Estamos em plena era do capitalismo emocional. A felicidade-como-bem-estar e a autenticidade pessoal são admiradas como bens supremos; seus meios e símbolos, como a psicoterapia, o cultivo da beleza física, a autopromoção em mídias sociais, o empoderamento individual e a liberdade sexual são objeto de intenso comércio, tanto no nível individual quando no corporativo. Pessoas que “saem do armário”, em termos afetivo-sexuais, são muito admiradas porque simbolizam essa autenticidade que todos reverenciam. É uma era profundamente estética, em termos kierkegaardianos.
Segundo o nosso argumento na coluna da semana passada, a intimidade contemporânea foi incorporada nesse grande sistema de consumo. Os mercados afetivo-sexuais foram desregulamentados e desprotegidos, entrando em um regime de “laissez-faire”, desvinculado de uma ética de compromisso e autossacrifício. Hoje, a única interdição moral válida no campo sexual é o sexo sem consentimento, que configura uma espécie de violação da propriedade privada (“meu corpo” etc.). Essa é a ética do “liberalismo moral”: se dois adultos consentem, qualquer forma de sexo e “amor” é válida.
Essa moralidade é, naturalmente, extrínseca em relação ao sexo. Não se concebe um uso correto nem se discute a finalidade objetiva do sexo, mas tão somente fins privados, a ele atribuídos pelo Eu soberano, o Self moderno, em busca de prazer e autoexpressão. O que é sagrado é a autonomia e a autenticidade do Self, e o corpo se torna símbolo e ferramenta dessa autonomia. Daí que o sujeito sujeite o seu corpo ao laissez-faire afetivo-sexual, fantasiando-se livre e incólume diante do abuso, refugação e desvalorização da sexualidade. A liberdade sexual se torna a prova de autenticidade. O sexo se torna um recurso amorfo e plástico, uma massinha de moldar, e novas disciplinas são instituídas. Fetos? É só abortá-los para eliminar consequências. Doenças? Temos remédios. Abandono? É só aprender também a abandonar bem, sem culpa nem ressentimento.
Os mercados afetivo-sexuais foram desregulamentados e desprotegidos, entrando em um regime de “laissez-faire”, desvinculado de uma ética de compromisso e autossacrifício
Daí a nossa afirmação: o liberalismo moral é a falsa consciência sexual do capitalismo emocional. Falsa consciência, porque esconde do indivíduo moderno o que ele faz com seu próprio corpo, com o corpo do outro e com a sociedade.
Mas quem sustenta essa falsa consciência? Ela evidentemente se reproduz com a força do mercado, mas tem um centro de irradiação: os campos afetivos modernos.
Campos de poder social
Nossas sociedades modernas têm diversos campos de poder social: campos políticos, campos econômicos, campos científicos, artísticos e religiosos, por exemplo. Campos não são exatamente a mesma coisa que “classes”, porque envolvem muitas vezes várias classes sociais ao mesmo tempo. O campo sempre se desenvolve ao redor de um tipo de bem humano, que é reconhecido, cultivado e distribuído por aquele campo. Pense nas ciências, por exemplo: temos o saber/fazer científico sendo produzido pela cooperação de diversas pessoas, validado por autoridades, com suas fronteiras vigiadas (para separar, por exemplo, ciência de pseudociência), e com sistemas de distribuição.
Os bens de campos diferentes podem ser convertidos, até certo ponto, em outro campo. O capital científico, que circula nos campos científicos, pode alavancar o capital político, mas este tem suas próprias regras de circulação. O dinheiro pode também ser usado para financiar a ciência, mas ninguém tem autoridade científica só porque tem dinheiro. Onde há um tipo de capital e um tipo de instituição que cultiva isso, temos um campo de poder social distinto.
Os campos afetivos
Essa foi a sacada genial da socióloga Eva Illouz, que introduzimos há algumas semanas nessa coluna: ela descreveu a formação de um novo sistema de campos de poder social ao longo do século 20: os campos afetivos, que cultivam um ideal de felicidade como autenticidade e competência emocional. Esses campos teriam emergido com a fusão entre a psicologia moderna e as grandes corporações a partir dos anos 1920, e entre a psicologia e o feminismo, um pouco depois. Essas fusões colocaram o ideal de um Self autônomo, autêntico e emotivo no centro da vida econômica e política contemporânea. Esse ideal, por seu turno, tornou-se um paradigma ético supremo, exigindo a desregulamentação dos mercados afetivo-sexuais e da família tradicional.
Aqui vale uma definição mais formal: o campo afetivo pode ser classificado como uma rede de relações sociais (e não propriamente uma “comunidade”) composta de uma variedade de relações interindividuais e intercomunais: pessoas, classes profissionais, movimentos, instituições. Sua unidade interna é edificada, à semelhança de fenômenos como a classe social ou o movimento artístico, através da propaganda e de esforços sustentados de organização, carecendo de estruturas de autoridade institucionalizadas, exceto aquelas resultantes da influência dos controladores do capital e do discurso afetivo.
Qual a função desse campo de poder social? Realizar a terapêutica da consciência moderna, de modo que ela aceite e se adapte ao capitalismo emocional. Trata-se de uma elite sacerdotal na moderna religião do Self, e seu ideal de santidade é a autenticidade emocional.
E quem é essa elite terapêutica controladora do discurso, os sacerdotes do campo afetivo? A classe psicológica, em primeiro lugar; em seguida, pedagogos, administradores e profissionais de mídia e da indústria cultural em geral, comprometidos com o discurso afetivo e, especialmente, os militantes políticos na academia e no sistema partidário que se dedicam especificamente à promoção do ideário utópico do campo afetivo.
Os campos afetivos modernos não apenas promovem uma cultura de saúde emocional e de maturidade pessoal, mas toda uma revolução moral elevando a autenticidade do Self à posição de bem supremo
Podemos traçar um paralelo com o fenômeno da esfera ou campo econômico, o campo do “livre mercado”, onde temos uma combinação de relações sociais que são de modo típico qualificadas economicamente e fundadas historicamente. Encontramos no campo afetivo uma rede amorfa de relacionamentos interessada na elevação do bem-estar e da felicidade afetiva como eixo organizador da vida moral e no reconhecimento universal dessa forma de existência, rede essa formada historicamente em paridade com o capitalismo de consumo.
Esse ponto é importante: os campos afetivos modernos não apenas promovem uma cultura de saúde emocional e de maturidade pessoal, mas toda uma revolução moral elevando a autenticidade do Self à posição de bem supremo. Nesse sentido, eles operam como uma espécie de sacerdócio secular de uma religião secular.
Podemos expandir a nossa lista de atores do campo afetivo: ele inclui organizações sociais não institucionais como as sociedades para o auxílio e defesa dos direitos LGBTQIA+, organismos ou clubes feministas, conselhos regionais de psicologia, movimentos ou tendências internas a diversos partidos políticos (ou até mesmo partidos inteiros), uniões estudantis ou coletivos políticos, coletivos artísticos, círculos de jornalistas, agências de propaganda e, naturalmente, um grande número de relações interindividuais de pessoas comprometidas ou simpáticas a esses valores e as relações de indivíduos com essa multiplicidade de formas sociais atuantes no interior do campo afetivo. Essas formas diversas existem entretecidas ou “encapsuladas” em um complexo de comunicações em rede que confere unidade mínima a esse campo de forças sociais.
O capital afetivo e a imaginação moral
Elevando o princípio da autenticidade a “bem supremo” ou hiperbem (nos termos de Charles Taylor), é claro que o campo afetivo precisa construir sua noção de capital emocional de um modo consistente com esse centro ético. A própria definição operante de “pessoa saudável” e de sua relação com a comunidade é construída de modo a se encaixar nesse centro.
Assim, o tipo de capital afetivo que é privilegiado e promovido pelo campo afetivo será aquele compatível com os padrões morais que oferecerem baixa resistência às tendências atomizadoras e romântico-revolucionárias do sistema hiperconsumista, por seu turno originárias do ideal de personalidade livre. O emotivismo moral, como descrito por Alasdair MacIntyre, se encaixa muito bem nessas tendências. Assim, tipicamente, a psicoterapia secular nada tem de neutra. Ao mesmo tempo em que luta para eliminar a interferência “pseudocientífica” da religião, ensina ativamente o caminho da felicidade em termos emotivistas.
Tipicamente, por exemplo, as virtudes da paciência, da fortitude, da temperança, do perdão e da fidelidade não têm grande espaço na psicoterapia, porque isso implicaria autossacrifício – um caminho pouco valorizado na cultura do Self. Já a coragem para buscar a própria felicidade, a autopreservação e o autocuidado, por outro lado, recebem grande suporte. Para muitos homens e mulheres em casamentos difíceis, por exemplo, a função do psicólogo é tão somente a de apaziguar a consciência, facilitar a separação e garantir a “felicidade” do cliente.
Uma moralidade baseada em concepções sentimentalizadas e estéticas da felicidade é necessariamente uma moralidade empobrecida; o equivalente de comidas processadas em relação à alimentação orgânica
Mas a influência disso não fica só no divã; é uma cultura. Entre os fenômenos que resultam da influência da moralidade emotivista, podemos apontar o “mercado da felicidade”, a educação liberal em sua encarnação mais recente, centrada na inteligência socioemocional, a cultura “pet” com sua incorporação da experiência afetiva animal, o giro emotivista na igreja e na liturgia, os conflitos entre as igrejas e a classe psicológica, e a redefinição do casamento e da família como instituições “afetivas”.
Temos aqui o problema crítico: uma moralidade baseada em concepções sentimentalizadas e estéticas da felicidade é necessariamente uma moralidade empobrecida; o equivalente de comidas processadas em relação à alimentação orgânica. O foco da moralidade não pode ser a autenticidade do Self, mas o bem comum e uma relação ética com a realidade externa. A moralidade emotivista promove uma introversão espiritual do ser humano, em vez de extrovertê-lo em direção ao cosmos.
Uma forma de ilustrar isso é considerar o impacto do capital financeiro na política: o peso do dinheiro pode distorcer a representação política e os projetos partidários, que deixam de operar de modo cívico e se tornam marionetes de interesses econômicos. Algo similar acontece quando o capitalismo emocional usa o campo afetivo para distorcer a moralidade e a educação, de modo a formar sujeitos adaptados ao sistema de consumo: os “psidadãos” (psytizens), na linguagem criativa de Edgar Cabanas. Isso é o que acontece, hoje, no sistema brasileiro de educação pública e privada, no jornalismo e no mercado de produção cultural. Trata-se de uma ampla colonização, não apenas da intimidade e da família, mas das instituições e da própria imaginação moral moderna, agenciada pelo campo afetivo.
É nesse contexto que os atos de autoafirmação, autoexpressão e modificação plástica do corpo se tornarão os sacramentos da nova religião do Self, e as provas de posse do capital afetivo, sendo explicados, propagados e legitimados por seu alto-sacerdócio, nos templos e capelas do campo afetivo. Tudo pelo bem do império.
Concluindo: em termos histórico-culturais, vale repetir, o campo afetivo se distribui entre diversos estratos e classes sociais compondo uma elite cultural terapêutica, movida por uma ideologia da felicidade. Sua função é, como tal, o engendramento, contínua adaptação, e disseminação do simbolismo central de experiência pessoal e coletiva que caracteriza o paradigma expressivista-sentimental de constituição identitária, ou seja, o Homo sentimentalis. Desse modo, o campo afetivo se torna um agente de inversão moral.
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