada 100 mil habitantes. Apenas pra comparar, a OMS considera 10 homicídios para cada 100 mil pessoas o máximo “aceitável”, o que dá um quinto dos números brasileiros.
Além disso, a violência contra a mulher, o feminicídio e a homofobia estão amplamente presentes, não meramente em piadas infames, mas também nas relações pessoas e institucionais.
O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos desde o início (1948). Mas nossa história é marcada por violações terríveis, e mesmo após a declaração vivenciamos mais um regime de supressão de liberdade do qual só nos livramos com muita luta e um duro processo de redemocratização. Temos hoje uma Constituição com base na DUDH. Há muito trabalho a fazer para que nossa nação ofereça o máximo de vida, liberdade, igualdade e dignidade: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.
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