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A recente invasão do Capitólio confirma que Donald Trump e o movimento neotradicionalista que ele representa são um perigo para a república dos Estados Unidos e para a democracia em todo o mundo. E as palavras de Bolsonaro, alimentando as mesmas teorias conspiratórias gratuitas contra as instituições da nossa República, destacam o quanto ele é perigoso para o nosso país. Sim, o caso dos EUA é como o de um bêbado ao volante de uma carreta, ao passo que no Brasil o sujeito pilota um carrinho; mesmo assim, dá para fazer muito estrago.
Isso dito, penso que há perigos opostos no Brasil, inclusive o da ascensão do identitarismo ao poder máximo, o que apenas reforçaria a presente guerra cultural, destruindo ainda mais o nosso frágil tecido social. Derrotar Bolsonaro a qualquer custo não é suficiente; precisamos de alternativas. Meu artigo de hoje explora uma delas, que por não ser pragmática, mas principial, chamo de “a coisa certa a fazer”.
Como as elites culturais radicalizaram a guerra cultural
Pouco antes do fim do ano, a brasilianista Amy Erica Smith (da Iowa State University) e Taylor C. Boas (da Boston University) disponibilizaram um paper fascinante, conectando o aguçamento das políticas de sexualidade pela esquerda com a ascensão da direita cristã na América Latina e no Brasil: “Religião, política sexual e a transformação dos eleitorados latinoamericanos”. Os resultados foram apresentados no encontro anual da American Political Science Association.
O paper apresenta e discute os resultados de uma investigação científica sobre o comportamento eleitoral quando temas morais de interesse religioso ganham saliência na disputa pelos votos. Em termos simples: como as pessoas votam quando políticas de sexualidade e reprodução, como o aborto, ganham o centro das atenções? A pesquisa de Smith e Boas confirmou as intuições de muitos:
“Em uma região na qual temas materialistas como redistribuição econômica e controle do crime costumavam ser os maiores orientadores do voto, opiniões sobre gênero e sexualidade estão emergindo como uma nova clivagem que influencia a decisão nas eleições. Essas mudanças também estão mudando as implicações da religião para o comportamento eleitoral na região. Em uma era na qual temas materialistas dominavam a agenda, cristãos evangélicos latino-americanos tendiam a votar à esquerda, talvez por suas origens em classes baixas. Mas em tempos e lugares nos quais a política da sexualidade ganhou proeminência, essa minoria religiosa aliou-se ao bloco da direita. Onde o aborto está na agenda, os evangélicos são unidos a seus irmãos católicos, com ambas as tradições votando de modo mais conservador que os não religiosos. Assim, a ascensão da política da sexualidade está impulsionando a consolidação de uma nova direita cristã, uma base de suporte para candidatos como Jair Bolsonaro no Brasil – mesmo que a opinião pública, na média, esteja se inclinando a políticas mais liberais.”
Derrotar Bolsonaro a qualquer custo não é suficiente; precisamos de alternativas
As descobertas de Smith e Boas têm implicações de grande alcance. Anos atrás o conhecido sociólogo Paul Freston, atualmente professor na Universidade Wilfrid Laurier, no Canadá, e anteriormente na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), defendeu que os evangélicos não representariam um bloco conservador ou reacionário unificado. Freston, que é evangélico e foi cooperador da Aliança Bíblica Universitária (ABU) por muitos anos, opunha-se nesse ponto a uma visão preconceituosa sobre os evangélicos que era bastante comum na sociologia paulista. Durante a era lulopetista, Freston teve sua leitura confirmada pelo amplo apoio eleitoral evangélico a Lula, a despeito de uma relativamente sólida manutenção de doutrinas morais conservadoras.
Mas então veio a reviravolta: uma forte reação evangélica contra o progressismo, culminando com a recusa da natimorta “Política Nacional de Participação Social” (PNPS, em 2014), com suas aspirações hegemônicas, e uma virada à direita. Não é possível alegar, com isso, que Freston estivesse errado. Sua tese segue válida, inclusive, pela confirmação, por Smith e Boas, de que nos temas mais “materialistas”, como seguridade social, saúde e economia, os cristãos seguem dispostos a apoiar visões mais à esquerda. Nesse sentido, mesmo agora eles continuam não sendo equivalentes tropicais do conservadorismo liberal do Partido Republicano dos EUA.
Onde está a diferença? Segundo os brasilianistas, no impacto das políticas de sexualidade. Aparentemente, no contexto latino, a oposição evangélica e católica a essas pautas é muito mais entranhada que nos EUA. E, com a reviravolta identitária dentro da esquerda brasileira – essa, por sua vez, importada dos EUA –, os temas “materialistas” tradicionais perderam seu lugar para temas morais e de costumes. E isso desnaturou o quadro analisado inicialmente por Freston, criando o que Smith e Boas descrevem como “novas clivagens” no eleitorado local. Eles atribuem a causa desse efeito, explicitamente, às elites culturais e movimentos sociais progressistas:
“Argumentamos que a emergência de novas clivagens eleitorais ao redor das políticas de sexualidade e religião deve ser atribuída não a mudanças demográficas graduais, como o crescimento do evangelicismo ou do desenvolvimento humano e da pós-modernização (...), mas antes a ações específicas das elites políticas, frequentemente em aliança com movimentos sociais progressistas.”
É claro que, para os defensores desses “avanços civilizacionais”, a reação negativa dos evangélicos pode ser vista como uma espécie de inflamação que se segue inevitavelmente ao procedimento médico necessário e inadiável. Talvez seja a posição dos autores do paper. Mas, de um ponto de vista cristão e/ou conservador, trata-se, antes, de um perigoso movimento de destruição do tecido social, que acelera processos de polarização, radicalização e, como fatos recentes sugerem, de desestabilização da república.
O que a guerra cultural significa para 2022?
Quais são as implicações mais diretas da tese de Smith e Boas? Se eles estiverem corretos, quanto mais a esquerda pressionar o ponto das políticas de sexualidade e do aborto, menos apoio terá das massas evangélicas e católicas, o que favorecerá um longo domínio da direita no caso do Brasil. Dificilmente haveria por aqui uma reviravolta geral, como ocorreu na Argentina e nos EUA, simplesmente porque nosso contexto religioso local é mais fervoroso e nosso sistema político é muito distante do bipartidarismo.
É claro que tudo depende da saliência da pauta. É possível que outro tema, como o desastre na política da pandemia, por exemplo, favoreça uma desidratação eleitoral de Jair Bolsonaro nos próximos meses. Mesmo assim, como não vivemos em um sistema bipartidário, esses votos provavelmente migrarão para uma alternativa moderada ou de centro, e não para a esquerda ideológica. Isso foi exatamente o que aconteceu nas eleições municipais de 2020, e o que pode ocorrer em 2022.
Penso que devemos falar abertamente: se não for completamente derrotado antes por sua própria inépcia, basta que Bolsonaro levante a bandeira antiaborto – e que a esquerda compre esse debate – para que o bolsonarismo leve a Presidência ou eleja alguém em 2022; exatamente como ele fez com Marina Silva em 2018, quando a pôs contra a parede e furou o seu balão em rede nacional com a agulha do aborto.
Se Smith e Boas estiverem corretos, quanto mais a esquerda pressionar o ponto das políticas de sexualidade e do aborto, menos apoio terá das massas evangélicas e católicas, o que favorecerá um longo domínio da direita no caso do Brasil
A pesquisa de Amy Smith e Taylor Boas parece confirmar o argumento de Mark Lilla, de que o identitarismo e as pautas narcisistas da esquerda contemporânea alienam as massas, as quais percebem um desinteresse pelo bem comum e uma tentativa de doutrinação moral. Só que, no caso do Brasil, a destruição das forças da esquerda foi muito mais completa que nos EUA, porque subestimou o enraizamento moral cristão da sociedade brasileira.
É claro que há um aspecto terrivelmente trágico nisso tudo: a revolta das massas contra a elite cultural não garante estabilidade e renovação para a república; pelo contrário, como todos temos constatado, tornou-se a ocasião para a ascensão de um populismo de direita oportunista. É um erro, no entanto, responsabilizar apenas os setores extremistas da direita, uma vez que a elite cultural, desrespeitando toda a prudência e os valores espirituais do brasileiro, forçou a porta em nome do “avanço civilizacional”. Sua corresponsabilidade com o bolsonarismo deve receber todo o destaque que merece. Nesse campo, não pode haver perdão sem penitência.
Um calcanhar de Aquiles do bolsonarismo
O embate entre Marina Silva e Bolsonaro foi, para mim, um fato simbólico. Ali estava alguém com o coração correto, mas mal orientada pelos conselheiros políticos, e o ímpio Bolsonaro, usando a bala de prata da bandeira pró-vida. O que estava em jogo: exatamente o eleitorado cristão. Bolsonaro estava certo ao levantar a bandeira, mas não era digno dela. Por outro lado, Marina abdicou dessa bandeira para não desagradar o setor da elite cultural que lhe dava apoio. O resultado foi que ela perdeu toda a base, dispersa entre a esquerda e o bolsonarismo.
De novo a pesquisa científica mais recente nos traz insights cruciais para interpretar esse embate. Amy Erica Smith publicou em 2020 outro artigo igualmente fascinante, dessa vez com Robin N. Veldman, da Texas A&M University, sobre a atitude dos evangélicos brasileiros diante da questão ambiental. Sua investigação científica produziu um resultado interessantíssimo:
“A suposição de que a doutrina evangélica conduz a atitudes antiambientais se sustenta no contexto brasileiro? Nossos dados confirmam que a filiação evangélica e pentecostal não está associada com diminuição da preocupação ambiental no Brasil, como é o caso nos EUA. De fato, em algumas análises, ela está positivamente correlacionada com atitudes ambientalistas (...) outro contraste em relação aos Estados Unidos emergiu: evangélicos e pentecostais brasileiros criticaram a destruição humana do ambiente como pecaminosa, e reconheceram a responsabilidade humana de reverter essas tendências (...) Finalmente, evangélicos e pentecostais também contrastaram com seus contrapartes americanos quanto à compreensão da responsabilidade humana pelo clima e as mudanças ambientais. Brasileiros simultaneamente aceitaram explanações religiosas e científicas/mundanas para essas mudanças, e não apresentaram maior probabilidade de preferir soluções extramundanas em relação a soluções mundanas.”
A elite cultural, desrespeitando toda a prudência e os valores espirituais do brasileiro, forçou a porta em nome do “avanço civilizacional”
Aparentemente fatores locais fizeram com que evangélicos brasileiros tenham maior abertura para a noção clássica da convergência entre ação divina e processos naturais, sem mútuo cancelamento. Isso pode ter relação com a base católico-romana anterior do protestantismo brasileiro, ou com o atraso histórico no enraizamento de discursos anticientíficos do fundamentalismo americano. Seja como for, o fato é que o evangélico típico não vê contradição entre o cuidado ambiental responsável e a oração pela preservação da Criação. Também não vê, por default, contradição entre ciência e ação divina (embora isso possa ser induzido). Além disso, ele dispõe de categorias teológicas para interpretar o desmatamento sistemático e a grilagem de reservas protegidas, por exemplo, como pecados contra Deus. Finalmente, Smith e Veldman notaram que a atitude pró-ambientalismo entre evangélicos é até mesmo maior do que entre pessoas sem religião!
Permitam-me celebrar as implicações sensacionais desse resultado: é possível que o grande apoio evangélico desfrutado por Marina Silva, por muito tempo, tenha relação com essa atitude naturalmente positiva dos evangélicos para com a agenda ambiental. E num contexto em que a crise ambiental se torna cada vez mais aguçada, com o desmatamento atingindo enormes proporções no Brasil com todas as suas graves consequências climáticas, é possível que a agenda ambiental tenha também o potencial de se tornar uma saliência secundária, assim como a luta anticorrupção foi uma saliência secundária em 2018.
Nesse caso, diferentemente da questão do aborto, a causa ambiental não seria uma bandeira alienígena em relação à fé evangélica. Pelo contrário, trata-se demonstravelmente de uma causa interna da fé cristã, desde figuras como São Patrício e São Francisco de Assis, com representação na tradição romanista (como na encíclica Laudato Si’, do papa Francisco) e também na tradição evangélica (em figuras como Francis Schaeffer, John Stott, Peter Harris e, no Brasil, a própria Marina Silva). É digna de nota a observação de Smith e Veldman: “Promissoramente, o contexto brasileiro proporciona exemplos úteis de como ensinos teológicos podem reforçar a preocupação ambiental”.
Vale destacar o ponto: desejando combater a direita, muitos políticos e militantes de esquerda adotam a traiçoeira estratégia de tentar “converter” evangélicos para causas evidentemente anticristãs, como o aborto e o casamento igualitário, e então vender-se como amigos da comunidade cristã. À parte do ridículo da situação, está mais do que claro que a estratégia não está funcionando. Por outro lado, há pautas que são organicamente ligadas ao espírito do cristianismo, como a conservação ambiental, e é possível demonstrar que a negação dessa pauta é um afastamento do cristianismo.
Como derrotar Bolsonaro em 2022 sem fazer o jogo da esquerda identitária
Se a oposição (tanto de direita quanto de esquerda) não for “salva” por novos desastres no governo Bolsonaro, ou pela emergência de uma nova pauta absolutamente urgente e inacessível ao bolsonarismo, é grande a possibilidade de que a saliência das políticas de sexualidade o conduza a uma vitória parcial ou total em 2022. No tocante a esse quadro específico, e descontando outras variáveis, tenho uma sugestão a fazer.
A única forma de neutralizar Bolsonaro, nesse quadro, seria neutralizar a saliência das políticas de sexualidade e adicionar uma saliência secundária que desempate o jogo. É uma sugestão simples e quase elementar, mas está debaixo do nariz de todos.
Se emergir com força política um candidato que seja inequivocamente contrário ao abortismo e que se coloque abertamente a favor da família tradicional (e isso pode ser enquadrado em uma proposta pluralista de sociedade civil, na qual nem conservadores nem progressistas sejam execrados), ele seria capaz de neutralizar a bala de prata de Bolsonaro. E, do ponto de vista cristão, o qual eu mesmo sustento, isso seria simplesmente a coisa certa a fazer.
As pautas pró-vida e pró-família, com seu fundamento personalista e criacional, se harmonizam naturalmente e facilmente com a pauta da conservação ambiental
Mas o que desempataria o jogo? A adesão, com qualidade, a qualquer pauta que tenha valor para os brasileiros, mas não tenha nenhum valor para Bolsonaro. Há mais de um tema que poderia ser levantado aqui, mas a essa altura todos sabem qual tema deveria ter preeminência na minha opinião: a questão ambiental. E, nesse caso, ele deve ter preeminência não apenas porque é uma questão urgente para todo o planeta, e que está na mente de todos os brasileiros, mas simplesmente porque é a coisa certa a fazer.
Há, evidentemente, uma questão de timing: a eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos significa que a pressão externa contra o desmatamento no Brasil aumentará enormemente. Biden já sinalizou que haverá “consequências econômicas” para o Brasil; e o fato de que ele precisará demonstrar seus compromissos de campanha torna Bolsonaro um alvo imediato, como já foi ventilado num artigo do Huffington Post no ano passado. Se Bolsonaro, repentinamente, “se converter” ao ambientalismo, demitir Ricardo Salles, remover os tampões militares e der liberdade ao ICMBio, ao Ibama e a outras instituições, é possível que o tema deixe de ser a saliência secundária. Mas, se a Presidência seguir na teimosia, pode ser possível combinar a pressão interna e pressão externa, criando um efeito tesoura.
E como aumentar a pressão interna? Ora, o fato de a questão ambiental ter um lugar no coração e na fé dos evangélicos, a despeito de Bolsonaro e do conspiracionismo de Olavo de Carvalho, faz dela o ponto de convergência ideal para um movimento de renovação política apartidário, e a saliência secundária que poderia desempatar a disputa pela direita brasileira, exorcizando o espírito da extrema-direita.
Em conclusão, devo dizer o óbvio: muitos esquerdistas e liberais progressistas odiarão minha proposta, com ódio tão consumado quanto o dos bolsonaristas, porque isso implicaria colocar um freio em sua corrida desvairada pelo identitarismo e pela invenção de pseudodireitos afetivos e sexuais. Mas isso só confirma que a utopia do “progresso civilizatório” da nossa elite cultural é a causa do bolsonarismo, e que a esquerda e a direita enterraram juntas o princípio da fraternidade.
Perto do fim do artigo, cabe deixar claro que nosso exercício de modelagem pode se mostrar totalmente equivocado. Embora tenha algum fundamento teórico, não posso garantir nada. Os bolsonaristas podem, por exemplo, ter sucesso em galvanizar o movimento evangélico contra a pauta ambiental. Em todo o caso, os moderados em cada campo reconhecerão que minha abordagem tem plausibilidade estratégica e também favoreceria a despolarização e arrefecimento do odium politicum.
Há, também, bons argumentos teológicos e filosóficos cristãos para alegar que as pautas pró-vida e pró-família, com seu fundamento personalista e criacional, se harmonizam naturalmente e facilmente com a pauta da conservação ambiental. Eu chamaria todas essas pautas, em termos simbólicos, de “pautas edênicas”: pautas que ressaltam a função sacerdotal e pastoral de todos os seres humanos de cultivar e guardar as coisas feitas por Deus, segundo a mensagem moral e espiritual do Gênesis. Além de as pautas edênicas já estarem no coração dos cristãos brasileiros, elas são a coisa certa a fazer.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos