Francisco Razzo, meu colega de Gazeta do Povo, abre a terceira parte de seu necessário A Imaginação Totalitária (Record, 2016) com uma observação que parece trivial, mas que contém um mundo de problemas filosóficos: “A política promete. É da natureza da política prometer. Essa promessa não tem a ver com poder, embora esteja diretamente relacionada. Política, antes de tudo, diz respeito a possibilidades”.
E, dada a incompletude da vida humana nessa situação de meio-do-caminho – a metaxia de Eric Voegelin – que é a história, a política tem limites intransponíveis. “O homem insuficiente só pode gerar formas de governo provisórias”, como diz Razzo. Mas, se é assim, a política pode falar de propósitos, direções e possibilidades, mas não pode garanti-las. E, se tentar garanti-las, há de fazê-las totalitárias. Daí que seria melhor não misturar política com esperança; pois o poder não é suficiente para cumprir as promessas da política.
O problema posto pelo professor Razzo – ele mesmo cristão – é da mais alta importância: o perigo de a esperança distorcer a atividade política. Mas essa moeda tem um outro lado: o que devemos pensar da esperança, em si? Que ideia de esperança deve regular a imaginação política cristã, se é que tal regulação seja cabível?
A minha opinião é de que não somente é cabível, como é inevitável, porque a ossatura de toda esperança é alguma ideia de felicidade, e as promessas da política sempre apelam à vida feliz – ou, no mínimo, à vida menos infeliz.
Que ideia de esperança deve regular a imaginação política cristã, se é que tal regulação seja cabível?
O filósofo francês André Comte-Sponville escreveu há pouco mais de 20 anos um pequeno opúsculo para argumentar, basicamente, que a esperança atrapalha a felicidade. Em A felicidade, desesperadamente, ele sustenta que a felicidade depende de termos o poder, em nós mesmos, de completar o que falta, de satisfazer o desejo. Essa seria a razão da filosofia, fazer-nos sábios para alcançarmos a felicidade, mas a sabedoria nos ensina que a esperança nos faz infelizes. Pois a esperança seria não apenas um desejo sobre o que não temos e o que não é, mas também “um desejo que ignora se foi ou será satisfeito”. Desse modo, “esperar é desejar sem saber”, de modo ignorante; além disso, “a esperança é um desejo cuja satisfação não depende de nós”, ou seja, “esperar é desejar sem poder”. Seria melhor, então, desesperar-se para ser feliz. Porque o desesperado só quer aquilo que pode.
Em vez de esperar, propõe Comte-Sponville, seria melhor amar. Porque o amar nos conecta com o presente, e não com um possível que é impensável. Amar é conhecer e desfrutar (o filósofo nega explicitamente que o amor seja um dever, tratando-o como mero sentimento); de modo que amar é alegria: “Regozijar-se com o que é, em vez de se entristecer (ou só se regozijar de forma inconstante) com o que não é. Amar, em vez de esperar o temer”.
Comte-Sponville defende um tipo de presentismo: quanto mais habitarmos o que é dado agora, tanto maior a felicidade. O desespero e o amor nos colocam em contato com o presente, e só esse presente pode nos dar alegria. Mas e quanto ao futuro e aos nossos planos? E quanto ao desejo de mudar o mundo?
“Somente o presente nos é dado. Mas nesse presente podemos viver certa relação com o passado, uma relação presente com o que já não é presente: a memória. Nesse presente, podemos viver uma relação atual com o futuro: é o que se chama, conforme os casos, esperança, vontade, projeto, programa, intenção... Aí a coisa fica mais interessante. Eu dizia: esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder... Longe de querer dizer com isso que se deva amputar toda relação com o futuro, concluo ao contrário que é preciso que nossa relação com o futuro seja uma relação de gozo, de saber e de poder.”
Tomando empréstimos da filosofia do tempo de Santo Agostinho, o filósofo reconhece que temos relações com o passado e o futuro, mas apenas na medida em que eles estão dentro do nosso presente. Mas que relação seria essa, com o futuro? Apenas como o futuro que depende da minha ação. O futuro que importa é o futuro que está de algum modo dentro do meu poder. E o filósofo pontifica: “As pessoas que fazem com que as coisas mudem não são as que esperam, mas as que lutam”.
Agrada-me a honestidade de Comte-Sponville, enquanto ele se esforça, de dentro do seu ateísmo, para compreender a natureza da felicidade. Boa parte do seu argumento depende do gênio de Blaise Pascal: sem Deus, não pode haver esperança.
“Se Pascal tiver razão, um ateu não pode escapar ao desespero e, logo, à infelicidade. É precisamente esse ‘e logo’ que tentei, pela minha parte, questionar. Creio, concordando com Pascal, que um ateu lúcido e coerente não pode escapar ao desespero, já que nada o espera, afinal de contas, senão a morte. Porém, recuso-me a pensar com ele que o desespero seja necessariamente uma infelicidade.”
Sua tese, portanto, é de que a felicidade seria independente da esperança, e que a esperança seria um obstáculo à felicidade. Ele não propõe a repressão ou a amputação da espera, mas que a superemos por meio do conhecimento, do poder e do desfrute do momento presente. Sua terapêutica da felicidade é também uma terapêutica do desespero.
Dada a natureza imaginativa do ser humano, e sua fabulosa capacidade da antecipação, toda doutrina da felicidade envolverá uma doutrina da esperança, e toda esperança carregará, no seu seio, uma doutrina da felicidade
O que está certo em André Comte-Sponville? Em primeiro lugar, é claro, está correto o que ele aprendeu de Pascal: ateísmo é desespero. Se não há Deus, não há esperança. Em segundo lugar, podemos concordar que esperar é depender de outro e não de nós mesmos. De modo que qualquer ideologia determinada a estabelecer a plena emancipação e autonomia do indivíduo nada terá que fazer com a esperança, seja em Deus, seja em outras pessoas. Em terceiro lugar – e penso que nosso filósofo acertou na mosca –, há uma relação interna entre a felicidade e a esperança (ou a desesperança). Dada a natureza imaginativa do ser humano, e sua fabulosa capacidade da antecipação, toda doutrina da felicidade envolverá uma doutrina da esperança, e toda esperança carregará, no seu seio, uma doutrina da felicidade.
O segundo acerto do filósofo francês desesperado remete à discussão do nosso filósofo brasileiro e cristão. Pois o problema com a esperança na política é que ela envolve uma crença no poder humano de construir um paraíso dentro da história, e uma concupiscência de poder total, que garantiria o sucesso na mudança histórica. Mas, na verdade, não podemos fazer isso. Então, em vez de mudar o mundo, ficaríamos apenas com a boa e velha... política. Nas bodas de Comte-Sponville com Razzo, o sermão seria, talvez, sobre buscar a política, desesperadamente.
Mas o que restaria, então? Fazer apenas e tão somente o que for racionalmente possível e que puder ser planejado; aquilo que está em meu poder. Uma vida sem esperança não seria uma vida sem planejamento e sem militâncias, mas uma vida sem utopias. Os políticos ainda prometeriam, mas prometeriam com prudência.
Prosseguindo em nosso arrazoado, poderíamos concluir que o ateísmo apresenta bons prospectos para a paz política, e teria ressonâncias com uma visão conservadora. Ademais, apesar da oposição diametral entre o platonismo de um Voegelin e o naturalismo de um Comte-Sponville, eles acabam se aproximando no desprezo pela esperança escatológica cristã. O primeiro, com os olhos no destino da civilização, culpa o cristianismo (ou parte dele) pelo gnosticismo político e o niilismo da modernidade; o outro, com os olhos no destino do indivíduo, culpa o cristianismo por manter as pessoas na infelicidade. Abaixo, então, a esperança!
Muito embora eu me sinta à vontade com a ideia de vivermos sem utopias, e seja simpático à ideia de combater as esperanças metastáticas na política, devo dizer que essa missão me parece impossível em um mundo pós-cristão. A civilização ocidental teve sua imaginação temporal irreversivelmente determinada pelo cristianismo, e a as esperanças imanentizadas retornarão de novo e de novo, como uma assombração teológica, um pesadelo cíclico.
Esse retorno é chamado pelo autor das epístolas joaninas, no Novo Testamento, de “espírito do anticristo”. E o próprio Jesus anunciou essas coisas em seu sermão escatológico, nos Evangelhos: trata-se da contínua fraude, a falsificação messiânica repetindo-se aqui e ali, sempre. Tanto Jesus quanto seu discípulo amado dizem a mesma coisa: muitos falsos cristos, muitos falsos profetas. Um Voegelin pode tentar voltar seu relógio espiritual pessoal para tempos anteriores à ascensão da modernidade e ao tempo de Cristo, antes de o anticristo sair pelo mundo, mas isso é um luxo filosófico; a marcha da modernidade seguirá em frente, rumo ao seu abismo.
Uma vida sem esperança não seria uma vida sem planejamento e sem militâncias, mas uma vida sem utopias. Os políticos ainda prometeriam, mas prometeriam com prudência
Não penso que haja reversão nesse processo, embora a história seja cheia de surpresas; o que penso é que a esperança se tornou a tentação e o inferno do apóstata, que gostaria de não a ter, mas acorda com ela ao lado todas as manhãs. Ou melhor: não deixou a sua primeira esposa, e acorda sempre com alguma meretriz, tentando esquecer o amor antigo; de esperança falsa em esperança falsa, rumo ao seu abismo.
A minha proposta não seria deixarmos a esperança de lado, mas recuperá-la; a original. A esperança regula, sim, a vida social e política, mas o faz indiretamente, organizando os afetos, esclarecendo os horizontes, matando a sede de felicidade, filtrando as promessas dos políticos. E por “esperança” não me refiro a um vago sentimento, mas à esperança cristã, com todo o peso e densidade que ela apresenta quando cremos na ressurreição de Jesus Cristo e na sua promessa da vida eterna.
Acusei Voegelin de luxo filosófico, e talvez alguém se vingue por ele, acusando-me de luxo teológico; em minha defesa, eu direi que não são os intelectuais conservadores os que freiam o apodrecimento da modernidade secular, mas os cristãos comuns em suas igrejas comuns. Pois a igreja sempre foi e sempre será o sal da terra.
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