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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

"Nova direita"

A restauração do regime

Em foto de março de 2016, o então deputado Jair Bolsonaro é recebido por apoiadores no aeroporto de Curitiba. (Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo/Arquivo)

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“Por isso, pensei: embora a sabedoria seja melhor que a força, o sábio é desprezado quando é pobre. Suas palavras logo são esquecidas. É melhor ouvir as palavras calmas da pessoa sábia que os gritos do rei tolo. É melhor ter sabedoria que armas de guerra, mas um só pecador destrói muitas coisas boas.” (Eclesiastes 9,16-18, NVT)

Publiquei, em junho do ano passado, um artigo no Observatório Evangélico relembrando as “jornadas de junho”, ocorridas dez anos antes, em 2013. Celebradas à época por muitos esquerdistas e denunciadas por muitos conservadores, chegaram a ser descritas como a manifestação do “poder constituinte”. Era visível, já àquela altura, que o verdeamarelismo de 2013 sinalizava uma sensação generalizada de ausência de representação política, e uma expressão popular espontânea e indiferenciada contra o establishment.

Era difícil nomear precisamente esse estabelecimento e a natureza da reação que se congregava; mas o tempo revelou ângulos ideológicos da movimentação. Tratava-se, para a esquerda acadêmica, de uma reação fascista, originária da classe média e alta conservadora, contra a crescente “democratização” promovida na era lulopetista – o crescimento das políticas identitárias e afirmativas. Contra essa interpretação, parcialmente verdadeira, mas unilateral, analistas perspicazes notaram que nenhuma minoria foi escorraçada das manifestações; apenas as bandeiras partidárias foram recusadas. Ou seja: o problema era uma sensação mais ampla de desempoderamento social e político.

Olhando retrospectivamente, entendo que se desenhava em 2013 um levante, inicialmente gentil, mas progressivamente radicalizado, das massas contra uma elite pseudodemocrática

Mas os contornos do conflito se tornaram mais visíveis com os progressos do lavajatismo e a atividade de coletivos como o MBL, atingindo diretamente o estabelecimento: um consórcio corrupto entre grande capital empresarial e o projeto hegemônico de esquerda cultural, despudoradamente vendido como a consolidação da democracia. A degradação rápida da imagem pública desse estabelecimento permitiu o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 – com o suporte hipócrita de uma parte da mesma classe política reinante – e a ascensão da nova direita. Essa foi a grande “revolta do subsolo”, associada a Olavo de Carvalho e denunciada pela pena de Martim Vasques da Cunha. Tudo isso culminaria no bolsonarismo e nos “patriotas”.

A composição dessa revolta é do mais alto interesse: uma pequena elite intelectual composta de tradicionalistas reacionários, conservadores católicos, libertários e liberais, tanto religiosos quanto secularizados, e... as massas. Aqui a sociologia esquerdista tradicional entrou em colapso: a maioria dos evangélicos, num recorte que se estendia da classe baixa e trabalhadora à classe média, incluindo muitos negros e mulheres, deu suporte a Bolsonaro e à direita, ao passo que a esquerda se descobriu uma composição de classe baixa católica concentrada em algumas regiões, e uma classe média e alta profundamente secularizada. À diferença da elite cultural, no entanto, a revolta carecia de poder institucional: era totalmente minoritária no jornalismo e no Judiciário, quase inexistente na universidade, e marginal na produção cultural. Essa combinação de paraelite e proletariado cultural reproduziu-se pelos meios que pôde: mídias sociais e eleições. Revelava-se assim a estrutura da nova guerra de classes: uma ruptura entre o proletariado cultural, incluindo em si a maioria dos evangélicos, e a elite cosmopolita.

Olhando retrospectivamente, entendo que se desenhava em 2013 um levante, inicialmente gentil, mas progressivamente radicalizado, das massas contra uma elite pseudodemocrática. E, à medida que o establishment se explicitava como um consórcio envolvendo dinheiro, hegemonia na indústria da cultura e do conhecimento, e classe política tradicional, vimos um novo tipo de polarização se desenvolver ao longo desses dez anos. Não mais de uma luta horizontal entre “esquerda e direita”, mas uma luta vertical entre proletariado cultural e a elite progressista.

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O que radicalizou esse movimento? Olavo de Carvalho, num primeiro momento, não tanto por algumas leituras válidas sobre a cultura nacional, mas pelo animus, o espírito antipolítico de guerra cultural total, de certo modo mimetizando o espírito do petismo. Mas em seguida emergiu a figura de Bolsonaro: um homem “do povo”, sem a cultura de Olavo, mas encarnando precisamente esse animus. Como o homem “certo” na hora “certa”, ele arrastou consigo grande parte das forças políticas e dos questionamentos despertados em 2013.

Mas sejamos honestos: Bolsonaro revelou-se um equívoco político. Governou mal, destruiu pontes, afastou aliados importantes, lançou aos cães o movimento anticorrupção e, ao fim, conspirou. Ainda que ele escape de uma condenação por atentado contra o Estado de Direito – algo, se não impossível, bastante improvável –, o fato é que, no mínimo, ele conspirou. E, ao conspirar, colocou em xeque, de forma irresponsável, todo o movimento desde 2013, concluindo e cristalizando a sua associação com um espírito autoritário e antidemocrático. A esquerda se rirá disso, é claro, alegando que o movimento sempre foi antidemocrático; mas isso não passa de essencialismo barato. Sua degradação progressiva foi um fenômeno histórico e, além disso, visível a olho nu, com denúncias de não poucos conservadores. O fundo do poço foi a desqualificação sistemática das instituições e a formação de uma extensiva “patriotada” golpista, acampada diante dos quartéis, e que acabou morrendo como boi de piranha em 8 de janeiro de 2023. E foi assim que um grupo de “pecadores” destruiu muitas coisas boas.

O que o equívoco bolsonarista produziu? Não uma retração, mas uma expansão do autoritarismo do Judiciário, agora mais forte e mais interventor do que nunca. Para conter a crescente ameaça bolsonarista, o sistema ressuscita Lula e o lulopetismo, arruinando a confiabilidade das instituições. Os feitos da Lava Jato são revertidos da forma mais despudorada, com a corrupta elite empresarial voltando das trevas. Consolida-se a juristocracia. A impunidade de quem colabora com (ou ao menos não atrapalha) o estabelecimento é sacramentada, e a segurança pública vai para o espaço. A elite cultural retoma a sua luta pela “democracia” e pelo “avanço civilizatório” sem qualquer discussão honesta sobre liberdades civis fundamentais e sobre os efeitos destrutivos do identitarismo.

Com o colapso da revolta bolsonarista, as coisas voltam a ser muito parecidas com o que eram pouco antes de 2013. Com muitas diferenças importantes, é claro; o proletariado cultural e a paraelite conservadora chegam cansados e, em parte, resignados a 2024

Tivessem os políticos de direita algum juízo, haveriam construído pontes com a oposição em vez de apostar na guerra total (a antipolítica), e aceitado de boa mente a derrota eleitoral. Aceita a derrota, a direita teria poder para se articular e negociar, e o STF teria limitada justificativa para seus excessos. Não se comprova, como escrevi em resposta à loucura do 8 de janeiro, que a guerra cultural traz frutos muito amargos? Ainda que Bolsonaro se safe da prisão, a herança do rei tolo é a vergonha.

Apesar disso, a dura resposta do sistema contra o bolsonarismo golpista não é de todo ruim. Talvez essa amputação dê uma nova chance à direita e aos conservadores, em particular. Naturalmente não será uma recuperação fácil e indolor, mas seus frutos podem ser bons. Para os evangélicos, em particular, o que se abre é uma chance de ouro: abandonar de vez o aventurismo político e mergulhar na doutrina social cristã.

Isso não quer dizer que o Brasil vai sair disso “curado”. Com o colapso da revolta bolsonarista, as coisas voltam a ser muito parecidas com o que eram pouco antes de 2013. Com muitas diferenças importantes, é claro; o proletariado cultural e a paraelite conservadora chegam cansados e, em parte, resignados a 2024. Não há mais inocência sobre a periculosidade da extrema direta. A sacralidade da democracia é afirmada de modo inequívoco, reduzindo drasticamente o risco de rupturas imediatas (o que é, realmente, uma vitória). No entanto, o estabelecimento problemático sai fortalecido, ainda que perfeitamente radiografado aos olhos da direita. Uma nova era política se abre diante de nós: a restauração do regime.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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