É assim que o cientista político Alan Storkey, em seu livro Jesus and Politics: Confronting the Powers, descreveu o encontro fatídico de Jesus Cristo com Pôncio Pilatos, o governante romano da Judeia: “provavelmente o maior evento político de todos os tempos”.
Ali estava o representante do Império Romano, a mais poderosa entidade política da época, e o filho de Deus: frente a frente. E mesmo para aqueles que veem em Jesus apenas um grande homem – no mínimo o mais influente mestre religioso de toda a história – a história toda não deveria passar como algo trivial. Jesus, à beira da morte, tem a chance de dizer alguma coisa importante, na cara de um político importante. Apenas o hábito, o costume de ouvir a mesma história todos os anos poderia roubar de nós a gravidade e magnitude de tal encontro!
Crendo ou não, comungue mentalmente com os cristãos agora, e imagine que foi isso mesmo o que aconteceu: Deus compareceu, humilhado, diante de um orgulhoso tribunal político humano. Só pensar nisso dá um frio na espinha.
Há algumas semanas temos explorado as implicações políticas da grande história das Escrituras. Mas, como é Páscoa, daremos um saldo para o Novo Testamento espiando de perto esse espantoso diálogo entre o Filho de Deus e um procurador romano.
Jesus e a maldade política
De que é feita a maldade política?
O nazareno não marcou audiência com Pilatos, foi arrastado pra lá depois do estranhíssimo julgamento preliminar pelo Sinédrio. Esse julgamento nos interessa aqui.
Jesus indubitavelmente provocou as autoridades religiosas; embora as tenha provocado com a verdade, e nada mais. Expulsou os revendedores de artigos religiosos da cúpula político-religiosa do templo de Jerusalém que ocupavam com seus estandes o espaço destinado aos gentios (o que denunciava uma completa alienação da missão divina de Israel como povo de Deus). Além de desancar os saduceus, Jesus ainda atacou duramente a hipocrisia dos fariseus e sua exploração da fé popular por prestígio e recursos. Anunciou em alto e bom tom que a nação fracassara em sua missão de trazer piedade e justiça e que ela perderia seu lugar em breve.
Jesus, à beira da morte, tem a chance de dizer alguma coisa importante, na cara de um político importante
É certo que Jesus irritou muita gente. Provavelmente metade de Jerusalém sentiu-se insultada e não se comoveu nem um pouco com a prisão do homem – a verdade é que a maioria dos seus apoiadores àquela altura era gente da Galileia e de outras partes, que chegou com Jesus a Jerusalém cantando “Hosana” e deixando os locais intrigados. Logo eles escolheriam Barrabás.
E foi traído por um discípulo decepcionado, que esperava lucros e só recebera vergonhas. Os outros fugiram, também por medo e decepção. E assim Jesus foi parar no Sinédrio para responder por seus “crimes”, arrastado pelo ressentimento, pela inveja e pelo desejo de manter o establishment intocado pelos questionamentos do profeta galileu.
Mas isso tudo não seria suficiente; era necessário fazer algo a respeito da autoridade moral de Jesus, do contrário o julgamento não iria colar. E assim a cirurgia entrou em sua segunda etapa: como acusar e destruir a reputação?
Lá ele fora ridicularizado, ferido, ferido e xingado, num processo absolutamente doentio. Levado à força de armas, à noite, e furtivamente, num horário impróprio para ações políticas transparentes e ordeiras, num lugar fora do acesso público. O Sinédrio agia às pressas.
As acusações giravam em torno da identidade de Jesus: alegava ele ser o Messias, o herdeiro do trono de Davi? É claro que os anciãos não tinham interesse em saber se ele era ou não o Messias, mas se poderia ser plausivelmente acusado de sedição. O problema é que não havia nenhum indício de que Jesus organizara algum motim, ou tivesse qualquer envolvimento com os zelotes (um grupo político terrorista da época), ou que tivesse pretensões revolucionárias. Tentaram, então, arrancar de Jesus uma confissão: “tu és o Filho de Deus”? Jesus concorda, evidentemente. É claro que isso não poderia ser considerado crime, mas servia, para todos os efeitos.
A inveja, o ressentimento e o medo precisam de um aguilhão, uma arma de ataque político, e essa arma é frequentemente a mentira. Não a falsidade pura, mas uma interpretação mal intencionada e maligna do oponente. Um falso testemunho.
E assim Jesus foi levado a Pôncio Pilatos.
O Reino
Pilatos não era o pior dos governadores romanos, mas não era flor que se cheire. Governou a província romana da Judeia entre 26 e 36 d.C., com alguns episódios sanguinolentos de repressão às massas. Pilatos tinha autoridade militar, judicial e até mesmo para nomear o sumo-sacerdote de Israel; o Sinédrio se reportava diretamente a ele. Assim entendemos o porquê da farsa jurídica durante a madrugada: o Sinédrio se reuniu, basicamente, para “combinar” como Jesus seria apresentado a Pilatos. Mas no fim o assunto estava nas mãos dele mesmo.
Os líderes judeus certamente se aproveitaram do fato de que era Páscoa e a cidade estava apinhada de judeus para pressionar Pilatos, mas as acusações lhe pareceram evidentemente ridículas. João nos dá uma pista do quanto a coisa parecia forçada: “Se ele não fosse malfeitor... não o entregaríamos a ti” (João 18,30).
É claro que sim. A desculpa seria hilária se a situação não fosse tão trágica. “Você não está vendo nenhum crime, Pilatos; mas o crime existe porque nós estamos dizendo que existe. Você só precisa ceder ao nosso ‘combinado’. Nós sabemos o que fazer.”
Então um Pilatos claramente desinteressado em cooperar com os líderes judeus pergunta diretamente a Jesus: “És tu o rei dos judeus?” Com um simples “não!” Jesus estaria livre; não seria considerado uma ameaça pelos romanos. E não seria porque, efetivamente, ele nada fez para ser considerado assim. Esse fato, por sinal, se choca frontalmente com as visões de Cristo como um revolucionário político disfarçado de rabi.
É claro que Jesus não se considerava “o rei dos judeus” no sentido alegado pelos seus acusadores, que precisavam colocar sobre ele o crime de sedição. Mas também é claro que Jesus se considerava, sim, o Cristo e o Filho de Deus, no sentido verdadeiro, e isso estava muito além de qualquer processo revolucionário violento. Então, em vez de dizer o que as pessoas queriam ouvir, Jesus entra numa discussão do mérito:
“Então Pilatos retornou ao palácio, chamou Jesus e perguntou-lhe: Tu és o rei dos judeus? Jesus respondeu: Perguntas isso por iniciativa própria ou foram outros que te falaram a meu respeito?” (João 18,33-4)
A inveja, o ressentimento e o medo precisam de um aguilhão, uma arma de ataque político, e essa arma é frequentemente a mentira
Está claro que Jesus responderá a Pilatos, mas nos seus termos! Ele quer saber se Pilatos se interessa pelo mérito da questão. Mas Pilatos demonstra impaciência: “acaso sou judeu? O teu povo e os principais sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?” Em outros termos: “não entendo e não quero entender seus assuntos judaicos. Preciso de uma resposta direta, estritamente em termos da minha jurisdição!”
O preso não se comove: ele responderá, mas nos seus termos, se explicando segundo o mérito do assunto.
“Jesus respondeu: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Entretanto, o meu reino não é daqui.” (João 18,36)
Não há nada ambíguo ou evasivo na resposta de Jesus. Ele diz claramente que tem um reino, mas qualifica essa afirmação anunciando que esse reino não era da mesma natureza que o Império Romano. Não era um reino que resultasse do poder e da política dos homens. É impossível não nos lembrarmos, aqui, de nossa exploração do choque entre Deus e Babel, e de como Deus se mostrou inimigo do império. Aqui Jesus não está dizendo que seu reino não seria uma ameaça a Roma, em algum sentido, mas tão somente que seu reino não tinha origem terrena. Mas era um reino, com súditos, inclusive.
Quanto ao poder político, econômico e religioso estabelecido na Judeia, Jesus é claro como o dia: “não estou aqui para isso, e não me interessa”.
Pilatos pescou as implicações e retrucou: “Então, tu és um rei?” E então vem a fabulosa resposta de Jesus, tocando ali o âmago da questão.
A Verdade
“Jesus respondeu: És tu que dizes que sou um rei. Foi para isso que nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.” (João 18,37)
Pilatos queria uma pista, uma prova, uma confirmação de que Jesus era ou não o pretendente a rei que os judeus acusavam. Um sim ou não simples, claro e direito. Mas Jesus se recusa a responder-lhe assim, porque seu interesse primário não é fazer o jogo dos poderosos e se safar. Jesus insiste com Pilatos: “você é que precisa me classificar em termos administráveis; você não quer saber a verdade, mas apenas arrancar uma resposta da minha boca”.
No entanto, Jesus veio ao mundo precisamente para trazer a verdade. Ele veio dar testemunho da verdade, e quem deseja a verdade é irresistivelmente intrigado, atraído e desafiado pelas palavras de Jesus. Ele é rei, sim! Mas de um reino de verdade; e, enquanto as perguntas forem mentirosas, Jesus não poderá respondê-las; ele se recusa a respondê-las.
Jesus não respondia a perguntas erradas, especialmente quando desonestas; ele sempre recolocava os termos da conversa porque, se não fosse pela verdade, qual seria o ponto de dar respostas?
Esse era mesmo um traço recorrente da interação de Jesus com qualquer pessoa: elas lhe faziam perguntas, e ele devolvia outras perguntas. Se perguntavam “devemos pagar o imposto a César?”, Jesus respondia com uma pergunta: “de quem é essa efígie e essa inscrição?”. Ou: “Com que autoridade fazes essas coisas?” e ele devolvia: “O batismo de João era de Deus ou dos homens?” E assim por diante. Jesus não respondia a perguntas erradas, especialmente quando desonestas; ele sempre recolocava os termos da conversa porque, se não fosse pela verdade, qual seria o ponto de dar respostas? Impressionar os outros? Ganhar uma discussão?
E assim, no momento em que Jesus poderia simplesmente jogar o jogo da conveniência, ele se recusa. Pois ele veio ao mundo pela verdade. Há, sim, uma semelhança aqui com Sócrates, em seu desafio aos sofistas e às autoridades da cidade. Mas há uma diferença profunda: Jesus não é mero questionador das “verdades”, mas a própria prática da verdade. Sócrates vivia atrás da areté, mas Jesus era a sua presença.
Então Jesus, a testemunha da verdade, começa a se revelar mais claramente para Pilatos. Ele é um rei, mas de um reino da verdade, muito diferente de Roma ou do Sinédrio: “o meu reino não é daqui”. Evidentemente isso não era a garantia de que esse reino não constituiria uma ameaça. Porque Jesus diz, efetivamente, que veio para esse mundo como testemunha. Seu reino podia não ser “deste mundo”, mas efetivamente se comunicava com este mundo, fazia-se presente ali. De fato, não era uma ameaça militar, mas era uma enorme e perturbadora ameaça espiritual e moral, que em breve engoliria a todos: judeus, romanos e bárbaros. Em pouco tempo – segundo o calendário da fé – o Império Romano estaria de joelhos.
Pilatos não fazia ideia do que tinha diante de si, mas sabia muito bem o que não lhe interessava, em sua atividade política: a verdade.
“Então Pilatos lhe perguntou: Que é a verdade? E dito isso, saiu de novo para falar aos judeus. E disse-lhes: Não vejo nele crime algum. Todavia, tendes por costume que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa. Quereis que eu vos solte o rei dos judeus? Então todos responderam, gritando: Este não, mas Barrabás. Barrabás era um líder rebelde.” (João 18,38-40)
“Que é a verdade?” Disso é feita a pura política dos homens: poder, sem verdade. De Maquiavel para frente a intuição e o hábito tornaram-se ciência, mas sua nudez é incuravelmente agressiva e angustiante. São muitas e contínuas as crises nos círculos políticos, mas poucas coisas unem tão rapidamente os inimigos quanto a ameaça da verdade. Uns, nessa história, desejam suprimi-la ativamente; o Praefectus Iudaea quer apenas se omitir, e mal crê em sua existência.
Quando pessoas alienadas da verdade e descrentes do bem e da justiça governam, executariam o próprio Deus só para ter um feriado de Páscoa mais tranquilo
Sua pergunta lacônica e cínica é uma revelação pessoal. Ele teria o poder, ali, de fazer algo pela verdade; mas parece não acreditar nela. Há certo desespero e certo cansaço em sua resposta, que me faz pensar hoje em tantas pessoas em posições de autoridade que não acreditam nem em verdade científica, nem em imprensa, nem em filosofia, nem em padres ou Bíblias, e nem mesmo em um poder supremo. Devo dizer que quando tais pessoas – alienadas da verdade, descrentes do bem e da justiça – governam, executariam o próprio Deus só para ter um feriado de Páscoa mais tranquilo.
Mas seria Pilatos um cético? Um pirronista absoluto? Parece que não. De algum modo ele foi capaz de reconhecer que não havia crime em Jesus. Ele não apenas mostra clara consciência disso, mas também propõe soltar “o rei dos judeus” – nesse ponto já ironizando os acusadores de Jesus. É uma postura curiosa; dissemos acima que Pilatos estava cético, cansado da verdade, desinteressado nela; no entanto ele demonstrou clara capacidade de compreender que Jesus estava sendo acusado injustamente.
O que me faz pensar que é necessária uma sutil correção em nosso quadro psicológico. Pilatos não é aquele que não acredita na diferença entre mentira e verdade, de um ponto de vista epistemológico, mas que não acredita em sua força. A verdade é fraca demais. Ele sabe que ela existe, mas ela nada pode fazer, e por isso ele não quer perder tempo com ela. Por isso quer passar diretamente à ação, à práxis, ao julgamento utilitário.
Pilatos não é aquele que não acredita na diferença entre mentira e verdade, de um ponto de vista epistemológico, mas que não acredita em sua força
E, para garantir a paz e a tranquilidade de todos, o poder sem verdade e sem justiça soltará Barrabás, o ladrão e terrorista. Ele sabia pouco da verdade, mas sabia o suficiente, e enterrou o que sabia.
Assim, por comum acordo entre a violência e a omissão, e para manter a bola em campo, morre a verdade. De todas as vezes em que a banalidade do mal se manifestou, essa foi certamente a mais terrível; no entanto, do ponto de vista de Pilatos, era só mais um de seus pequenos tormentos diários.
Provavelmente a essa altura é que ocorre a Pilatos enviar Jesus para o rei Herodes Antipas, que dominava a região norte, sob autoridade romana. Afinal, Jesus era galileu; quem sabe a coisa não se resolvia por ele? Herodes estava em Jerusalém por conta das festas pascais, e tinha interesse em conhecer Jesus. O relato desse trecho do drama, omitido pelo evangelista João, encontra-se em Lucas 23. Mas Herodes é assunto para outro dia; basta-nos saber que o rei, decepcionado com o que encontrou, devolveu a batata quente para Pilatos.
O poder
Pilatos mandou, então, espancar Jesus, entregando-o a soldados toscos, acostumados a abusar do poder e fazer maldades. E foi assim ridicularizado: “salve, rei dos judeus!” Foi um gesto de ruindade, mas não apenas isso; logo depois ele traria Jesus para fora de novo, vestindo a coroa de espinhos e o manto de púrpura, para esfregar na cara dos judeus a sua própria maldade e o ridículo de seu gesto. “Ecce homo!”
Por que tal esforço? É claro que Pilatos a essa altura estava com medo; talvez um medo instilado por seu diálogo com o próprio Jesus. Embora não acreditasse na força da verdade, sabia muito bem de sua existência. Em vão instou os judeus a fazerem eles mesmos o serviço. Eles insistiam, e dessa vez suas palavras deixaram Pilatos apavorado:
“Ao vê-lo, os principais sacerdotes e os guardas gritaram: Crucifica-o! Crucifica-o! E Pilatos lhes disse: Levai-o e crucificai-o vós. Eu não vejo nele crime algum. Mas os judeus lhe responderam: Nós temos uma lei, e de acordo com essa lei ele deve morrer, pois declarou-se Filho de Deus. Ouvindo isso, Pilatos ficou ainda mais atemorizado; e entrando outra vez no palácio, perguntou a Jesus: De onde vens? Mas Jesus não lhe deu resposta alguma.” (João 19,6-9)
Pilatos sabia pouco da verdade, mas sabia o suficiente, e enterrou o que sabia
A essa altura, o que poderia ser apenas um receio evolui para um medo positivo. Sua pergunta, “de onde vens?” mostra o estado de perplexidade e ansiedade em que o homem se encontrava. Talvez ele estivesse apenas chateado na primeira parte da conversa; agora o ar está carregado de tensão, e o político está genuinamente preocupado. Como assim, “Filho de Deus?” As declarações anteriores “meu reino não é daqui” e “quem é da verdade ouve a minha voz” ganhavam volume crescente na mente de Pilatos. Mas elas ainda se tornariam um ruído ensurdecedor.
Jesus, no entanto, nega-se a responder. Por que ele não respondeu? Provavelmente, porque Pilatos buscava alguma outra resposta – um sinal de que Jesus representava interesses mundanos, algum movimento ou alguma força política, e não o próprio Deus. Mas Jesus já havia se pronunciado a respeito.
“Então Pilatos insistiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade tanto para te soltar como para te crucificar? Jesus lhe respondeu: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se do alto não te fosse dada; por isso, aquele que me entregou a ti incorre em pecado maior. Daí em diante Pilatos procurava soltá-lo.” (João 19,10-12)
Jesus foi condescendente com Pilatos, imprensado na parede pelo processo político e a ponto de ceder, mas nem por isso deixou de acusá-lo
A reação de Pilatos ao silêncio de Jesus é sincera e desesperada. De sua cadeira de procurador romano, ele a princípio desprezara toda a questão, confessando descrença na verdade. Mas a descrença começou a derreter como água diante da força da personalidade de Jesus Cristo e da possibilidade de ele, de fato, representar um reino invisível. Pilatos não era ignorante sobre os costumes e tradições judaicas, e certamente sabia a respeito da esperança messiânica.
E então ele dá a sua última cartada: o poder. “Veja, Jesus, eu tenho o poder. Prendo e solto, mando matar e permito viver. Você não pode simplesmente cooperar? É sua última chance de jogar pelas regras!” Mas a essa altura Pilatos sabe que havia algo mais em jogo. A concordância de Jesus não garantiria apenas que Pilatos encerrasse o assunto com os judeus, mas também que seus temores eram infundados, e ele tinha diante de si apenas um rabino teimoso. Se Jesus mantivesse o desafio, Pilatos teria de agir, mas com risco de cometer um grave erro.
É o momento em que Jesus faz uma segunda revelação: não há poder humano absoluto ou autônomo, e tanto faz se a autoridade política é usada para oprimir a verdade. Enfim, para Jesus “o alto” – isto é, Deus – realmente governa tudo, e Pilatos não é a última instância de apelação. A razão por que Jesus insiste em debater o mérito dos assuntos, recusando-se a jogar o jogo das politicagens, era que além da verdade e da justiça existe um Deus no céu.
Há também certa condescendência nas palavras de Jesus; é quase como se ele se compadecesse do sofrimento psíquico que tomara a alma de Pilatos: “sofra, mas não tanto; você está pecando, mas não é o pior de todos nesse circo de loucos”. A magnitude de Jesus Cristo se mostra não apenas nos grandes atos, mas em pequenos detalhes como esse.
Veja bem: Jesus foi condescendente com Pilatos, imprensado na parede pelo processo político e a ponto de ceder, mas nem por isso deixou de acusá-lo. E isso é deveras interessante! Formalmente temos Deus diante do procurador romano, prestando depoimento e sendo julgado; mas, para a sua surpresa, Pilatos descobre que ele é que está em um tribunal, e que o julgamento já foi passado sobre ele.
A essa altura Pilatos tem um quadro claro o suficiente diante de si: o reino de Jesus Cristo não é desse mundo, mas não no sentido de ser um reino etéreo, metafísico ou interior, mas no sentido de que não procede desse mundo, que não brota do mesmo chão e da mesma terra da qual nasceu Roma. O reino de Cristo não é, como Babel, um projeto terreno.
Sacerdotes judeus, soldados romanos, Herodes e o próprio Pôncio Pilatos eram todos conservos e comparsas do mesmo reino, o poderoso reino da mentira; e nesse reino Jesus não poderia permanecer
Mas isso não significa que ele seja externo, separado ou distante desse mundo; pois esse reino foi quem permitiu o poder de Roma, e autorizou o próprio Pilatos; e esse reino enviou o Cristo como testemunha da verdade. Esse reino é Jerusalém, no sentido divino, a antibabel, a cidade que “desce do céu”, como ensina o Apocalipse de João. E, se Jesus é o rei desse reino, o que pode fazer Roma contra ou a favor dele?
Depois da última declaração de Jesus, Pilatos fez de tudo para soltá-lo, mas foi confrontado pela dura fala dos judeus: “Se soltares esse homem, não és amigo de César. Todo aquele que se declara rei é contra César... Não temos rei senão César”. E Pilatos entregou Jesus para ser crucificado.
Ali estava a verdade, para além das maquinações políticas, dos ódios e das mentiras do Sinédrio: é claro que todos eles, sacerdotes judeus, soldados romanos, Herodes e o próprio Pôncio Pilatos, eram todos conservos e comparsas do mesmo reino, o poderoso reino da mentira; e nesse reino Jesus não poderia permanecer.
O Reino da Verdade e o seu poder
O que podemos aprender desse tremendo e histórico encontro de Deus com os poderes políticos? Entre tantas lições, prosseguirei diretamente para o mais importante: Reino e Império nos apresentam economias do poder completamente diferentes.
No Império o que importa é o poder puro e as mentiras que compõem o seu jogo sujo. Poder, mentira e império, nessa ordem. As mentiras do poder puro passam como verdades porque o poder é a força e a legitimidade para arbitrariamente esmagar o adversário, para destruir sua imagem, sua dignidade e até a sua vida. No Império os adoradores do poder fingem entre si, trocam mensagens ambíguas, concordam em manter o show.
No entanto, sabemos que tudo isso é vaidade. Não importa o que disseram o César, ou Alexandre, ou Atahualpa, ou Napoleão, ou Hitler, ou nossos presidentes, ou qualquer um dos grandes, dos homens do poder, as areias do tempo engolirão a todos eles com todas as suas obras, e mal haverá lembranças. Nenhuma torre de Babel alcançará o céu.
A revolução não importa, nem as utopias, nem a conservação das instituições, porque sem o bem, a verdade e a beleza os projetos revolucionários e conservadores são vaidade
No Reino se acredita na vitória da verdade, ou na veracidade e bondade como o poder supremo: Reino de Deus, verdade e poder político, nessa ordem. Nesse caso o poder político é só uma ferramenta, um embrulho, um veículo para a verdade. No Reino as palavras não são desperdiçadas em retórica sofista, mas para tornar explícitos o bem e o mal. Se Cristo ressuscitou dos mortos, como os cristãos celebram na Páscoa, a verdade não pode ser derrotada. Veritas vincit: Deus existe, e por isso a verdade prevalecerá contra todos os impérios. E porque Deus existe, a morte não importa; importa dar testemunho da verdade. A revolução também não importa, nem as utopias, nem a conservação das instituições, porque sem o bem, a verdade e a beleza os projetos revolucionários e conservadores são vaidade, “como o bronze que soa ou como o címbalo que retine”.
Os seguidores de Cristo podem, então, se realmente o quiserem, se dar a esse “luxo”, a esse santo desperdício de serem fracos, politicamente derrotados e até expulsos do jogo, praticando uma pura, consistente e sistemática política da verdade. Não é o que celebramos na Páscoa? Fazemos festa porque acreditamos nisso: que já veio o Reino da Verdade, com todo o seu poder, porque o Filho de Deus ressuscitou dos mortos.
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