Vimos nos últimos dias um debate curioso sobre a acusação de “genocídio” contra Bolsonaro. Conto-me entre os que consideram esse tipo de acusação uma banalização do genocídio e um desserviço ao trabalho de informação. Embora o termo sirva para mobilizar as indignações e unificar a oposição mais convicta, é um overstatement; e, por isso mesmo, um dispositivo retórico ambíguo. Tende a reduzir o crédito da oposição e a possibilidade de atrair o setor não bolsonarista do eleitorado de Bolsonaro. A expressão “genocídio culposo”, entre aspas, pode até passar metaforicamente, mas mais do que isso acaba levantando sobrancelhas.
Isso não significa que Bolsonaro seja inocente. O relatório da Human Rights Watch em janeiro deste ano declarou explicitamente que Bolsonaro sabotou o combate à pandemia. Alguns dirão aqui que Philip Roth e a HRW defendem visões distorcidas dos direitos humanos (como é o caso quanto ao liberalismo expressivo, ideologia de gênero, aborto etc.), mas é um erro desqualificar todos os seus esforços pelos direitos da pessoa humana. Eu também penso que, por livre e espontânea vontade, ele escolheu postar-se no meio do caminho, como uma pedra. Ele sabotou os esforços de combate à pandemia. Mas por que diabos ele faria isso?
Bolsonaro “genocida”?
Certamente não porque quisesse ver brasileiros mortos. Bolsonaro nunca quis matar ninguém. Ou quase. Talvez os comunas, os bandidos, etecetera – aqueles que, a depender das circunstâncias, são “matáveis”, segundo a expressão de Antônio Carlos Costa. E o pastor Antônio já notou que essa mentalidade é um traço saliente na cultura carioca. Mas, ainda que se possa notar no presidente certo desprezo pela vida humana, não há evidência alguma de que ele quisesse matar os brasileiros enquanto povo. Pensem comigo: se ele realmente pretendesse matar brasileiros com a doença, por que estimularia o contágio justamente entre seus apoiadores? Isso enfraqueceria sua própria base eleitoral, contaminando “pessoas de bem”, como aqueles inocentes ativistas da intervenção militar na Praça dos Três Poderes. É uma ideia evidentemente ridícula. De modo que deveríamos enterrar essa história de “genocídio” de uma vez por todas, e admitir que não passa de um xingamento.
Ainda que se possa notar no presidente certo desprezo pela vida humana, não há evidência alguma de que ele quisesse matar os brasileiros enquanto povo
Bolsonaro quis apenas proteger seu governo e a economia e isso significaria, de certo modo, salvar vidas também, sejamos honestos. No discurso da oposição, Bolsonaro e o núcleo ideológico consideravam aceitável absorver a morte de muitas pessoas para salvar a economia. Suas mortes seriam apenas “danos colaterais”. Mas é possível pensar de outra forma; que em sua perspectiva morreria mais gente e haveria mais prejuízo moral para o país com as quarentenas do que permitindo a contaminação. Em seu cálculo utilitário, não havia uma escolha clara entre “vidas” e “economia”.
E não podemos minimizar o desespero de quem vive do trabalho do dia e mal tem o que comer. Assim como a crise econômica e a piora nas condições de vida do trabalhador são efeitos colaterais necessários, na avaliação da oposição, a morte de algumas pessoas era necessária para preservar a vida de muitas pessoas na avaliação de Bolsonaro.
É claro que alguém pode recusar meu juízo benigno, e apostar num plano maquiavélico segundo o qual era necessário mentir deliberadamente sobre a pandemia para salvar a economia – plano que teria fracassado a partir do colapso do sistema de saúde em dezembro do ano passado. Ou um plano pior ainda, de que o objetivo de Bolsonaro seria causar o colapso da República e instaurar uma ditadura. Não são alternativas teoricamente impossíveis, mas são obviamente teorias conspiratórias, e nada mais do que isso.
Até provas objetivas em contrário, Bolsonaro fez o que achava melhor. Fez o que pensava ser certo. E é exatamente aí que está o nosso problema: Bolsonaro acha que o errado é certo. E por isso sabotou o combate à pandemia.
O delírio
De vez quando alguém se ressente ou acha exagerado dizer que Bolsonaro sabotou o combate à pandemia. Mas a evidência de que o núcleo do governo se entregou a um negacionismo delirante que o incapacitou para a ação efetiva é robusta. Consideremos aquela entrevista fascinante e apavorante do dia 19 de dezembro de 2020, na qual o deputado federal Eduardo Bolsonaro entrevista o presidente sobre as ações de combate à pandemia. Eu a transcrevo abaixo porque merece detida exegese:
EDUARDO BOLSONARO: “E falando de João Doria, essa questão da vach... da vacina, presidente, alguma perspectiva pra essa vacina chegar aqui no Brasil? Quais são os esforços que o governo federal tem tomado nesse sentido?”
JAIR BOLSONARO: “Olha, tem muita coisa aí que tá em segredo, eu não quero externar aqui porque a imprensa vai usar contra mim, né... mas há um interesse muito grande com esses... nesses vinte bilhões de reais pra comprar essa vacina. A pandemia, realmente, ela tá chegando ao fim. Os números têm mostrado isso aí. Tamo com uma pequena ascensão agora, o que chama-se pequeno repique, né, pode acontecer, mas... a... pressa da vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas, você vai inocular algo em você... o seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista, e você não pode, sem que passe pela Anvisa, sem que tenha a certificação da Anvisa você bote a vacina no mercado, isso é uma irresponsabilidade.”
“Lógico, sendo uma vacina comprovada, a gente vai comprar, e vai distribuir pra todo o Brasil e aquele que quiser voluntariamente se vacinar poderá fazer. Então não há guerra, não há politização da minha parte, e nós esperamos então uma vacina segura.”
“Parece que a Inglaterra começou a vacinar agora. Por que a gente tem que ser o primeiro? A própria China, por exemplo, não temos informações de vacina... de vacinação em massa lá. Aguarda um pouco mais, você mexe com a vida das pessoas. Alguns estão afoitos pra tomar, eu entendo que o cara tá preocupado, quer se imunizar... mas às vezes, com um pouquinho mais de paciência, né... eu acho que a prudência é importante nesse momento, não há politização nenhuma da nossa parte; não tenho pressa em gastar, meu governador, tamo com pressa de gastar dinheiro não, a nossa pressa é salvar vidas, não é gastar não, não quero aqui fazer mau juízo de quem quer que seja, mas é muito suspeita essa pressa em gastar vinte bilhões de reais pra comprar vacina.”
A despeito dos protestos de que não tem interesse em politizar nada, trata-se de política, evidentemente. O problema todo reside na “vachina” do Doria – como o ato falho (ou ironia deliberada?) do deputado Eduardo Bolsonaro deixa claro no princípio da conversa (pode-se imaginar o assunto de bastidores antes da gravação). Mais do que isso, o vídeo quer responder unicamente a uma pergunta: “Por que a pressa?”
Essa é a questão crucial. “Por que a gente tem de ser o primeiro”? O presidente teme os riscos de efeitos colaterais, observa que a China não está vacinando em massa (como se uma ditadura comunista fosse exemplo de cuidado com os cidadãos), e expressa a suspeita diante da pressa em vacinar. Há uma suspeita, portanto, dominando o julgamento presidencial.
A que diz respeito essa suspeita? Ao interesse pelos R$ 20 bilhões. Esse interesse em gastar dinheiro, por certos governadores e, acima de tudo, de grandes corporações farmacêuticas na venda de suas vacinas, a toque de caixa, sugeriria uma tentativa de lucrar o máximo possível com uma pandemia que já estaria chegando ao fim. A pressa seria motivada pelo interesse em ganhos políticos e econômicos em uma curta janela de oportunidade.
Não é preciso duvidar dos interesses políticos de João Doria ou da sede de dinheiro das farmacêuticas (são empresas, afinal) para reconhecer que Bolsonaro subestimou completamente a causa final do esforço científico e econômico internacional e dos esforços políticos dos entes federados para apressar a vacinação. Claramente, em seu julgamento, a pressa é injustificada. E é injustificada porque a pandemia está acabando. Mas como ele sabe que a pandemia está acabando?
Bolsonaro fez o que achava melhor. Fez o que pensava ser certo. E está exatamente aí o problema: Bolsonaro acha que o errado é certo. E por isso sabotou o combate à pandemia.
Aqui está o pecado original. Bolsonaro, seus filhos e o núcleo ideológico estão envolvidos numa guerra cognitiva, e nesse processo perderam a capacidade de se comunicar com amplas regiões da realidade. Eles não conseguem distinguir entre bom senso, opiniões abalizadas e fontes científicas autorizadas, por um lado, e hipóteses alternativas que sustentem suas próprias sensibilidades éticas e políticas. Bolsonaro mente, sim; mas, acima de tudo, mente para si mesmo.
E quando o tsunami de realidade atinge o país, mostrando que suas suspeitas o levaram a um curso de ação desastroso, ele não pede desculpas; o que ele e o núcleo ideológico fazem é tão somente reajustar o discurso e, aí, sim, mentir para a base fiel. O núcleo mente para a base porque não pode admitir que mentiu para si mesmo; mas por que alguém continuaria mentindo para si mesmo depois de ser desmascarado? No final, sempre, porque acredita demais em si mesmo.
A grande mentira de Bolsonaro e do núcleo ideológico é a de que eles são a verdade e que a oposição é a mentira. Bolsonaro é a sua própria Bíblia. E foi por isso que ele sabotou o combate à pandemia.
Um longo delírio: uma linha do tempo
“...eu estou esperançoso de que isso [o fim da pandemia] seja, realmente uma realidade.” (Jair Messias Bolsonaro)
Desde os tempos da “gripezinha” em março do ano passado, quando a tropa de choque da guerra cognitiva bolsonarista dizia que a Covid era “o terraplanismo” da saúde, até 19 de dezembro, quando Bolsonaro confessou em público o seu delírio, comentado acima, os diversos esforços de contenção da pandemia foram sistematicamente politizados, dificultados e atrasados, com uma única exceção: o “tratamento precoce”.
Bolsonaro combateu o isolamento social e as quarentenas de estados e municípios, promoveu aglomerações e se misturou com as massas durante todo o ano de 2020. Desprezou a universalização da máscara, resistiu à conscientização sobre a incerteza de tratamentos alternativos (eles foram promovidos como se fossem soluções comprovadas, mas reprimidas por um complô da ciência) e bloqueou a negociação adiantada de vacinas; nem mesmo a autonomia do Ministério da Saúde foi respeitada, o que foi evidenciado pela expectativa de vida curta dos ministros. A certa altura o presidente chegou a dizer que a melhor vacina seria pegar a doença e sarar, e se gabou disso no dia 23 de novembro: “Eu tive a melhor vacina, foi o vírus (...) Eu não vou tomar [a vacina]. Alguns falam que eu estou dando um péssimo exemplo. Ô imbecil, ô idiota. Eu já tive o vírus e eu já tenho os anticorpos. Para que tomar vacina de novo?”
O que motivou esses gestos foi, como vimos, uma persistente negação da gravidade da pandemia e da confiabilidade das autoridades científicas e da imprensa. É tão importante que esse fato fique bem estabelecido que vamos refazer a trajetória dos posicionamentos do presidente aqui.
Bolsonaro, seus filhos e o núcleo ideológico estão envolvidos numa guerra cognitiva, e nesse processo perderam a capacidade de se comunicar com amplas regiões da realidade
Em 10 de março, Bolsonaro disse em coletiva que a pandemia seria em grande medida uma “fantasia” e que não seria “tudo isso que a grande mídia” alegava; e que o poder do vírus, “no meu entender está sendo superdimensionado”. As pessoas estariam morrendo de outras doenças, e não de coronavírus (17 de março); a “gripezinha” não iria derrubá-lo (20 de março); no dia 21 de março anunciou que a cloroquina estava sendo estudada e que o Exército iria produzi-la em massa; no dia seguinte começou a dizer abertamente que o povo foi enganado por “governadores e grande parte da mídia”.
Em um famoso pronunciamento oficial em, 24 de março, Bolsonaro explicou que sua preocupação era como “conter o pânico e a histeria”, “quase contra tudo e contra todos” – confessando, de certo modo, a constituição de uma câmara de eco sem contato com o mundo externo. Nesse mesmo dia ele atacou a imprensa por espalhar o pânico e recusou completamente o caminho das quarentenas ou de um lockdown; e fez a famosa declaração de que estaria livre de risco “por seu histórico de atleta”, sofrendo, no máximo, uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”. Com isso a política da negação do risco ficou, por assim dizer, “oficializada”.
No dia seguinte invocou o exemplo de Trump para afirmar a necessidade de manter a economia aberta (25 de março). Um jornalista mencionou na coletiva a possibilidade de 200 mil mortos, e o presidente negou: no mundo inteiro seriam uns 20 mil no máximo. Devo dizer que, a essa altura, o Ministério da Saúde já havia informado o presidente sobre tais números, mas ele se recusou terminantemente a admitir o risco. O brasileiro “tem de ser estudado, porque ele não pega nada”; como muitos foram infectados, eles já teriam os anticorpos e estariam seguros (26 de março); no dia seguinte pediu o fim das quarentenas e “o retorno à normalidade”; “alguns vão morrer”, mas não haveria o que fazer. “Para 90% da população é gripezinha ou nada”. Nesse mesmo dia, em entrevista a Datena (27 de março), Bolsonaro começou outra linha de argumento: negar os números de mortes e alegar que eles estariam sendo torturados para defender as quarentenas.
No dia 28 de março Luiz Henrique Mandetta explicou a lógica das quarentenas e lockdowns, como meio de “achatar a curva” de contágio para evitar o colapso do sistema de saúde – solução jamais aceita por Bolsonaro. Ele prosseguiu (29 de março) argumentando que seria preciso encarar a pandemia “como homem”, expondo-se ao risco de morte “já que todos vamos morrer um dia”. Mandetta já estava em rota de colisão com Bolsonaro, deixando claro que sob sua liderança, e até melhor evidência científica, a recomendação do Ministério da Saúde seria de reduzir a atividade e parar a economia (30 de março).
Às portas de abril Bolsonaro já surgia na imprensa internacional como o último negacionista da pandemia, em conflito com seu próprio ministro da Saúde. Mandetta era claro sobre a necessidade de implementar medidas restritivas para evitar o colapso do sistema de saúde, e negava a existência de tratamento alternativo confiável. Em 5 de abril Bolsonaro já cantava a pedra: em breve usaria a caneta contra Mandetta. E em 12 de abril, Bolsonaro declarou em pronunciamento: “quarenta dias depois, parece que está indo embora a questão do vírus”. A essa altura o número de mortos era de pouco mais de mil.
Sim, é o que você leu: em abril de 2020 Bolsonaro já dizia que a pandemia estava acabando.
Quatro dias depois Mandetta seria demitido e Nelson Teich assumiria o cargo (16 de abril). No mesmo dia o STF julgou que os estados e municípios teriam competência constitucional para decretar quarentenas e manter medidas de isolamento – decisão que motivou uma avalanche de fake news, alegando que o STF teria tirado a responsabilidade do governo federal na articulação do combate à pandemia, quando o que ele fez, na verdade, foi impedir Bolsonaro de barrar as medidas de isolamento.
Os diversos esforços de contenção da pandemia foram sistematicamente politizados, dificultados e atrasados, com uma única exceção: o “tratamento precoce”
Perguntado em 20 de abril sobre o número de mortos, Bolsonaro fez outra de suas inacreditáveis declarações: “não sou coveiro!” No dia 28 voltou à carga: “E daí? Quer que eu faça o quê?” “Eu sou messias, mas não faço milagre”. Essa fala se tornou o título do editorial da revista científica médica The Lancet em 9 de maio de 2020, que o acusou, basicamente, de sabotar a pandemia:
“Talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 seja o seu presidente, Jair Bolsonaro (...) Quando perguntado por jornalistas na última semana a respeito do rápido crescimento do número de casos de Covid-19 ele respondeu: ´E daí? Quer que eu faça o quê?’ Ele não apenas continua a semear confusão ignorando abertamente e desencorajando medidas razoáveis de distanciamento físico e lockdown impostas por governadores estaduais e prefeitos, mas também perdeu dois importantes e influentes ministros nos últimos três dias (...) Tal desarranjo no coração da administração é uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública.”
Em 11 de maio Bolsonaro decidiu, por conta própria, que academias, salões de beleza e outros serviços do gênero deveriam ser considerados essenciais e liberados sem informar o Ministério da Saúde e Nelson Teich, que sofreu constrangimento por isso numa coletiva de imprensa. No dia 13 Bolsonaro informou que iria orientar Teich sobre alteração do protocolo de uso da hidroxicloroquina, segundo a tese do “tratamento precoce”. O protocolo anterior recomendava aplicação apenas em pacientes graves. Apenas dois dias depois, em 15 de maio, Nelson Teich se demitiu. Embora não tenha tido tempo para realizar qualquer coisa significativa, deixou uma frase memorável.
“Está difícil conciliar os desejos de Bolsonaro com a realidade.” (Nelson Teich)
Diagnóstico objetivo e preciso.
No dia 5 de junho o próprio Donald Trump, aliado de primeira hora de Bolsonaro, já dizia que a postura tomada por Bolsonaro era um erro enorme. Enquanto isso, abriu-se uma controvérsia sobre a contagem geral de mortos – o governo alterou os critérios justificando razões técnicas, mas a decisão levantou suspeitas de dissimulação da gravidade dos números. Mas houve boas notícias em junho: o governo assinou, no fim do mês, um acordo para o fornecimento de 30 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca.
No princípio de julho Bolsonaro anunciou que estava infectado pela Covid-19. Foi novamente criticado pela imprensa internacional por seu comportamento negacionista e pelos maus exemplos públicos de recusa das medidas de proteção. Bolsonaro foi tratado com hidroxocloroquina e, previsivelmente, sua recuperação foi amplamente usada para alegar que a droga seria eficiente.
Em 20 de julho chegou a São Paulo o carregamento da Coronavac para testes pelo Instituto Butantan. Enquanto isso Bolsonaro seguia negando que o alto número de mortes seria realmente de Covid (6 de agosto), promovendo aglomerações e aparecendo sem máscara em público; as mortes subiam sem parar: já eram 100 mil na primeira semana de agosto. E um mês depois, lá estava Bolsonaro novamente, contando a todos a sua esperança:
“Estamos praticamente vencendo a pandemia. O governo fez tudo para que os efeitos negativos da mesma fossem minimizados.” (11 de setembro)
A grande mentira de Bolsonaro e do núcleo ideológico é a de que eles são a verdade e que a oposição é a mentira. Bolsonaro é a sua própria Bíblia. E foi por isso que ele sabotou o combate à pandemia
Claro que sim. Bolsonaro disse, ainda, que a mídia no exterior estava noticiando o Brasil como um dos países que melhor lidaram com a pandemia. Em 18 de setembro, num comício em Mato Grosso, elogiou publicamente os que não pararam durante a pandemia, e declarou, sobre ficar em casa: “isso é para os fracos”. Em 22 de setembro voltou a atacar a imprensa por espalhar o pânico e recomendar às pessoas que ficassem em casa. Sua postura se mantinha assim, solidamente contrária às medidas de isolamento.
Em outubro Bolsonaro se voltou para o tema da vacina (19 de dezembro) advertindo sobre duas condições: não obrigatoriedade e a necessidade de aprovação pela Anvisa. Ambas perfeitamente razoáveis, se não soubéssemos que o presidente pretendia adiar ao máximo o investimento em vacinas, dada a sua crença firme e persistente em um decaimento natural da pandemia.
E novamente Bolsonaro entrou em conflito com o Ministério da Saúde. O ministro interino, Eduardo Pazuello, havia assinado um acordo para aquisição de mais 46 milhões de doses da Coronavac no dia 20 de outubro, mas o presidente negou publicamente o acordo no dia 21. E no dia 29, em transmissão on-line, disse ao “querido governador de São Paulo” João Doria que não compraria a vacina. “Eu... o governo não vai comprar a tua vacina, ok? Procura outro para pagar sua vacina.”
No dia 10 de novembro Bolsonaro comemorou a suspensão dos testes com a Coronavac determinada pela Anvisa (suspensão revogada logo depois, quando a correlação com a morte de um voluntário foi descartada). E, em evento público, voltou à carga: “tudo agora é pandemia! Tem de acabar com esse negócio... tem de deixar de ser um país de maricas”. Querendo dizer, com isso, que a população deveria assumir os riscos e deixar as medidas de isolamento.
Assim como a crise econômica e a piora nas condições de vida do trabalhador são efeitos colaterais necessários, na avaliação da oposição, a morte de algumas pessoas era necessária para preservar a vida de muitas pessoas na avaliação de Bolsonaro
E no dia 12 de novembro levantou dúvidas sobre a segurança das vacinas em uma live: “tem alguma coisa esquisita acontecendo por aí”. Tentou explicar que não comemorou a morte do voluntário, mas manteve a tese de que poderia ser um efeito colateral – o que já havia sido descartado. Manteve o ponto: a compra de vacinas seria feita com aprovação da Anvisa, após acordo sobre o preço, e apenas depois que as vacinas fossem aplicadas com sucesso em seus países de origem.
“E agora tem a conversinha de segunda onda. Tem de enfrentar se tiver.” (13 de novembro). No dia 29 de novembro Bolsonaro atacou os prefeitos que fecharam praias, e reafirmou a utilidade de outros meios, como o uso da vitamina D ou a prática de exercícios.
Em princípios de dezembro acirrou-se o conflito do presidente com Doria e sua recusa da Coronavac. E no dia 17 de dezembro fez outra memorável declaração criticando as condições impostas por farmacêuticas, como a Pfizer, de não se responsabilizarem por efeitos colaterais: “Se você virar um chimp... um jacaré, é problema de você, pô!” E assim soubemos uma das razões para o adiamento das negociações de vacinas.
Dois dias depois, Bolsonaro gravaria a entrevista com Eduardo Bolsonaro que discutimos acima, na qual novamente compartilha sua crença de que a pandemia estava no fim e que não seria preciso correr com a compra das vacinas. Ele se manteve firme nessa aposta desde março de 2020.
O sabotador
Os defensores de Bolsonaro talvez se perguntem sobre a omissão dos acertos do governo no combate à pandemia. É comum ouvir essa objeção: a política efetiva de governo seria, alega-se, o que o Ministério da Saúde fez, efetivamente, e não a verborragia do presidente Bolsonaro. Ele seria apenas um velho tiozão irritado com a maldade da imprensa, mas fora isso estaria tudo indo muito bem!
Os acertos do Ministério da Saúde vieram, sim, mas sempre com atraso, tropeçando nas pernas, e foram menos que o mínimo. O caso da falta de oxigênio em Manaus, por exemplo, é emblemático; mas o pior de todos foi realmente a guerra contra a Coronavac, a “vachina”, a qual se mostrou, finalmente, um imperativo de urgência.
O fato é que, do alto da cadeia de comando, Bolsonaro não apenas dizia palavras ao vento, mas bloqueava ou atrasava as iniciativas. Ele interferiu em decisões importantes de três ministros da Saúde sucessivamente, causando as demissões dos dois primeiros, e humilhando publicamente o terceiro. Acirrou os ânimos da população contra governos, prefeituras e autoridades de saúde, lançou descrédito sobre a imprensa e jogou politicamente com debates da ciência médica, ajudando a desautorizar estudos e publicações importantes, como a The Lancet.
Do alto da cadeia de comando, Bolsonaro não apenas dizia palavras ao vento, mas bloqueava ou atrasava as iniciativas
Mas, de todos os erros, o pior foi, realmente, o atraso na negociação das vacinas. O que ocorreu – ou não ocorreu – nos três primeiros meses de 2021 é certamente culpa da população, que não tomou os cuidados necessários para se proteger. Mas a população agiu assim sob a voz e a bênção de um tentador: Jair Messias Bolsonaro (com o núcleo ideológico do governo, naturalmente). Ainda que sem saber o que fazer, com uma mão ele atrasou a aquisição das vacinas, e com a outra mão estimulou a resistência às medidas de isolamento, como sempre fez. Se Bolsonaro não foi o agente do “crime”, foi certamente um cúmplice.
A convergência entre as políticas e os resultados efetivos obtidos pelo Ministério da Saúde e a persistente negação da gravidade da pandemia por Bolsonaro são dois conjuntos de fatos que se encaixam perfeitamente, e não há qualquer razão para dissociá-los. Isso torna Bolsonaro culpado, com a melhor das intenções, de sabotar o combate à pandemia.
Em suma
Para quem aceita o quadro acima, a conclusão é inevitável: por inépcia e por uma atitude mental doentia, o presidente Bolsonaro se mostrou incapaz de responder às demandas da realidade. Dominado por uma esperança delirante que minimizava a gravidade da pandemia, e por uma suspeita sistemática e patológica de seus críticos, acolhendo narrativas sobre conspirações globais e desprezando discursos sobre ciência ou sobre a verdade, Bolsonaro sabotou a resposta brasileira à Covid-19.
Qual seria o curso de ação, diante disso? Uma CPI, um processo por crime contra a saúde pública e, havendo fundamentação jurídica, um impeachment. E se tal for impossível, digo o que penso: os cristãos evangélicos precisam encarar os fatos e dizer a verdade – para si mesmos e para o presidente Bolsonaro, o sabotador. Eu deixei o governo em março de 2020, quando constatei que sua resposta à pandemia seria um desastre inaceitável. Um ano depois, vejo confirmados os meus temores. Precisamos encarar os fatos.
Por inépcia e por uma atitude mental doentia, o presidente Bolsonaro se mostrou incapaz de responder às demandas da realidade
Para alguns essa conclusão pode ainda parecer radical; se esse é o caso do leitor, é mister informar-se. O analista Rodrigo da Silva, editor do Spotniks, produziu uma ótima linha do tempo colecionando vídeos e áudios de declarações e fatos sobre a pandemia até janeiro que mostra com clareza a sabotagem dos esforços de combate à pandemia. Outro excelente trabalho de coleção das informações foi feito pelo jornalista Marlos Apyus no Twitter, e disponibilizado aqui. Leia com atenção e mente aberta. Eu não poderia deixar de citar o excepcional artigo de Malu Gaspar “O Sabotador”, na revista Piauí, voltado especificamente à controvérsia de Bolsonaro com Doria em torno da Coronavac.
Mais recente e, talvez, mais controverso, é o relatório produzido e recém-lançado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) com a ONG Conectas Direitos Humanos, analisando 3.049 normas federais produzidas no ano passado, e encontrando evidências de uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. Embora eu considere essa declaração um overstatement, a evidência de que ao menos negação da gravidade da doença e da construção de um movimento coordenado de resposta à pandemia é sólida.
Enfim, agora é aguardar os desdobramentos. Os lances desse drama vêm sendo registrados por muitos jornalistas nos detalhes, e os amigos podem esperar: virão livros detalhando o drama inteiro. Algumas pessoas tentarão provar que foi tudo intencional (a ver), mas o mais provável é que realmente tenha sido uma tolice de proporções bíblicas – uma mistura de inépcia com desprezo pela vida humana. Bolsonaro entrará para a história como o sabotador.
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