“Vemos, assim, funcionando a forma de ação que já desferiu golpes tão destrutivos no mundo moderno: o cinzel do ceticismo acionado pelo martelo da paixão social.” (Michael Polanyi, A Mensagem Social da Ciência Pura).
Santo Agostinho famosamente admitiu, em suas Confissões, a impressão de saber o que seria o tempo apenas enquanto ninguém lhe perguntasse a respeito, e o estado de derrota diante da tarefa de explicá-lo.
O testemunho do grande teólogo diz respeito, naturalmente, a um profundo problema metafísico; mas, se consultarmos nossas memórias atrás de perplexidades pessoais, encontraremos derrotas bem mais prosaicas. Um curioso exemplo oferecido pelos cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach em seu livro A Ilusão do Conhecimento, de 2017, é o das caixas de descarga de vasos sanitários. Estamos tão familiarizados com o dispositivo, apertando o botão quatro ou cinco vezes por dia, que não temos dúvidas sobre a sua operação. Até que alguém nos pergunte sobre o funcionamento do mecanismo; e somos então apresentados a mais um vazio em nosso saber. Aparentemente, a familiaridade esconde a ignorância. Dizem Sloman e Fernbach:
“As pessoas são muito mais ignorantes do que pensam que são. Todos nós sofremos, em maior ou menor extensão, de uma ilusão da compreensão, uma ilusão de que compreendemos como as coisas funcionam, quando na verdade nossa compreensão é precária.”
Cada um de nós tem a capacidade de reservar, organizar e processar apenas um pequeno conjunto de saberes, e para todo o resto dependemos e pressupomos o saber de outras pessoas
Uma suposição central da ciência cognitiva moderna é a de que realmente não sabemos muito individualmente. Cada um de nós tem a capacidade de reservar, organizar e processar apenas um pequeno conjunto de saberes, e para todo o resto dependemos e pressupomos o saber de outras pessoas. Diariamente nos associamos a elas complementando nossos saberes e tapando os furos cognitivos mútuos, e assim acompanhamos notícias jornalísticas, fazemos negócios, administramos nossas casas e tomamos decisões políticas. Uma equipe de médicos com especialidades diferentes, por exemplo, pratica a confiança mútua e assume “prosteticamente” a experiência e conhecimento uns dos outros durante uma cirurgia complexa. Praticamos uma “divisão social do trabalho cognitivo”, na medida em que compartilhamos intencionalidade e nosso espaço mental com os outros.
Mas para que isso aconteça não basta o lado “positivo” da coisa – a capacidade de cooperação, solidariedade e a abertura para o aprendizado mútuo. A questão, segundo esses cientistas cognitivos, é que temos um tipo particular de viés cognitivo que nos impede de traçar “uma linha divisória acurada entre o que está dentro e o que está fora de nossas cabeças”. Quando estamos com pessoas com as quais estamos cooperando, assumimos o saber delas como se fosse “nosso”, e nossos cérebros escondem de nós, por assim dizer, que nós mesmos somos ignorantes a respeito daquilo. Experimentos psicológicos mostram que a participação em um grupo no qual algumas pessoas sabem algo nos faz ter segurança sobre a veracidade e confiabilidade desse saber, mesmo quando não temos a menor capacidade de articular claramente esses saberes. Essa seria a ilusão do conhecimento. Novamente Sloman e Fernbach:
“As pessoas tendem a viver em uma ilusão do conhecimento, e focalizamos os indivíduos – seu poder, talentos, habilidades e realizações – ao invés de apreciar que somos cidadãos de uma comunidade do conhecimento. Pior, tomamos decisões – decisões de vida menores ou maiores, assim como decisões sobre a estrutura das nossas sociedades – que superestimam nosso conhecimento e falhamos em reconhecer o quanto nosso conhecimento depende de outros.”
Ilusão em termos individuais, claro; mas, quando redefinirmos o conhecimento como uma realidade social e comunitária, não precisaremos mais usar a linguagem forte da “ilusão”. Talvez a ilusão seja a da autarquia cognitiva – a ideia de que só sabemos o que sabemos individualmente, e só é válido o conhecimento de cuja construção eu sou o responsável, e do qual eu tenho a planta-baixa.
Essa curiosa incapacidade de distinguir claramente entre o que não sabemos e o que os amigos sabem é certamente adaptativa, em termos evolutivos, permitindo um nível de sincronia e de cooperação; mas não é inescapável. Outros sentimentos morais podem nos pressionar à revolta contra autoridades, quando elas nos parecem abusivas. Além disso, ela pode ser associada a outras tendências também estudadas pela economia comportamental, como o “pensamento de manada” e o “viés intragrupal”, gerando dogmatismos e mentalidade tribal.
Esse fato, a respeito das funções cognitivas humanas, não pode ser ignorado quando regulamos nossa vida intelectual comum por meio do que poderíamos chamar de políticas cognitivas, ou políticas do conhecimento. A natureza pode ser gentilmente conduzida, mas não pode ser reprimida ou violentada, como se fosse um nada, uma tabula rasa.
O ponto de termos autoridades é que essas autoridades sejam aceitas. E os círculos críticos da tese do aquecimento global antropogênico mostram grande dificuldade em reconhecer autoridades científicas
Penso que a carência dessa regulação explica muito das tensões crônicas que vemos hoje entre os círculos conservadores que negam a crise climática, ou que negavam a gravidade da pandemia, que alimentam o movimento antivacina ou que, em casos mais extremos, defendem as teorias da Terra plana. Sim, é verdade que questionar o discurso dominante da crise climática não é um erro do mesmo nível que o terraplanismo. Mas meu ponto não é comparar os erros. É antes discutir o espírito de alguns desses movimentos.
À superfície, a abordagem que encontramos assume ares profundamente autárquicos. Em meus passeios pelas mídias sociais, tenho ouvido de modo recorrente que eu, este reles teólogo, não teria nenhum conhecimento científico técnico nem autoridade para criticar tratamentos precoces, defender vacinas ou a teoria correta de mudança climática, ou mesmo objetar contra a teoria do design inteligente. Segundo esses críticos, apenas os especialistas poderiam formar e defender opiniões a respeito.
Em um sentido essa observação é correta; quem pode falar com a maior propriedade e autoridade é o especialista no campo. No entanto, esse é o ponto de termos autoridades: é que essas autoridades sejam aceitas. E, inegavelmente, os círculos críticos da tese do aquecimento global antropogênico (por exemplo) mostram grande dificuldade em reconhecer autoridades científicas.
Com a mão direita essas pessoas citam, na verdade, o currículo e a autoridade acadêmica de especialistas que desejam subscrever, como é o caso do professor do Departamento de Geografia da USP Ricardo Felício, ou como foi o caso em outros debates afins; mas com a mão esquerda desqualificam com grande rapidez qualquer coisa parecida com um “consenso científico”, alegando que o que vale, em ciência, é “a verdade”, a “demonstração”, o “debate” e a “liberdade acadêmica”. E a existência de dissidentes acadêmicos seria prova contra alegados consensos. Assim, o próprio Felício tuitou, noutro dia desses, que o consenso produzido pelo 6.º relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) seria “conversa para boi dormir”.
Ora, o relatório IPCC-AR6, publicado em agosto, reúne o mais amplo e fundamentado consenso sobre a mudança climática até agora, e confirma tendências observadas desde o primeiro relatório. O trabalho envolveu mais de 2 mil especialistas, os maiores climatologistas do mundo, e citou mais de 14 mil artigos científicos revisados por pares. O resumo para formuladores de políticas públicas contou com as reações críticas de 47 governos. Trata-se efetivamente da ciência de ponta no assunto.
Seria esse “consenso” algo fabricado por empresas ou pela imprensa? Tais objeções comuns são empregadas para inflar o peso da visão dissidente. No entanto, as posições das grandes sociedades científicas são públicas. No site da Nasa, em uma página dedicada ao consenso científico climatológico, por exemplo, encontra-se uma lista de 18 das maiores sociedades científicas norte-americanas, como a American Association for the Advancement of Science, a American Meteorological Society e a American Geophysical Union, todas apoiando a tese majoritária. Essa tese tem o apoio da Academia Nacional de Ciências dos EUA, e de mais de 200 organizações científicas em todo o mundo. O site também informa que 97% ou mais dos climatologistas atuantes e academicamente produtivos hoje endossam a tese de mudança climática antropogênica. A tese de uma grande farsa envolvendo dezenas de milhares de cientistas, sociedades científicas, laboratórios e revistas acadêmicas, motivada por interesses econômicos e políticos, é simplesmente inacreditável.
Motivos políticos e suspeitas contra conspirações globais energizam os contradiscursos. Nesse caso, a ilusão do conhecimento é real, uma vez que a força da objeção ao consenso científico não advém de fontes científicas
E, falando em Brasil, a autoridade de um Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, sediado no Inpe, é certamente muito maior, considerando sua produção e posição científica, que a de alguns dos nomes citados como referências pelos negacionistas. Mas a essa altura, como de costume, a mão esquerda da argumentação já está em ação desautorizando opiniões de sociedades científicas e defendendo a igualdade das ideias na arena pública.
A atitude autárquica e cética de muitos conservadores que desejam desautorizar os consensos científicos sobre mudança climática pode transmitir a impressão de uma recusa heroica do pensamento de manada e de um esforço socrático pela autonomia do pensamento; mas, de tudo o que sabemos sobre a natureza coletiva do pensamento, essa posição parece muito improvável. Afirmam Sloman e Fernbach:
“Porque nosso conhecimento é enredado com o dos outros, a comunidade molda nossas crenças e atitudes. É tão difícil rejeitar uma opinião compartilhada por nossos pares que muito frequentemente nós nem mesmo tentamos avaliar as afirmações com base em seus méritos. Deixamos nosso grupo pensar para nós. Apreciar a natureza comunal do conhecimento deveria nos fazer mais realistas sobre o que determina nossas crenças e valores.”
Dada a associação dessas posições pirrônicas com agendas conservadoras bastante combativas e, além disso, sua associação com outras agendas similarmente desafiadores do establishment acadêmico, parece-me evidente que elas se mantêm por meio de mecanismos coletivos, e não escapam deles. Esse é o caso quando alguém espalha triunfalmente entrevistas no Jô Soares “refutando” o consenso científico, como se a autoridade do cientista entrevistado operasse autarquicamente. Ora, essa “autarquia” existe psicologicamente, mas não efetivamente, e não passa de ilusão cognitiva. Na verdade, o que se dá é a adesão a um contradiscurso coletivo, tão comunitário quanto são as comunidades científicas.
Com a crucial diferença de que são consensos “científicos” de comunidades não científicas. Motivos políticos e suspeitas contra conspirações globais energizam esses contradiscursos. Nesse caso, a ilusão do conhecimento é real, uma vez que a força da objeção ao consenso científico não advém de fontes científicas. Isso faz desses consensos negacionistas consensos tribais circulares e incorrigíveis, similares às crenças mágicas dos Azande (que explicavam tudo e nada ao mesmo tempo).
Mas vamos examinar mais de perto o retruco natural: “não seria esse o caso, sem tirar nem pôr, dos consensos como o do IPCC?” Não, e o parágrafo acima já mostra onde está a gritante diferença. É claro que há interesses econômicos e políticos alimentando-se da climatologia moderna. Mas o modo de combater tais interesses, quando são perigosos ou moralmente doentes, não será pela negação da melhor ciência, mas de um melhor uso político dela. Não é apropriado que comunidades políticas, éticas, religiosas, artísticas ou econômicas formem consensos paralelos negando a autoridade e os procedimentos de comunidades profissionais e científicas nos assuntos que pertencem a essas esferas. Diz Michael Polanyi:
“A pesquisa científica... é uma arte; é a arte de fazer certas espécies de descobertas... a verdade é que a tradição da ciência como uma arte só pode ser repassada pelos que a praticam. Por conseguinte, não faz sentido uma outra autoridade substituir a opinião científica no desempenho dessa função; e qualquer tentativa de fazê-lo somente pode resultar em embaraçosa distorção – e se persistentemente aplicada – na destruição mais ou menos completa da tradição da ciência.”
Não é apropriado que comunidades políticas, éticas, religiosas, artísticas ou econômicas formem consensos paralelos negando a autoridade e os procedimentos de comunidades profissionais e científicas nos assuntos que pertencem a essas esferas
As teses do cientista e filósofo conservador Michael Polanyi sobre a verdadeira natureza da liberdade acadêmica são excepcionalmente iluminadoras para o nosso objeto. Contra as fantasias autarquistas, Polanyi deixou claro que a liberdade que existe é a liberdade para uma comunidade criativa perseguir seus fins internos e os bens que lhe dão a razão de existir. A autonomia do indivíduo de defender quaisquer ideias que lhe agradem nada tem que ver com a liberdade científica. “A liberdade na ciência surge, assim, como a Lei Natural de uma comunidade comprometida com certas convicções... A liberdade para o indivíduo agir a seu bel-prazer, desde que respeite o direito do próximo de agir da mesma maneira, desempenha pequeno papel nessa teoria de liberdade. O individualismo particular não é pilar importante da liberdade pública.” E na ciência, segue Polanyi, ele também importa pouco:
“A liberdade da ciência consiste no direito de buscar a exploração dessas crenças e de defender, sob sua orientação, os padrões da comunidade científica... Assim se estabelece a autonomia da ciência no Ocidente, que flui logicamente da natureza do objetivo básico e das crenças fundamentais, aos quais se dedica aqui a comunidade de cientistas.”
O fenômeno das comunidades científicas autoritativas, cooperando cognitivamente com a sociedade mais ampla, que passa a “saber” pela mediação dessas comunidades especializadas, se explica muito bem a partir das descobertas da ciência cognitiva contemporânea. Aqui, poderíamos dizer, os fatos da natureza humana convergem com a experiência histórica e com os princípios cristãos da subsidiariedade e das esferas de soberania. A confiança e respeito aos processos internos e autorregulados das comunidades científicas por quem não é cientista ainda é uma expressão de pensamento coletivo e cooperação cognitiva; mas, ao contrário do negacionismo, conduz a uma política cognitiva mais consistente com a natureza humana.
A autonomia do indivíduo de defender quaisquer ideias que lhe agradem nada tem que ver com a liberdade científica
Nada disso implica negar a possiblidade da independência intelectual do indivíduo e do cientista; ele deve explorar ao máximo essa independência em sua comunidade de ideias, jogando segundo as regras da comunidade. No entanto, alegar “liberdades científicas e acadêmicas” com o fim de, muitas vezes explicitamente, negar a autoridade, a relevância ou mesmo a existência de comunidades científicas, é uma espécie de golpe anticientífico. É a contradição da liberdade tantas vezes denunciada por Michael Polanyi.
E aqui devemos denunciar claramente como as regras do jogo são violadas: se, havendo sido derrotados no debate interno da comunidade científica, cientistas e formadores de opinião tentam retirar o debate técnico desse ambiente para lançá-lo na arena pública, alegando liberdades acadêmicas e de expressão, e energizam seu libelo com mera exploração de falhas de modelo, suspeitas políticas e éticas e alegações conspiratórias (como o “globalismo”), sem oferecer avanço científico substantivo, o que temos é, claramente, o proverbial “tapetão”. Pessoas que empregam tais estratégias, ainda que tenham títulos acadêmicos, praticam o que poderia ser chamado de “arruaça cognitiva”.
O irônico e triste, nessa situação, é que se repita o fenômeno testemunhado e lamentado por Michael Polanyi, quando os motivos políticos levaram comunistas a rejeitar a ciência ocidental e a tentar construir uma ciência marxista. Duvidando da verdade, do amor ao conhecimento científico puro e da capacidade de autorregulação das comunidades científicas, os soviéticos enterraram Vavilov num gulag e alimentaram o monstro pseudocientífico do lysenkoísmo; apenas porque a tese de Trofim Lysenko se conformava com a agenda soviética. O cinzel do ceticismo contra a comunidade científica foi acionado pelo martelo da paixão social comunista.
Se, havendo sido derrotados no debate interno da comunidade científica, cientistas e formadores de opinião tentam retirar o debate técnico desse ambiente para lançá-lo na arena pública, temos o proverbial “tapetão”, uma “arruaça cognitiva”
Claro, eu digo isso guardadas as proporções. Não quero afirmar, nem por um momento, que os conservadores seriam culpados de querer reprimir opiniões contrárias. Nem quero ser condescendente com o fato público e notório de que, no campo das ciências humanas, o ambiente vem se tornando cada vez mais tóxico para visões conservadoras, repetindo as tendências historicamente repressivas da esquerda. Quando a isso, reconheço que nas humanidades a pluralidade ideológica produz comunidades de pesquisa paralelas e concorrentes, de um modo diferente das ciências naturais, e isso legitima, por exemplo, tradições concorrentes em economia política ou em psicologia.
Ainda assim, a compreensível reação ao policiamento acadêmico esquerdista vem se degenerando numa estranha e destrutiva libertinagem intelectual, um verdadeiro mercado de suspeitas e conspirações. Agora, uma nova direita se ergue globalmente martelando o cinzel do ceticismo e da alegada autarquia intelectual contra consensos científicos perfeitamente razoáveis, empregando toda a força das paixões morais conservadoras. Se o marxismo gerou o velho minotauro, os conservadores já estão parindo a sua própria besta.
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