Detalhe de “O Jardim do Éden”, de Lucas Cranach, o Velho.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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“A afirmação dos direitos humanos universais (...) representa um autêntico desenvolvimento do evangelho.” (Charles Taylor)

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Entre 27 de janeiro e 10 de fevereiro de 1947, durante a primeira sessão da recém-criada Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Lake Success (NY), deu-se um debate momentoso, registrado por estenógrafos e relembrado na crônica de Mary Ann Glendon sobre a história da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Em A World Made New ela conta que um filósofo e teólogo, jovem em comparação com os outros dignitários presentes, acendeu o fogo do debate recusando-se a permanecer na negociação retórica e arrastando a discussão, desde o início, para um problema ontológico, da própria natureza da realidade.

“‘Quando falamos de direitos humanos... estamos levantando a questão fundamental, o que é o Homem?’ Ou seja, quando discordamos sobre os direitos humanos, estamos discordando sobre a natureza da pessoa. ‘É o homem meramente um ser social? É ele meramente um animal? É ele meramente um ser econômico?’”

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Para Charles Malik o homem era pessoa à imagem de Deus, e a sacralidade da pessoa humana, derivada dessa relação, seria um fato objetivo o suficiente para ser admitido por pessoas de qualquer religião e até mesmo pessoas sem religião

A questão do intelectual libanês Charles Habib Malik o colocaria em choque frontal com os representantes soviéticos e até mesmo em certa tensão com Eleanor Roosevelt, que presidia os trabalhos. Os socialistas negavam admitir direitos individuais que suplantassem os deveres comunitários que, em sua opinião, estavam legitimamente concentrados no Estado. E Roosevelt, como boa norte-americana que era, privilegiava o indivíduo.

Malik, no entanto, embora usasse a linguagem ocidental da individualidade, não queria saber de meros indivíduos ou de massas populares, em oposição ao Estado ou fundidas com ele; sua questão era a pessoa humana. Uma linguagem dos direitos individuais e deveres políticos não seria suficiente para conter o que significa ser uma pessoa, tema que viria também a ser objeto de uma importantíssima contribuição de Jacques Maritain na concepção dos direitos humanos de 1948.

Mas o filósofo e teólogo cristão Malik já a antecipava; ele chegou a Lake Success embebido da mentalidade relacional própria do cristianismo histórico. Por séculos os cristãos se debruçaram sobre o problema da personalidade, procurando entender a natureza da trindade – um Deus em três pessoas, comunitário e hiperpessoal – e do próprio Cristo. A linguagem moderna sobre a personalidade foi irremediavelmente condicionada pelas categorias teológicas dos concílios de Niceia (325), Constantinopla (381) e Calcedônia (451), e alimentou a compreensão interiorizada e singularizada do Self que, bem ou mal, fundamenta até a própria cultura da autenticidade que caracteriza nosso mundo contemporâneo. A visão de Malik sobre o que deveriam ser os Direitos Humanos expressava uma das várias versões do espírito profundamente personalista do cristianismo.

Com o apoio do intelectual chinês P. C. Chang e do judeu René Cassin, Malik batalhou pelo emprego da noção de “dignidade humana” como categoria ao mesmo tempo ontológica e ética na fundação da formulação da nova carta de direitos, tornando-a um documento profundamente moral, como também Cassin não se cansaria de apontar posteriormente, vinculando a declaração de 1948 aos Dez Mandamentos bíblicos. A noção de dignidade transmitia a noção de uma espécie de sacralidade, singularidade, valor especial e honorabilidade ao ser humano, como uma aura valorativa que, para Malik, não procedia de uma ficção jurídica ou de uma construção cultural, mas da própria natureza da personalidade humana. E a partir dessa posição elevada ele criticava a destruição da personalidade no mundo moderno, como em The Challenge of the Human Rights:

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“O maior fenômeno moderno é a ascensão das massas, a destruição da hierarquia, o nivelamento da distinção e da estrutura. O termo ‘as massas’ é empregado em um sentido ontológico: refere-se ao tipo de ser e de valoração das massas. Essa ascensão é necessariamente, também, uma revolta e, como tal, tem sido acuradamente descrita por Nietzsche e Dostoievski, e em nossos próprios dias ninguém foi mais sensível a isso do que Ortega y Gasset e Heidegger. O fenômeno do ‘das Man’ no Sien und Zeit de Heidegger é a mais maravilhosa descrição que eu conheço dessa realidade sem caráter, obscura, distraída, fofoqueira, irresponsável, perdida de si, impessoal, indecisa e inautêntica das massas. O tema atual dos direitos humanos pode ser interpretado como uma tentativa de restaurar o sentido de dignidade responsável, autêntico e pessoal do ser humano individual.”

É compreensível que seu conflito com os soviéticos se mostrasse mais ácido, em comparação com seus reparos à perspectiva dos delegados ocidentais. A autenticidade pessoal era muito importante para Malik, como deveria ser para todo cristão, e não poderia ser abandonada pela vontade das massas; mas essa autenticidade não era abstraída da hierarquia, da distinção e da estrutura. Em sua afirmação tenaz do princípio da dignidade humana, Malik compreendera que a pessoalidade dos indivíduos se manifestava onde eles tinham nomes e rostos, em suas relações comunitárias, nesses contextos de vida que existem entre o indivíduo e o Estado, como a religião e a família. Por isso sua militância na Comissão de Direitos Humanos da ONU assumiu feições afins a uma visão da sociedade conservadora, comunitarista e religiosa. Algo muito diferente do atual dialeto liberal-progressista dos direitos humanos, que coloca a felicidade do indivíduo acima de tudo.

A religião, com a noção de uma fonte divina do bem e da ordem moral, e de seres humanos partilhando de uma relação especial com o bem supremo, fornece uma explanação suficiente para o princípio da dignidade humana; uma base ontológica para uma experiência moral

Setenta anos depois da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, após uma série de consultas internacionais de alto nível, foi apresentada ao mundo a “Declaração de Punta Del Este sobre a Dignidade Humana para Todas as Pessoas em Todos os Lugares”, em dezembro de 2018. Entre os “considerandos” introdutórios, a declaração dizia que “a dignidade humana é a fonte e sustentação de todos os direitos e liberdades reconhecidos como fundamentais na DUDH”. E, no seu primeiro artigo:

“A dignidade humana, inerente a todas as pessoas, e a importância de respeitar, promover e proteger a dignidade humana em todos os lugares é o princípio fundamental e a finalidade ou o objetivo-chave dos direitos humanos, bem como o critério inestimável para avaliar o nível de compatibilidade das leis, das políticas públicas e das ações governamentais segundo os padrões de direitos humanos.”

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Mais tarde, Jan Figel, o principal articulador dessa nova declaração, enviado especial para a promoção da liberdade de religião e crença da União Europeia e que tive o prazer de conhecer num evento em Washington, diria o seguinte a respeito do texto: “está claro que necessitamos de uma mudança positiva no clima dos direitos humanos. A declaração é um passo ativo para disparar essa transformação”. De fato, a declaração é uma preciosidade. O único brasileiro participante do grupo de signatários originais da declaração foi o amigo Rodrigo Vitorino Silva, um importante erudito brasileiro no campo da liberdade religiosa e fundador do Cedire, na Universidade Federal de Uberlândia.

A dignidade humana é um dos temas mais invocados em debates intelectuais, políticos e jurídicos sobre direitos humanos, mas suas raízes espirituais vêm sendo estudadamente invisibilizadas, de um modo que periga obscurecer o sentido original pretendido por homens como Charles Habib Malik. Mas não são poucos os pensadores que insistem em desnudá-las; Tom Holland as admitiu abertamente em seu recente best-seller, Domínio: o Cristianismo e a Criação da Mentalidade Ocidental: a dignidade humana, como a conhecemos, é invenção religiosa e cristã. Especialistas no assunto como Brian Tierney, Nicholas Wolterstoff, Pierre Manent e Michael Perry escreveram trabalhos cruciais sobre isso. Perry, professor de direito da Emory University, publicou há alguns anos um argumento bastante agudo a respeito do caráter moral e religioso desse conceito fundante da DUDH 1948 em Toward a Theory of Human Rights:

“A convicção dupla de que cada ser humano tem dignidade inerente e que nós deveríamos viver as nossas vidas de acordo com isso (...) é fundamental para a moralidade dos direitos humanos.”

E, então, ele cita o historiador Richard H. Tawney:

“A essência de toda a moralidade é essa: crer que cada ser humano tem importância infinita, e que nada pode justificar a opressão de um pelo outro. Mas, para crer nisso, é necessário crer em Deus.”

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O secularismo/laicismo não tem como fornecer uma base “laica” para os Direitos Humanos. As cordas judaico-cristãs que sustentam os direitos humanos modernos estão firmes e acessíveis a qualquer um que queira apalpá-las

O ponto não é nem mesmo complexo; afirmar uma dignidade humana diante, digamos, de um seixo ou um toco de madeira é afirmar a existência de uma topologia moral. No entanto, uma topologia moral que exista apenas na psicologia do Homo sapiens é algo absolutamente insignificante, como qualquer psicopata ou nazista poderia alegremente confirmar. Que importância teriam as ideias na mente de um macaco ou de porquinho da índia? Ou o valor da pessoa humana existe objetivamente, e tão objetivamente quanto pessoas são diferentes de seixos, ou a dignidade humana é uma ficção jurídica e uma embromação psicopolítica. Ora, não há dúvidas de que a pergunta do teólogo Malik, “O que é o homem?”, era uma pergunta retórica, destinada a forçar os delegados da Comissão de Direitos Humanos da ONU a enfrentar as implicações da augusta assembleia. Para ele o homem era pessoa à imagem de Deus, e a sacralidade da pessoa humana, derivada dessa relação, seria um fato objetivo o suficiente para ser admitido por pessoas de qualquer religião e até mesmo pessoas sem religião.

O problema, naturalmente, é que admitir um fenômeno não é o mesmo que ser capaz de explicá-lo. A face viva da pessoa humana impõe sobre nós o sentido de sacralidade e de inviolabilidade e, se nosso julgamento não for deturpado por algum condicionamento preconceituoso, nos constrange espontaneamente ao respeito. Esse sentido de sacralidade emerge de raízes tácitas e compõe nossas experiências cognitivas fundamentais. No entanto, há antropologias que refinam e clarificam essa experiência moral básica, e antropologias que a tornam misteriosa ou até a obscurecem.

Vejam, por exemplo, como a dignidade da pessoa humana é derivada de modo fácil e intuitivo no interior de uma mente religiosa como a do ancião Tiago, líder da igreja cristã na Jerusalém do primeiro século:

“Com a língua bendizemos o Senhor e Pai e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. Da mesma boca procedem bênção e maldição. Meus irmãos, não pode ser assim!” (Tiago 3,9-10)

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Da relação é derivada a valoração; de uma relação de importância infinita deriva-se um valor infinito. Pode o laicismo fazer a mesma coisa?

É assim que Michael Perry dedicará um capítulo inteiro da sua obra a explicar que a religião, com a noção de uma fonte divina do bem e da ordem moral, e de seres humanos partilhando de uma relação especial com o bem supremo, fornece uma explanação suficiente para o princípio da dignidade humana; uma base ontológica para uma experiência moral. O secularismo, no entanto, incapaz de justificar uma topologia moral objetiva, é incapaz de explicar essa experiência moral e, quando tenta fazê-lo, ela se esfarela em suas mãos. Um exemplo notório disso é a conversa-fiada de que os direitos humanos são uma invenção cultural e o resultado do processo civilizatório, e blablablá. É claro; digam isso a um Hitler ou a um Pol Pot.

Não estou oferecendo nenhum Ad Hitlerum aqui, e de modo algum acuso os amigos laicistas de carecerem dessa experiência moral. Meu desafio é apenas em um ponto: sua experiência moral não se encaixa com sua doutrina moral. O secularismo/laicismo não tem como fornecer uma base “laica” para os Direitos Humanos, e a gritaria descontextualizada pelo respeito à “dignidade humana” visando promover modos de vida massificados ou ultraindividualistas parece quase calculada para compensar sua falta de fundamentos. Quando à vontade para uma conversa franca, o laicismo só consegue apontar silenciosamente para as suas tábuas-da-lei de 1948, escritas com o dedo de... Charles Habib Malik, o cristão árabe.

Laicistas precisam ter a humildade de reconhecer a sua dívida com o cristianismo, e cristãos precisam abraçar o princípio da dignidade humana como uma expressão autêntica da sua própria fé

E assim, num mundo cada vez mais laicista, militantes fecham os olhos e se sugestionam desesperadamente sobre uma dignidade mágica, inexplicavelmente suspensa no ar.

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Mas nós sabemos muito bem como a DUDH foi composta, e essa história precisa receber o máximo de publicidade no Brasil contemporâneo. Não há mágica nenhuma e, apesar da névoa, as cordas judaico-cristãs que sustentam os direitos humanos modernos estão firmes e acessíveis a qualquer um que queira apalpá-las. Laicistas precisam ter a humildade de reconhecer a sua dívida com o cristianismo, e cristãos precisam abraçar o princípio da dignidade humana como uma expressão autêntica da sua própria fé. E se, em última análise, a criação do homem à imagem de Deus é a fonte dessa dignidade, a estação litúrgica da criação é o tempo adequado para agradecer a Deus e celebrar o ser humano diante Dele.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]