A deputada federal Flordelis, acusada de mandar matar o marido.| Foto: Câmara dos Deputados
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“O que faz tão plausível assumir que a hipocrisia seja o vício dos vícios é que a integridade pode realmente existir sob a cobertura de todos os outros vícios exceto este. Apenas o crime e o criminoso, é verdade, nos confrontam com a perplexidade do mal radical; mas apenas o hipócrita é realmente podre até o âmago.” (Hannah Arendt, On Revolution)

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O ódio à hipocrisia alimentou revoluções, e foi um dos motores do Terror revolucionário na França de Robespierre. Em seu lúcido tratamento do assunto, Hannah Arendt destaca o quanto a hipocrisia era realmente o modus operandi da corte de Luís XVI, e a fervorosa vontade revolucionária de arrancar as máscaras, uma símile muito apreciada entre os revolucionários.

Quando se arrancava a “máscara” (prósopon), no teatro grego, restava a pessoa natural do hypokrités ou “ator”, sem nenhum sentido pejorativo. Os romanos chamavam a máscara de personae, e esse termo se tornou bem importante no direito romano, como referência ao que chamaríamos de “pessoa jurídica”, uma representação da pessoa real no universo legal.

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Vamos usar um equivalente: persona. Por trás da persona, a representação artística, midiática ou jurídica, há o ser humano natural, a pessoa.

Mas, no teatro do Ancien Régime, o arrancar das máscaras revelava não “atores”, mas hipócritas, fraudes morais. Isso é o que torna a hipocrisia tão perturbadora: “o desmascaramento do hipócrita não deixaria nada por trás da máscara”, observa Arendt.

Resta, então, o vazio.

O vazio de Flordelis

Essa é a perturbadora sensação causada pelo debacle do ministério, da família e da pessoa de Flordelis dos Santos de Souza. Mas não foi sempre assim, aparentemente.

Como lembrou o pastor presbiteriano Ageu Magalhães, o princípio da vida religiosa de Flordelis, na juventude, era marcado pela evangelização e cuidado de pessoas em situação de risco, muito antes e sem qualquer previsão de um eventual sucesso no showbiz religioso. Sua ascensão seria acelerada com o filme Flordelis: Basta uma palavra para mudar, em 2009, e a fundação de uma Igreja com seu nome: Comunidade Evangélica Ministério Flordelis. O reverendo viu nessa manifestação personalista um prelúdio de queda. Tendo a concordar.

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Nove anos depois, ao que tudo indica, ela teria iniciado as tentativas de envenenamento de seu marido, o pastor Anderson do Carmo, culminando com o assassinato a tiros, efetuado por um de seus próprios filhos. O conjunto da evidência indica que ela foi realmente a autora intelectual do crime, motivado pelo desejo de obter maior autonomia. Anderson mantinha controle rigoroso das finanças e da disciplina na casa, desagradando Flordelis e alguns filhos biológicos. Assim, em algum ponto entre a fundação da igreja e o crime, Flordelis moveu-se para o oitavo círculo do inferno.

O ponto final do processo de queda não foi o próprio assassinato, mas o ponto no qual se deu a ruptura, quando o assassinar tornou-se plausível

Os detalhes da trama seguem ocultos. Mas o fato de uma parte da família ter se envolvido no crime sugere não apenas um gravíssimo problema de formação e organização moral na casa de Flordelis, mas também alguma forma de perversão e abuso nas relações intrafamiliares, envolvendo chantagens, talvez.

Seja como for, o ponto final desse processo de queda não foi o próprio assassinato, mas o ponto no qual se deu a ruptura, quando o assassinar tornou-se plausível. Tragicamente, temos uma pista quanto a isso nas palavras da própria Flordelis: “Fazer o quê? Separar dele não posso, porque senão ia escandalizar o nome de Deus”.

As palavras foram identificadas pela polícia e o MPRJ durante o inquérito, em uma troca de mensagens, e revelam nitidamente o problema em jogo. Daí alguns sugerirem, por má vontade ou por ingenuidade, que a causa do desastre seria a “ética fundamentalista”, com seu modelo retrógrado de família.

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Evidentemente a mensagem capturada não prova um elevado compromisso com a santidade do casamento; há indícios (como o aparente hábito do casal de frequentar casas de “swing”) de que a fidelidade sexual não era muito valorizada por Flordelis. Mais provavelmente, a frase compõe seu argumento manipulativo para plausibilizar o assassinato diante dos filhos (ou, alternativamente, um argumento sugerido por um deles e apropriado por ela). Ademais, as investigações já mostraram que foi um crime coletivo, e a queixa do subgrupo familiar insatisfeito com o pastor era sobre poder e dinheiro.

O dilema de Flordelis e sua pequena quadrilha intrafamiliar poderia ser enunciado assim: como livrar-se de Anderson sem destruir a fonte de renda e status? Tarefa difícil, dado que um fracasso no casamento arruinaria a imagem do ministério e Anderson, possivelmente, sendo o responsável financeiro e administrativo pelo sistema, não estava disposto a entregar nada. Em tese, ele poderia se manter na posição de presidente do ministério e alegar que foi abandonado por Flordelis; ela perderia tudo, e ele, nada. A quadrilha estava, então, em uma verdadeira sinuca de bico.

A saída, arriscada, mas com menor possibilidade de arruinar o empreendimento familiar, seria o assassinato. O fato de um subgrupo da família ter discutido e arquitetado a ação coletivamente pode ter ajudado a aliviar as consciências dos envolvidos, como se fora algo inevitável e necessário para “o bem de todos”. A imagem seria preservada, e o show poderia continuar.

Minha reconstrução do backstage é, admitidamente, uma especulação; mas de um jeito ou de outro a queda, que pode ter sido bastante gradual, foi simultânea com a ascensão. Enquanto a preocupação com o ser afundava, o compromisso com o parecer se elevava, alimentado pelo desejo de sucesso e autonomia. Nesse processo de desenraizamento espiritual, de perda de referências e de autoengano, a persona eventualmente passou a importar mais que a pessoa. A máscara absorveu a alma, a integridade e as razões de Flordelis.

“Sou percebido, logo existo”

Evangélicos como eu, com longa vivência nas matas do protestantismo brasileiro, sabem que esse fenômeno é bastante comum e constitutivo do cristianismo brasileiro recente. Não o crime, naturalmente, mas certo modo personalista de constituição da obra religiosa, girando ao redor de nomes, e capitalizando as atividades de modo similar à atividade empresarial.

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Em todo o país, mas notoriamente no estado do Rio de Janeiro, esse tipo de articulação religiosa é endêmico; uma espécie de pentecostalismo popular carente de orientação teológica e formação moral clara, alimentado por turnês de cantores e pregadores “do fogo”, frequentemente carentes do que os teólogos chamam de “disciplina eclesiástica” (que poderíamos comparar, para os leitores leigos, com uma espécie de “corregedoria” interna das igrejas). Trata-se de uma subcultura, na qual a manipulação, a promiscuidade e a comodificação do ministério são infelizmente comuns.

Nas igrejas protestantes históricas pentecostais, batistas e presbiterianas, por exemplo, isso é geralmente evitado por freios institucionais; mas há igrejas e denominações inteiras que giram ao redor de indivíduos, mas não apenas simbolicamente; em casos como o do Ministério Flordelis, a igreja se torna uma espécie de empresa familiar.

Deixamos o “Penso, logo existo” de Descartes, passando por um “Sinto, logo existo” romântico para aterrissar, na pós-modernidade, em um “Sou percebido, logo existo”

Aqueles familiarizados com o princípio da subsidiariedade, marca da doutrina social católica, e com o princípio das esferas de soberania, originário da tradição reformada, reconhecerão nitidamente essa violação tão comum: confundir-se a igreja com a família, ou com o empreendimento econômico. O princípio das esferas de soberania afirma a autonomia relativa entre os campos de atividade humana sob o governo de Deus: Estado, mercado, igreja, família etc.; esses campos podem cooperar e se complementar, mas não se fundir. No caso do Ministério Flordelis, múltiplas violações prepararam o caminho para o crime: era uma família-igreja-empresa.

E toda empresa precisa de marketing. A bem da verdade, todas as igrejas cristãs fazem algum tipo de marketing, e não há nada de errado com isso, per se. Em seu indispensável Sociedade Excitada: Filosofia da Sensação (2010), Christoph Turcke lembra acertadamente que noticiar é uma tarefa originalmente cristã. Entre o anúncio sistemático do euangelium, a boa notícia, e o jornalismo e a mídia moderna muita coisa haveria de acontecer; mas uma delas não seria o abandono da propaganda pelas igrejas cristãs.

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O advento da sociedade excitada, no entanto, muda o foco do anúncio, convertendo-o na pura publicidade. Deixamos o “Penso, logo existo” de Descartes, passando por um “Sinto, logo existo” romântico para aterrissar, na pós-modernidade, em um “Sou percebido, logo existo”. Não existe realidade para além da aparência; ao menos, não existe algo de valor para além dela. Isso, que desde há muito é a realidade de algumas elites, e notoriamente das elites artística, cultural e política, foi, aos poucos, democratizado durante todo o século 20, universalizando-se radicalmente com o advento das novas mídias sociais. Pense, por exemplo, no modo como usamos o Instagram, hoje em dia. Não podemos apenas comer aquele prato excepcional; precisamos ser vistos comendo.

Não quero recriminar todo trabalho de criação de imagem; apenas destacar que tentações hipermodernas jamais sonhadas pelos antigos estão hoje próximas de todos.

Mas meu ponto chave é que isso reforçou terrivelmente uma tentação particular na atividade evangelizadora das igrejas cristãs, e especialmente das igrejas sujeitas ao modelo personalista de comunicação. Trata-se de constituir a atividade religiosa como uma aparência e uma experiência de excitação. Uma experiência religiosa epidérmica, podemos dizer; feita essencialmente de sensações e aparências. Digamos que igrejas assim são “montadas” esteticamente; elas existem quando a maquiagem está pronta, como uma grande festa colorida e espalhafatosa.

Ocorre que o que é apenas brincadeira, no caso de atores no teatro ou de drag queens em baladas, não cabe a igrejas e ministérios religiosos. Igrejas têm um caráter sacramental, no sentido de que elas presentificam o sagrado que simbolizam e o bem que anunciam. Não podem atuar como atividades de showbiz. Adotando, no entanto, a estética epidérmica do showbiz contemporâneo, algumas igrejas e líderes religiosos evangélicos correm o risco de precisar manter a imagem a qualquer custo – mesmo quando já estão vazios espiritualmente e moralmente.

Não é que essa tentação não existisse antes, repito; estava entre as críticas de Lutero ao papado. Mas hoje, na cultura do narcisismo e do espetáculo, a tentação tornou-se mais comum, mais disponível e mais perigosa. E com isso temos esse triste fenômeno, no backstage do teatro evangélico: uma epidemia... de hipocrisia.

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No backstage: o oitavo círculo do inferno

Em sua Divina Comédia, Dante Alighieri apontou o oitavo círculo do inferno como o destino dos hipócritas. Alguém poderia considerar essa punição dura demais; o que faz da hipocrisia uma falta tão especialmente grave?

Na citação de Hannah Arendt, que abriu nossa meditação, a hipocrisia aparece como o vício dos vícios. Não se trata apenas do mal, mas do trabalho completo e acabado do mal, poderíamos dizer. Porque na hipocrisia o bem, não podendo ser publicamente negado, é posto para trabalhar para fins egoístas ou perversos, por meio de uma fraude. O mal contradiz o bem; mas a hipocrisia quer usá-lo como instrumento. Que negação do bem poderia ser pior do que esta?

Jesus acusou diretamente esse pecado: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estão cheios de roubo e cobiça. Fariseu cego! Limpa primeiro o interior do copo, para que o exterior também fique limpo. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos e de toda imundícia. Assim sois vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e maldade” (Mateus 23, 25-28).

Na hipocrisia o bem, não podendo ser publicamente negado, é posto para trabalhar para fins egoístas ou perversos, por meio de uma fraude

Chama a atenção, nas palavras de Cristo, a existência de uma ordem, um “primeiro” e um “depois”. Primeiro, o interior; depois o exterior. É exatamente por isso que a cultura da aparência é tão perigosa; ela distorce o tempo espiritual segundo o tempo do mercado cultural e da imagem; tira a graça e a importância do ser, prioriza a performance estilizada. Artistas precisam parecer bem, é o seu ofício; mas o ofício do líder religioso não começa com o parecer.

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O caso Flordelis parece ser um comentário vivo e contemporâneo das palavras de Jesus; mas é mais do que isso. É uma advertência a todo um cristianismo tolo e infantil que desaprendeu a diferença entre o interior e o exterior, entregando-se ao showbiz, e que está preparado para pular no colo de qualquer líder midiático, artista, político ou influencer que apresente a aparência do bem.

E muitas vezes o líder religioso, amigo ou irmão de fé que está próximo, e que apresenta traços de espiritualidade genuína, é descartado ou ignorado porque não tem a aisthesis, a excitação e a promessa de sucesso como método.

A vingança de Flordelis

François de la Rochefoucauld descreveu a hipocrisia como “a homenagem que o vício rende à virtude”. Com certa boa vontade, podemos concordar. Pois ao tentar usar o bem como seu instrumento, ela de certo modo o admite como regra, se não para si, ao menos para a sociedade. É claro que o afundamento nos poços da hipocrisia levará àquele ponto no qual a pessoa simulará qualquer coisa para se dar bem, e teremos então o perfeitamente demoníaco niilista pragmático, tão útil a ditadores.

Temo, no entanto, que como sociedade nós já estejamos no oitavo círculo do inferno. A sociedade das aparências e da aisthesis é, também, a sociedade instrumental. Tudo aqui são ferramentas e instrumentos, até mesmo o bem. Essa constatação é absolutamente perturbadora.

Considere, por um momento, que Flordelis houvesse obtido sucesso. Mais do que isso, que Anderson virasse um tipo de mártir da igreja. E que ela fosse sagaz o suficiente para manter as coisas funcionando bem. Nesse caso, muito improvável, a sua hipocrisia continuaria a ser não apenas lucrativa, mas poderia redundar em mais igrejas, mais pessoas encontrando consolo e autoestima na fé, e talvez mais projetos sociais e mais pessoas inspiradas a realizar adoções.

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Isso é muito aterrorizante, mas podemos especular uma versão mais suave. Suponhamos que ela houvesse desistido do assassinato, mas por puro acaso o pastor Anderson morresse num acidente de automóvel. Nesse caso ela e a quadrilha-família que tramou o crime ficariam felicíssimos, embora tivessem de chorar por uns dias em público – uma hipocrisia “menor”, no caso – e, então, a vida seguiria de vento em popa.

Temo que como sociedade nós já estejamos no oitavo círculo do inferno. A sociedade das aparências e da aisthesis é, também, a sociedade instrumental. Tudo aqui são ferramentas e instrumentos, até mesmo o bem

O que nos assusta nesses casos? A possibilidade de ignorar totalmente o bem, e buscar apenas a felicidade e o bem-estar. Como nosso experimento mental torna manifesto, a hipocrisia poderia ser útil à nossa sociedade, se não for descoberta e se produzir os resultados corretos.

É uma reductio ad absurdum, sem dúvida; mas ela ajuda a entender que o bem não pode ser uma coisa apenas externa, uma performance. Ele precisa envolver algum tipo de interioridade.

Em As Obras do Amor, o teólogo e filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard deu grande ênfase a esse aspecto do ensino do apóstolo Paulo em suas cartas. Em Paulo, o amor é aquilo que se mostra em obras, mas que é distinto delas: “E mesmo que eu distribuísse todos os meus bens para o sustento dos pobres, e entregasse meu corpo para ser queimado, mas não tivesse amor, nada disso me traria benefício algum” (1 Coríntios 13,3).

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O amor produz as suas obras, mas... as obras não são o amor. Na história do Ocidente cristão, o amor foi sempre visto como uma virtude, um modo de existir no mundo que envolvia interioridade, caráter e ações, em uma continuidade, um nexo subjetivo.

Mas a modernidade abandonou a visão clássica e cristã de moralidade como virtude, introduzindo a forma utilitária e pragmática de ver a moralidade, como o mero atingimento externo de progressos visíveis e mensuráveis, e aumentos objetivos do bem-estar humano. Deu-se uma espécie de externalização e dessubjetivação da virtude e do bem, arrastada pelo ideal moderno de progresso tecnocientífico e econômico, seja ele em sua versão capitalista ou socialista. Esse processo foi descrito em detalhes pelo historiador da ciência Peter Harrison, em seu livro Os Territórios da Ciência e da Religião.

A caridade nunca seria a mesma, então. Armados da mente utilitária, os cidadãos militantes do paraíso terrestre foram capazes de desprezar a velha caridade, com suas exigências de piedade e interioridade, em nome da “responsabilidade social”, independentemente da qualidade da vida moral de seus promotores. O ideal do “santo” desapareceu, e em seu lugar emergiu o “ativista”. E entre os ativistas, vejo entre os piores os que não acreditam em natureza humana. “Não há autor da obra; a obra é tudo”, repetem os herdeiros de Nietzsche.

Nesse mundo, a interioridade pregada por Jesus não interessa; o que importa é a performance e o resultado, a persona e o impacto. O bem não é o que tem o caráter bondoso, mas o que parece bom: “sou percebido como bom... logo, sou bom”. A pessoa, nesse ambiente, tende a ser sugada e absorvida pela persona.

Do ponto de vista de uma cultura desinteressada pelo bem, pela virtude, pela interioridade e pela santidade, o que há de errado com Flordelis – à parte do assassinato, obviamente?

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A ganância e a hipocrisia estão normalizadas em amplos setores de nossa cultura, desde a nossa elite cultural, econômica e política, até o cidadão comum

“A sua moralidade fundamentalista!” – foi o que alegaram alguns ativistas de esquerda. Seu problema residiria no compromisso com um modelo falido de família e de casamento. Se Flordelis não vivesse amarrada pelas regras do casamento cristão, poderia ser uma ótima pessoa, frequentando casas de swing, divorciando-se, assumindo o controle do seu corpo e da sua igreja, e assim não se converteria numa assassina. Ela deveria ter adequado sua interioridade aos padrões do establishement moral, em vez de lutar inutilmente para viver uma moral retrógrada e repressiva. O que faltou a Flordelis foi um pouco de... liberação sexual.

Como uma leitura tão ingênua pode ter se tornado tão comum? Como podem ter sido esquecidas as óbvias causas da tragédia de Flordelis – a ganância e a hipocrisia, citadas até mesmo pelos investigadores do caso –, e como pode um diagnóstico tão horrendamente falso ter ganhado aceitação?

A razão é evidente: a ganância e a hipocrisia estão normalizadas em amplos setores de nossa cultura, desde a nossa elite cultural, econômica e política, até o cidadão comum. Eles não conseguem enxergar esses vícios como problemas tão graves assim, porque os incorporaram. Trata-se de uma cultura na qual não se busca ser bom, mas parecer bom; uma mente utilitarista e pragmática, que opera exatamente com as mesmas categorias de Flordelis, praticando caridades puramente externas e usando o bem para se capitalizar socialmente, economicamente e politicamente, exatamente como Flordelis; mas, à diferença da pastora, tomando o cuidado de fazer tudo dentro da lei.

Essa é a vingança de Flordelis; seus detratores cultos e secularizados ainda não sabem, mas já habitam com ela o oitavo círculo do inferno.

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O vazio da fé

A igrejas do Ministério Flordelis se esvaziaram nos meses seguintes ao crime. Por certo os corações dos féis se esvaziaram também. Que dor!

Também aqui a paz dos crentes atormentados não chega nunca. Nas mídias sociais – e, certamente, em conversas pessoais – abundaram denúncias contra a religião. “São todos hipócritas!”, repetiu-se ad nauseam.

Notei nas palavras de amigos a dúvida e a angústia que o caso lança sobre milhões de cristãos brasileiros, que acreditam e desejam acreditar no bem, mas que encontraram diante de si mais uma pedra de tropeço, posta por aqueles que deveriam auxiliá-los em sua jornada espiritual. Por associação, muitos evangélicos, e muitos pastores e líderes, sentiram vergonha e insegurança sobre o seu modo de vida.

Os detratores cultos e secularizados de Flordelis ainda não sabem, mas já habitam com ela o oitavo círculo do inferno

Essa é a segunda desgraça causada pela hipocrisia, além de suas vítimas imediatas; sua revelação macula a reputação do próprio bem, que pode então ser mais facilmente ignorado, como observa James Spiegel em Hipocrisia: problemas morais e outros vícios: “O desmascarar da hipocrisia tende a gerar descrédito e desconfiança às palavras do hipócrita, que por sua vez traz danos aos ideais morais. Isso machuca a comunidade moral num todo, porque as pessoas perdem o respeito por valores tão estimados. E não só isso, mas a hipocrisia praticada continuamente pode vir até a inclinar as pessoas a uma atitude de cinismo e pessimismo moral”.

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O mal causado é realmente terrível. Um ideal moral elevado se vê enxovalhado pela fraude, e objeto de zombaria. Não apenas a zombaria daqueles que, por ignorância, enterram a possibilidade de pensar seriamente sobre a vida moral genuína, mas especialmente dos que detestam os valores morais em questão e ficariam muito felizes em vê-los desacreditados.

Esse é um vazio que os cristãos precisam enfrentar, sempre e repetidamente. Pois a armadilha e o golpe da fraude moral nunca cessaram de ser tentados, desde os tempos de Jesus.

O “divino fingimento”

É preciso ter em mente, no entanto, que tal dúvida é uma reação puramente psicológica, uma espécie de viés cognitivo anuviando o bom juízo. Pois concluir, do desmascaramento de certa fraude, que todo aquele ideal moral seria, em si mesmo, algo pervertido e reprovável, ou mesmo impossível de realizar, é acolher uma irracionalidade, um tipo de falácia genética.

Do fato de que alguém manipula os sentimentos morais dos outros e a ideia de bem não se segue que o bem não exista, ou que tais valores seriam ilusórios. Tanto faz quem defende a verdade, seja o louco, o hipócrita ou o sábio.

Tampouco devem os cristãos preocupar-se com a alegação de que os fiéis ou os líderes religiosos seriam todos hipócritas. Em primeiro lugar, evidentemente, porque tal boato não é passível de verificação, e jamais foi tentado qualquer método para medição dos níveis gerais de hipocrisia de uma nação, para em seguida comparar o grau de hipocrisia dos cristãos contra um grupo controle. A reflexão crítica mostra imediatamente que tal alegação não passa de um boato e de uma fantasia, similar à acusação de que os cristãos primitivos mantinham um ritual denominado “eucaristia”, no qual comiam “a carne e o sangue” de crianças.

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O escritor inglês C. S. Lewis chamava o seguimento de Cristo de “o divino fingimento”. Trata-se da tentativa de imitar ninguém menos que o próprio Jesus Cristo

Mas há um fundo de verdade na alegada “hipocrisia cristã”. E esse fundo se encontra no fato de que os ideais morais do cristianismo são muito elevados, e exigem um compromisso pessoal integral. Em Cristianismo Puro e Simples, o escritor inglês C. S. Lewis chamava o seguimento de Cristo de “o divino fingimento”. Trata-se da tentativa de imitar ninguém menos que o próprio Jesus Cristo. Ora, não há grande possibilidade de alguém fracassar no propósito de viver como um porco ou um rato. Pessoas dedicadas a fazer o mínimo esforço moral possível, e desinteressadas pela virtude, não correm o risco de fracassar como seres humanos, porque a lama tornou-se o seu modo de vida. Vidas não examinadas e moralmente vegetativas são menos doloridas.

Mas a imitação de Jesus Cristo estica a musculatura moral até o limite. A possibilidade de fracasso é alta, pra dizer o mínimo.

Inevitavelmente, portanto, os cristãos genuínos viverão sob a humilhante sensação de inautenticidade – algo bastante deplorável na sociedade do reconhecimento e do bem-estar. Eles existem procurando ser aquilo que ainda não são, imitando seus modelos morais como crianças que se vestem como seus pais. E, em alguns momentos, sentem-se como se fossem farsantes, fraudes morais; especialmente quando fracassam.

Isso não é ruim; é melhor fracassar procurando ser humano do que ter grande sucesso em ser um rato, ou uma cebola.

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Mas, aqui, precisamos distinguir a hipocrisia da akrasia, como nota o filósofo moral James Spiegel. A akrasia é a fraqueza moral; a incapacidade de agir à altura dos próprios padrões morais. Muitas vezes é o pecado de bêbados, de usuários habituais de pornografia, de pessoas constantemente iracundas, ou gente atormentada por todo tipo de vício. Embora alguns pecadores celebrem seus vícios alegremente, outros sofrem por eles e tentam vencê-los. Frequentemente, tentam ocultar dos outros os seus fracassos, e então podem ser confundidos com os hipócritas.

Formalmente eles podem ser confundidos; mas pertencem a círculos distintos do inferno, e devem ser distinguidos. Os akrates, como os escravos da luxúria, que estão no segundo círculo do inferno, não querem necessariamente violar a ordem moral; eles amam e odeiam seus vícios. Já os hipócritas entram no perigoso processo de cauterizar suas consciências e separar-se emocionalmente do bem, com o fim de usá-lo como instrumento.

Como sabemos quando se trata de um ou de outro caso? É preciso considerar de perto, contextualmente. Mas sabemos que a hipocrisia é acompanhada de dissimulação, de gestos egoístas e de fraude ativa e sustentada. O caso de Flordelis parece emblemático, nesse sentido; a tentativa de assassinato vinha de longa data, de caso muito bem pensado e articulado em grupo; parece realmente inacreditável que alguém se envolvesse em tal trama apenas sendo “fraco de caráter”. A extensão da traição sugere doença mental ou a malfadada hipocrisia.

Cautela e resiliência

Esse longo artigo foi a resposta de um pastor evangélico ao caso Flordelis; ou, ao menos, ao que sabemos até agora. Minha intenção foi apresentar ao leitor não evangélico um olhar interno; e, ao leitor evangélico, uma orientação para o pensamento.

E agora, me dirigindo diretamente “aos de casa”: eu diria que a hipocrisia precisa urgentemente se tornar matéria de discussões mais sérias e mais amplas, especialmente no âmbito religioso e na formação da liderança cristã; até mesmo matéria de discipulado cristão. O entendimento da natureza da hipocrisia merece publicização, e os modelos de liderança religiosa popularmente praticados pelos evangélicos precisam ser debatidos de modo aberto e honesto.

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Aos crentes leigos, recomendo evitar igrejas personalistas, e emigrar para igrejas históricas ou que reproduzem padrões históricos de teologia, disciplina e comunicação. O critério não reside tanto na presença ou ausência de atualidade estética e de adaptação cultural contemporânea – com as quais não tenho nenhum problema –, mas com a clareza de definição dos fins espirituais e o modo como são organizacionalmente afirmados. Igrejas que violam o princípio da soberania das esferas, confundindo-se com interesses familiares, ou com a lógica financeira empresarial, ou com política, ou com atividades legítimas, mas meramente temporais, como ONGs e coletivos sociais, devem ser reformadas ou evitadas. Mas quanto ao dia a dia pessoal do cristão, eu gostaria de recomendar a cada um a firmeza e o cultivo da resiliência. O vício dos vícios foi vencido por Jesus Cristo, e a arkasia não deve levar ninguém ao desânimo. Há uma resposta que cada um pode e deve dar ao caso Flordelis, além da oração para que ela seja alcançada pela graça de Deus, na batalha contra a hipocrisia: seguir praticando fielmente... o divino fingimento.