“Muitas pessoas dizem que lá, na capela, elas mal percebem quanto tempo se passou. É quase como se o tempo e a eternidade se fundissem, quando céu e terra se encontram. Qualquer um que tenha testemunhado o que está acontecendo pode concordar que é algo incomum e totalmente fora do script.” (Tom McCall)
Às portas do carnaval, essa festa tão terrena, tão brasileira e supostamente tão “obrigatória”, eu e meus amigos estamos vidrados em outra festa: o surpreendente revival que está acontecendo neste momento na capela da Asbury University, uma pequena universidade metodista em Wilmore, Kentucky. Milhares de pessoas, especialmente jovens, estão afluindo ao local para participar de um culto religioso que já dura nove dias. Muitos estão se convertendo ao cristianismo e se reconciliando com familiares. As pessoas cantam, pulam, choram, mas também meditam, oram e relatam experiências extraordinárias com a presença de Deus. De algum modo, parece que eles sentem um prazer imenso de estar ali. A alegria parece ser a nota dominante da coisa.
Por aqui, quem quer pular carnaval está atrás de alegria também, e alegria é a marca do brasileiro – alega-se. “A alegria é a prova dos nove”, dizia Oswald de Andrade. Previsivelmente, este brasileiro puritano aqui acha tudo isso uma grande balela. O carnaval é a festa dos desesperados, que sempre foi o mundo do brasileiro; a vontade de cantar, dançar, beber, rir, cair, trepar, beijar todo mundo e se esbaldar até morrer. Gastar tudo, esticar-se, arriscar-se, estourar os limites, esquecer da vida miserável em um país que anda em círculos: morrer, basicamente. O carnaval é um grito de desespero.
O carnaval é a festa dos desesperados, que sempre foi o mundo do brasileiro. Gastar tudo, esticar-se, arriscar-se, estourar os limites, esquecer da vida miserável em um país que anda em círculos: morrer, basicamente. O carnaval é um grito de desespero
Mas o que esperar de um pastor evangélico? Estamos aqui para isso mesmo, para chamar a farsa de farsa. Há tanta alegria no carnaval quanto há na pinga brava.
Daí o hábito evangélico (moralista, triste, blablablá) de organizar seus retiros, sumir nas roças, orar pelos montes esperando a banda passar. Aqui estamos nós, de novo, os carolas, retirados para períodos de oração e reflexão. Em nossa defesa: para festejar também: neste ano, nosso assunto é “espiritualidade e boa mesa”, porque a mesa é lugar de festa. Não a festa com desconhecidos, anônima, massificada, de copos de plástico, mas a festa com os amigos, com rostos e histórias e copos de vidro; não para armar o bote, “pegar” alguém, fazer as maldades gostosas e depois vomitar na rua, mas para servir ao outro uma comida boa e um amor de verdade. Na mesa da comunhão não cabem urubus; no carnaval, no entanto, a carniça é demais para evitá-los.
O assombroso fenômeno de Asbury encoraja os crentes brasileiros a lembrar com toda a clareza por que ficamos bem longe dessa nossa festa irrecuperável, esse grandioso símbolo brasileiro que para nós não significa nada. Não é porque os crentes saibam fazer boas festas, mas porque preferem nenhuma à farsa anual. Ou melhor: preferem se reunir com os amigos e aguardar a festa de verdade.
Mas será que essa festa de verdade existe? E se tudo isso não passar de alucinação puritana? Quem sabe os resmungos evangélicos e seu desgosto com o carnaval sejam só isso, coisa de gente chata, perdedora e mal-amada, ódio da vida, herança maldita do puritanismo, neurose de gente reprimida. Não é mais fácil imaginar que não existe céu, nem hell below us, e above us only sky?
Mas então chegam essas notícias perturbadoras, do professor universitário do Kentucky, e de outro, e de outro, de um lugar no qual o tempo para de passar, o céu encontra a terra e as pessoas estão caindo de joelhos e cantando de alegria sem parar? De de um lugar subitamente magnético, sedutor, delicioso e, para o desespero das pessoas laicas e normais, religioso? John Lennon que me perdoe, mas só consigo imaginar uma coisa: esse enorme e brilhante céu acima de nós existe mesmo.
O assombroso fenômeno de Asbury encoraja os crentes brasileiros a lembrar com toda a clareza por que ficamos bem longe dessa nossa festa irrecuperável, esse grandioso símbolo brasileiro que para nós não significa nada
Meu amigo Angelo voou correndo para lá e contou o que sentia: “Descanso, descanso, descanso, descanso, descanso! Lágrimas, lágrimas, lágrimas, lágrimas, lágrimas, a casa de meu Pai!” Estaria ele louco? Não, não... ele é um pouco diferente, mas não é nada maluco. Pelo contrário, ali está um lugar de gente sóbria. Por sinal, meu outro amigo Davi, filósofo analítico, já comprou suas passagens.
Não é loucura, é alegria. Ele está alegre! Alegre porque na casa do Pai. Que intrigante, essa conversa de casa-de-pai. Lembra, é claro, a parábola do Filho Pródigo, no Evangelho de Lucas: “Vou retornar à casa de meu pai e dizer: Pai, pequei contra o céu e contra o senhor,e não sou mais digno de ser chamado seu filho” (Lucas 15,18-19). Isso depois de lambuzar-se em terra estrangeira torrando seus recursos até quase morrer comendo comida de porcos. Alegria é voltar para casa, é ter um Lar, e se descobrir filho sem merecer. Mas esse lar nem é em Asbury; é uma meia-volta completa na existência.
Não tem jeito! Com esse céu glorioso, brilhando azul e dourado acima de nós, dá para ver com clareza o que há no final do barranco. Sejamos honestos, para milhões de brasileiros o carnaval é um buraco sujo, um trem no meio do caminho; uma ladeira abaixo que sempre foi a mesma do filho pródigo: festinhas com meretrizes, cuidar de porcos e comer porcarias.
Jesus sabia fazer festa, continua fazendo festa, e prometeu a seus alunos um festão, no fim de todas as coisas
Mas seu fim não é um lamento, não é o fim da festa. Pelo contrário, na parábola que Jesus conta, o filho mais novo encontra nada menos que outra festa: um abraço e um beijo do pai; roupas e sapatos novos, um anel da família no dedo, e um belo churrasco de carnes gordas, o novilho cevado! Havia outra festa, justamente naquele lugar do qual ele fugia com todas as forças: a casa de seu Pai. Havia outra festa e havia outras alegrias antes insuspeitadas, com seus abraços, seus beijos e seus vinhos; alegrias com sabor de perdão, de bondade e de reconciliação, e com muitos amigos. Tantos eram eles, e tantas as suas festas, que acusaram Jesus: “comilão, beberrão e amigo de pecadores!” Jesus sabia fazer festa, continua fazendo festa, e prometeu a seus alunos um festão, no fim de todas as coisas.
Asbury nos faz lembrar, como disse C. S. Lewis, que um dia beberemos alegria da fonte da alegria; e, às portas do carnaval, eu só consigo pensar nesse festão!
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