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Entre as muitas ações de socorro aos atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul, tenho observado com atenção as mobilizações de igrejas e organizações religiosas. Convenção Batista do Brasil, Fundação Cidade Viva, Movimento Jesus Copy, Ministério Life, TeachBeyond e Samaritan’s Purse são uns poucos exemplos entre inúmeras iniciativas evangélicas enviando dinheiro, voluntários e caminhões cheios de insumos. Igrejas pequenas também estão se mobilizando por todo o país, como registrou a revista Christianity Today em um artigo recente.
Na coluna de hoje entrevistamos o amigo e irmão Cassiano Batista da Luz, diretor-executivo da Aliança Cristã Evangélica do Brasil, uma associação cristã que reúne várias denominações e igrejas evangélicas, incluindo batistas, presbiterianos, metodistas, luteranos, igrejas históricas e pentecostais, e instituições como Visão Mundial, Unicesumar e Cristãos na Ciência (ABC2), entre outras. Cassiano está nesse momento coordenando uma campanha de urgência e uma grande mobilização de socorro aos atingidos no Rio Grande do Sul, e concordou em falar um pouco sobre a sua experiência.
O Que a Aliança Evangélica está fazendo para responder a essa catástrofe no Rio Grande do Sul?
Esta já é a maior emergência com que já lidamos até o momento, tanto em extensão quanto em intensidade – o maior número de mortos, no entanto, foi na tragédia em Petrópolis. Também já é nossa maior emergência no que diz respeito à mobilização de voluntários, que já passam de 700, e número de igrejas apoiadas, cerca de 300. Temos quatro bases operacionais simultâneas: Gravataí, Caxias do Sul, Lajeado e Cruzeiro do Sul. Nos próximos dias devemos publicar nosso primeiro relatório de impacto, mas seguramente já recebemos mais de dez caminhões ou carretas de doações e cooperamos diretamente com algumas dezenas de igrejas nas regiões mais afetadas nos entornos das nossas bases operacionais.
“A melhor forma, ou talvez a única forma possível, de exercício da nossa unidade como Corpo de Cristo é o serviço. A missão é que nos une.”
Cassiano Batista da Luz, diretor-executivo da Aliança Cristã Evangélica do Brasil
Como tem sido essa experiência de mobilização? As pessoas estão se envolvendo no número e intensidade necessária?
Nesta emergência temos visto um grande engajamento da sociedade como um todo, mais do que em outras ocasiões, como na Bahia em 2021 ou em Petrópolis em 2022, provavelmente pela extensão e gravidade do problema, mas creio que há outros fatores que precisarão ser estudados depois.
Você pode nos dizer alguma coisa sobre o impacto sofrido pelas igrejas evangélicas nas áreas atingidas e como elas estão respondendo a esse desafio?
O estado das igrejas evangélicas, é claro, é uma das nossas maiores preocupações. Sabemos que a grande maioria das igrejas evangélicas no Brasil é pequena, pobre e periférica. O Aliança Lab, iniciativa de pesquisas e inteligência missional da Aliança, em parceria com a missão Sepal, tem se debruçado sobre essas estatísticas, ainda não de forma conclusiva; mas cremos que mais de 90% das igrejas no Brasil têm menos de 100 membros.
O que está acontecendo no Rio Grande do Sul é que muitas dessas igrejas foram totalmente destruídas (atendemos um pastor cujo prédio da igreja ficou apenas com o piso, sem nenhuma parede sequer em pé). Ao mesmo tempo, em muitas delas todos os membros foram atingidos, o que desestruturou totalmente a comunidade. Pastores sentem-se responsáveis pelos membros, por sua própria casa que, em alguns casos, “pegou água”, como eles dizem, e o fato de que os dízimos cessaram, portanto eles não têm conseguido pagar suas contas e não têm esperanças de solução no curto prazo. Isso tem levado alguns desses pastores a manifestar ideias suicidas em conversas com psicólogos que fazem parte da nossa equipe. Diante disso iniciamos uma campanha, em parceria com o Igreja AME, que hospeda nossa base operacional em Lajeado, para arrecadar dinheiro que possa ser repassado a esses pastores. Ainda não conseguimos ter uma perspectiva mais objetiva de como, ou se, essas igrejas poderão se recuperar.
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A Aliança já tem uma experiência acumulada com emergências climáticas, não é? Como essa iniciativa se desenvolveu?
Desde 2021 a Aliança Cristã Evangélica Brasileira tem desenvolvido um programa de respostas em desastres e emergências humanas, o Aliança pela Vida, provendo respostas emergenciais, principalmente nas tragédias climáticas que temos enfrentado no Brasil. Até o fim de 2023 já havíamos distribuído nessas emergências mais de 20 mil refeições, mais de 1,6 tonelada de proteínas, mais de 4,5 toneladas de roupas, mais de 15 mil litros de água mineral, mais de 230 atendimentos médicos e odontológicos, entre diversas outras ações.
Este programa não nasceu tão somente como resposta às emergências climáticas, que infelizmente devem aumentar, tanto em frequência quanto em intensidade, segundo as previsões científicas, mas sim a partir de uma tese que diz respeito ao motivo de existência da Aliança. Trata-se da convicção de que a melhor forma, ou talvez a única forma possível, de exercício da nossa unidade como Corpo de Cristo é o serviço. Ou seja, a tese de que a missão é que nos une. Assim tem sido nossa experiência prática em todas as mobilizações em torno das emergências. Centenas de voluntários, dezenas de igrejas e pastores, representando diversas denominações e comunidades evangélicas, todos unidos num mesmo propósito de serviço aos vulnerabilizados. Estou convicto de que Deus se alegra com isso.
Tem havido cooperação com o poder público? Como você vê essa questão?
Eu não vejo nenhuma incompatibilidade nessa questão, acredito que tanto a sociedade civil quanto o poder público são indispensáveis. Um fato novo nesta emergência tem sido o nosso compromisso de operar de maneira focal em um município, Cruzeiro do Sul, onde atendemos a um apelo da administração municipal para colaborar desde o aspecto estratégico, no estabelecimento dos fluxos da emergência dentro do município, passando pela desobstrução de fluxos e limpeza de prédios, espaços públicos e casas, até a reestruturação das secretarias de Saúde, Educação, Defesa Civil e Assistência Social. Nossa intenção é permanecer na cidade até o fim do que chamamos de fase 2, a fase de reconstrução.
“É comum nos depararmos com pessoas que questionam ‘onde está Deus’, ou ‘por que Ele permite que algo assim aconteça’. Sabemos que nossa melhor atitude nesse momento crítico é ouvir. Apenas ouvir. Chorar junto, abraçar, orar em silêncio.”
Cassiano Batista da Luz, diretor-executivo da Aliança Cristã Evangélica do Brasil
Vários analistas vêm destacando que o trabalho de reconstrução do Rio Grande do Sul será imenso e longo. Como as igrejas brasileiras poderiam se organizar e contribuir de forma significativa?
Tenho entendido que, do ponto de vista estratégico, a melhor forma de as igrejas fora do Rio Grande do Sul se envolverem nesse socorro é se comprometendo com a reconstrução de uma família, uma igreja, um bairro ou uma cidade. Isso garante que as pessoas não receberão apenas um socorro pontual, nesse momento em que muita ajuda tem chegado por causa da comoção e da grande cobertura da mídia, mas sim que o socorro continuará chegando até que consigam retomar suas vidas. Sabemos, por experiencia, que de repente a ajuda cessará de chegar, quando surgir um fato novo na mídia. A partir de então é que começará a fase mais critica, quando ainda haverá muito a ser feito, mas a ajuda será insuficiente.
A Aliança Evangélica pretende fazer algo além do atendimento emergencial?
Como eu disse, a Aliança Evangélica se colocou como parceira para operacionalizar essa ajuda, principalmente na cidade de Cruzeiro do Sul, região do Vale do Taquari; 90% da cidade foi afetada e estima-se que apenas 30% do seu comércio conseguirá se recuperar, entre outros números muito preocupantes. Teremos uma ação estruturante mais estratégica, que não apenas pretende garantir a reconstrução e retomada da vida, mas também o desenvolvimento de modelos replicáveis que poderão ser aplicados em outras emergências.
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E quanto à fé e à religiosidade dos atingidos? Essa é uma dimensão importante em grandes desastres, e que frequentemente passa despercebida. Como você percebe a situação?
Nesse contexto é comum nos depararmos com pessoas que questionam “onde está Deus”, ou “por que Ele permite que algo assim aconteça”. Sabemos que nossa melhor atitude nesse momento crítico é ouvir. Apenas ouvir. Chorar junto, abraçar, orar em silêncio.
Também precisamos guardar nosso coração quanto a possíveis crises de fé, diante de tanta dor. Por esses dias ouvi uma pregação antiga de um pastor dizendo, não me lembro das palavras exatas, que: “se nós passarmos a acreditar que Deus não permite, ou não deveria permitir, o sofrimento, estaremos questionando o fato de que ele permitiu o pior sofrimento possível do seu próprio filho, Jesus”. Sabemos que a dor e o sofrimento invadiram nosso mundo com o pecado, e a vida tornou-se contingencial. Temos e teremos aflições. Mas o amor de Deus por seu filho não cessou nem foi posto em xeque nem por um momento, e é o mesmo conosco. A dor passageira não pode se comparar à glória eterna que viveremos ao lado dele.
Acredito hoje, mais que há três anos, quando o Aliança pela Vida começou, que a via possível de exercício da nossa fé e da unidade cristã (que não é opcional, mas a vontade de Cristo) é o serviço ao próximo.
Um “até breve” aos leitores
Depois de quatro anos e quatro meses escrevendo regularmente para essa coluna, informo aos leitores que a estamos pausando por tempo indeterminado. Não por desistir da pena; os estudos formais e compromissos editoriais exigirão todo o meu foco por um período significativo. Mas, com a graça de Deus, versões melhores das ideias apresentadas ao longo desses anos virão à luz – e também neste espaço, assim espero. Deixo registrada a minha gratidão à Gazeta do Povo, ao meu editor Marcio Antonio Campos, e a todos os meus leitores. E todos se lembrem: Cor et res coram Deo!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos