Como se debate o sagrado?
Há algumas semanas interrompemos a nossa discussão sobre os temas da crítica do sagrado e do princípio protestante, por conta da avalanche de notícias sobre a Covid-19, e nos voltamos para o tema da crise generalizada da autoridade, que se espalhou como uma segunda praga através das instituições científicas, políticas e religiosas.
De certo modo, no entanto, não foi uma completa interrupção. Em vez de arrefecer, a pandemia fez explodir uma ampla crise religiosa. Segundo já comentamos noutro artigo, os choques entre o poder religioso e o poder temporal se iniciaram imediatamente, com ameaças de autoridades públicas à liberdade de culto, por um lado, e irresponsabilidade para com a saúde dos fiéis e da nação, por parte de líderes religiosos. Segundo a nossa tese, o amadurecimento do modelo colaborativo de laicidade, com Estado e igrejas cooperando pelo bem comum, é o único futuro aceitável para além dessa queda de braço.
Em todo caso, esses choques oportunizaram exatamente o fenômeno que vínhamos examinando: a crítica da prática religiosa e do sagrado do outro. Em particular, a crítica do sagrado evangélico, que andou ocupando o noticiário. De modo que vamos tomá-lo como ilustração para a questão dos critérios dessa crítica.
Ademais, sendo eu mesmo evangélico, será de bom tom começar a limpeza em casa. O teste primário para a crítica honesta do sagrado do outro é o criticismo da própria fé.
O sagrado evangélico: à guisa de exemplo
Consideremos, por exemplo, a chamada para o vídeo publicado pelo The Intercept em 27 de março: “Coronavírus: líderes evangélicos espalham charlatanismo e teorias da conspiração em cultos e vídeos”. Muito embora o veículo não teça críticas específicas às crenças e práticas cultuais desses líderes, certamente a sua atividade religiosa recente, em conjunto, é posta em xeque. O sagrado evangélico caiu na berlinda.
No dia 2 de abril, a jornalista Vera Magalhães reagiu duramente ao convite apócrifo que circulava em mídias sociais, a respeito de uma “Santa Convocação” de líderes evangélicos e ministérios pelo presidente para um “jejum nacional”: “Circo armado pelo presidente em entrevista. Desta vez, não terá como negar o óbvio. Quem apoia isso será igualmente responsabilizado se o país colapsar na pandemia”. Embora a convocação seja realmente problemática, pela manipulação política do sentimento religioso, há de se perguntar o quanto a jornalista entende sobre práticas religiosas evangélicas. Embora mal dado, no entanto, o alarme era necessário.
Outro artigo, também no The Intercept, em 14 de abril, trouxe a seguinte chamada: “Coronavírus: como as igrejas evangélicas estão se aproveitando da crise para ocupar o vácuo do Estado”. A peça lembra que os evangélicos relativizam mais a gravidade da pandemia do que o restante da população, segundo pesquisa feita pelo instituto Datafolha, sugere que algumas igrejas atuam socialmente de forma oportunista, levanta novamente o problema das declarações absurdas por líderes religiosos, e chega a entrar em questões de mérito, ao tratar a ideia de que a epidemia seria “uma vingança divina” como “charlatanismo” – o que não deixa de ser curioso. Essa declaração seria errada politicamente, moralmente ou teologicamente?
A articulista reconhece a necessidade de criticar “os efeitos perversos causados pela ganância de alguns pastores” sem cair em generalizações e preconceitos, “demonizando todo um universo evangélico”. Supõe-se que uma parte do movimento possa e, talvez, deva ser demonizado, a partir do ponto de referência moral e político do veículo; por sinal, um pouco adiante no texto alguns religiosos de esquerda são, por assim dizer, “angelizados”.
Mas seria isso correto? Podemos dizer que há um “falso” sagrado, ou um sagrado abusivo, ou doente, ou pobre? Como se chega a tais conclusões?
Se, de fato, crenças e práticas religiosas de evangélicos se prestam a usos politicamente perigosos, como a confusão entre a autoridade presidencial e a autoridade religiosa, ou criam risco para a saúde pública, ou legitimam a violência policial, ou enfraquecem a legitimidade pública da ciência, é preciso admitir a legitimidade da crítica ao sagrado evangélico. Talvez até mesmo existam, no movimento evangélico, algumas coisas angelicais e algumas coisas realmente terrenas ou até demônicas.
Logos, pathos, ethos, dentro, fora
Críticas ao sagrado podem ser levantadas do ponto de vista de sua consistência interna e razoabilidade, ou seja, do seu significado; do ponto de vista de seus efeitos sobre a existência religiosa, os sentimentos morais e a vida emocional, ou de seu pathos; e do ponto de vista de seu impacto mais amplo na sociedade, ou de sua contribuição ética. A crítica pode também ser imanente, ou interna, e transcendente, ou externa.
Consideremos a crítica levantada no The Intercept, por exemplo; seu foco principal se encontra nos riscos para a saúde pública e no uso da movimentação política por caciques eclesiásticos. Digamos que essas críticas problematizam o ethos evangélico. O ponto principal da peça, declarado com muita clareza, é destacar a importância do movimento evangélico para a política atual, e a necessidade incontornável de abrir diálogo com ele; para tanto, espera abrir uma cunha moral no movimento.
Críticas à ética cristã, do ponto de vista de seus princípios, estão há muito disponíveis. Nietzsche, por exemplo, o pai dos pós-modernistas, a criticou como “moralidade de escravos”. Dependendo de suas opções religiosas e políticas, alguém pode ver a tese de Max Weber sobre a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo como um elogio ou uma crítica à moralidade calvinista. Um católico romano pode ver na tese de Durkheim sobre o suicídio como um ponto a favor da moralidade mais comunitária dos romanistas. E estudiosos protestantes de Francis Fukuyama podem celebrar a ligação que ele estabelece entre altos níveis de capital social e confiança pública e a presença protestante. Discussões sobre a contribuição histórica de uma moralidade religiosa para a cultura e a história de um país podem ser feitas a posteriori.
Em direção oposta, o teólogo inglês John Milbank compôs uma magistral crítica teoria social moderna como uma série de tecnologias sociais de violência, erigidas em substituição à doutrina social cristã. Sua obra Theology and Social Theory (2006) tornou-se um clássico, e oferece uma crítica interna às alternativas secularistas ao cristianismo.
Podemos dizer que há um “falso” sagrado, ou um sagrado abusivo, ou doente, ou pobre? Como se chega a tais conclusões?
A crítica do The Intercept não se dirige à doutrina moral cristã, exatamente, como é o caso da crítica de Nietzsche, mas a certa práxis estabelecida em alguns setores. Naturalmente, críticas éticas e políticas podem ou não ter relação com a verdade daquela religião. Uma religião pode ser imoral porque viola seus próprios padrões internos, o que uma crítica interna pode revelar; mas outra religião pode ser imoral exatamente porque é consistente com sua doutrina imoral, e isso demandaria um tipo de crítica externa.
Entre as respostas cristãs às críticas naturalistas e pós-modernistas da moralidade cristã, destaco outro clássico: As Fontes do Self, do canadense Charles Taylor, à época professor na Universidade de Oxford. Taylor demonstra, com grande habilidade, que o discurso moral moderno tem ideais elevados que não é capaz de sustentar sozinho, dada a sua dívida para com o Cristianismo. Ao deixar a grande tradição, o Self moderno tornou-se carente de fontes morais.
A crítica pode se dirigir ainda ao pathos do movimento religioso, questionando sua piedade, seu sentimento de mundo e seu espírito. Será que essa religiosidade é pacificadora ou conflitiva? Ela promove ódio ou cooperação? Vincula-se ao conjunto dos sentimentos morais humanos ou apenas a algumas fontes da vida moral? É psicologicamente saudável?
Lançando o olhar para o passado, é inevitável lembrarmos, aqui, a crítica freudiana à religião, como força infantilizadora, mecanismo de repressão sexual e neurose coletiva. Embora não sejam objeções difíceis de responder, tornaram-se bastante populares. E, se nos voltarmos para os pensadores contemporâneos, eu citaria aqui a interessante crítica do filósofo francês André Comte-Sponville, em A Felicidade, Desesperadamente (2015), à concepção cristã de felicidade, que ele considera inviável, por depender do impossível conceito de “esperança”. A crítica de Comte-Sponville se dirige abertamente à doutrina cristã de felicidade, ou seja, ao pathos do Cristianismo.
Mas a crítica do pathos também pode ser feita em ambas as mãos. Em resposta à crítica freudiana, Philip Rieff construiu sua impressionante crítica da mente terapêutica em The Triumph of Therapeutic (1966), como uma forma degradada de consciência. Num um artigo no mês de janeiro, sobre o especial do Porta dos Fundos, fiz a crítica da crítica secularista à moralidade cristã, empregando a Teoria dos Fundamentos Morais de Jonathan Haidt para interpretar a peça. Na visão de Haidt, o discurso moral de um grupo sempre dá expressão a sentimentos morais. Noutro momento já critiquei o pathos da esquerda evangélica brasileira: “Sobre o dilema estético-sentimental da política evangélica contemporânea”.
Uma crítica recente ao movimento evangélico norte-americano, e que ganhou enorme importância, foi apresentada por James Davison Hunter em To Change the World: the irony, tragedy and possibility of Christianity in the late modern world (2010). No livro, que merecerá ser revisitado em nossa coluna, o autor aponta cirurgicamente o problema do ressentimento e do desejo de controle, como uma das fontes ocultas de motivação da presença política evangélica em anos recentes. Esse pathos ressentido e revanchista certamente foi explorado e ampliado pelo bolsonarismo, e aparentemente infectou amplos setores do evangelicismo brasileiro.
Vale notar que a crítica do pathos religioso pode também ser interna ou externa; pode-se medir a consistência da experiência religiosa e emocional com a doutrina e a tradição, ou avaliá-la por benefícios psíquicos. Mas essas críticas podem convergir; assim, a crítica do ressentimento na religião pode ser tanto interna quanto externa.
Uma crítica de mérito pode ser levantada, também, problematizando o próprio sentido do discurso religioso. E aqui não faltam exemplos, da antiguidade à pós-modernidade. Uma das mais importantes, naturalmente, é a que une Feuerbach e Marx: a crítica da religião como uma representação invertida da realidade material, na qual não há Deus. Ateístas positivistas e não marxianos criticam a inteligibilidade do discurso religioso; e ateus epistemológicos negam que a crença em Deus seja verdadeira, mesmo que tenha significado. Mas, à parte os ateístas, não faltam críticas à consistência interna da crença cristã, independentemente da existência de Deus.
Mas todas essas críticas são externas e transcendentes, no sentido de que buscam avaliar a fé “de fora”. Estar na fé não esgota, no entanto, a tarefa crítica. Em primeiro lugar, porque a fé ainda precisará chegar a termos com a razão. Questões sobre a existência e a inteligibilidade da crença em Deus têm amplo espaço na tradição cristã, não apenas no medievo, com nomes como Anselmo e Tomás, mas também, e recentemente, na tradição evangélica, como em Alvin Plantinga e Richard Swinburne. E, em segundo lugar, porque o conjunto das ideias, práticas e instituições religiosas ainda precisa ser constantemente avaliado do ponto de vista de sua consistência com as crenças religiosas mais fundamentais acerca de Deus, do humano e do mundo. Nesse ponto a crítica apresenta seu caráter profético-protestante que destacamos na parte 1 de nossa discussão.
Charles Taylor demonstra que o discurso moral moderno tem ideais elevados que não é capaz de sustentar sozinho, dada a sua dívida para com o Cristianismo
Foi o que procurei fazer num artigo de março: “O Nome de Deus no governo Bolsonaro: uma crítica teológico-política”. Anos atrás apresentei também uma crítica de mérito aos evangélicos progressistas, durante a controvérsia da “Cruz de Espinal”. Nesse caso, progredimos para juízos teológicos valorativos, sobre a qualidade de religiosidade e de representação do cristianismo promovida por movimentos políticos de motivação religiosa. Nesses momentos, estamos lidando com o que pode ser chamado, grosso modo, de teologia política.
Críticas de tonalidade teológica contra o governo Bolsonaro têm recebido algum espaço na imprensa brasileira; Juan Arias, do El País, por exemplo, já descreveu o deus de Bolsonaro como um “estranho Deus das armas”, que não seria o Deus cristão, e como um deus “obsessivo e politicamente incorreto”. Arias apresenta um exemplo de crítica teológico-política a partir de uma tradição de esquerda e, é preciso dizer, afastada das ortodoxias protestante e católico-romana.
Um discurso religioso ou de coloração religiosa pode considerado ruim ou questionável porque não tem significado, ou é internamente inconsistente, ou porque não tem corroboração racional, ou porque parece ser falso. Assim, enquanto a crítica interna ou imanente pode dizer que o deus do bolsonarismo não é o deus cristão, mas um ídolo, a crítica externa ou transcendente pode dizer que a divindade não existe ou não guarda qualquer relação com a atividade política.
Todas essas linhas de crítica podem ser lançadas contra o movimento evangélico e contra amplos setores do catolicismo romano, hoje. Pode-se questionar a racionalidade de suas crenças, por exemplo, e particularmente sua atitude pouco amistosa com autoridades científicas. Pode-se questionar o descuido com o interesse público, e também o elemento revanchista presente em alguns de seus setores.
Contra e a favor dos evangélicos
As abordagens críticas sugeridas acima poderiam ser estendidas a qualquer religião brasileira: romanismo, umbanda, candomblé, cultos de terreiro em geral ou kardecismo; e também às religiões seculares ocidentais, como o marxismo e os movimentos identitários contemporâneos, como o movimento LGBTI+. Suas narrativas fundadoras, absolutos espirituais e hiperbens (Charles Taylor) podem ser problematizados, bem como seus sentimentos de mundo, doutrinas de felicidade e suas práticas éticas e políticas. Quando essas críticas atingem o sagrado explícito ou implícito que integra certo mundo simbólico e espiritual, assumem caráter propriamente teológico. Por essa razão, vale dizer, é possível interpretar teologicamente movimentos políticos em geral, incluindo os que alegam ser puramente “laicos”.
Mas e quanto ao movimento evangélico, especificamente? De minha parte, não considero nenhuma das críticas acima como definitivas ou fatais. Sustento que as crenças principais dos cristãos evangélicos são racionalmente defensáveis, e que suas falhas no campo da moralidade e do pathos não são derivadas da própria fé cristã, resultando antes de um processo de corrupção e afastamento da substância do Cristianismo.
Isso não significa que a fé evangélica não apresente fragilidades internas, em sua forma de apreensão e expressão do cristianismo. Certamente que há, no evangelicismo, como no protestantismo histórico, no romanismo e na ortodoxia oriental, falhas arquitetônicas. O Cristianismo é uma família de irmãos imperfeitos. Daí o amplo espaço para complementaridade entre as diversas expressões cristãs. Dentro do movimento evangélico, especificamente, suas versões reformadas, holiness, neoevangélicas, pentecostais e carismáticas têm pontos de tensão e também se corrigem mutuamente.
Assim é preciso admitir, com toda a honestidade, que falhas eclesiásticas históricas e, talvez, algumas falhas arquitetônicas tenham permitido que o evangelicismo brasileiro oferecesse pouca resistência a radicalismos de extrema-direita e admitido manter o apoio a Bolsonaro mesmo diante de um conjunto de atitudes errático e incompatível com o Cristianismo. A associação jocosa, por exemplo, da imagem de alguns líderes evangélicos com o infame “gesto da arminha” e a força letal do Estado claramente banaliza a morte, e não deve receber condescendência. Há algo demônico ali.
O Cristianismo é uma família de irmãos imperfeitos
Naturalmente, um julgamento mais assertivo sobre os descaminhos do evangelicismo brasileiro dependeriam de um comprometimento insistente desse movimento com o governo, apoiando práticas não apenas sub-cristãs, mas claramente anticristãs, ou da manutenção de um apoio servil e sem qualquer crítica ou questionamento.
O jogo ainda está em pleno desenvolvimento; mas meu próprio palpite, que desenvolverei em outras oportunidades, é de que o evangelicismo brasileiro é muito subjetivista e pouco cosmológico ou católico. Isso o torna bastante atraente em uma sociedade afetivizada e centrada no Self; mas também lhe rouba categorias críticas para julgar o processo histórico. O evangélico típico tem uma experiência da graça de Deus, mas não vive em um cosmos teísta e sob uma lei divina. Faltam-lhe, então, vitaminas importantes.
É possível que alguns leitores tenham críticas ao evangelicismo que, em sua opinião, são realmente fatais. Assim como eu considero fatais diversas críticas ao secularismo, às espiritualidades identitárias, e às religiões de matriz africana, por exemplo. Mas a crítica do sagrado pode ter seu uso mesmo quando os diferentes não entram em acordo. Afinal, mesmo quando o adepto de uma crença não considera certa crítica como suficiente para destruir a fé, é possível ainda que ele leve a sério essa crítica e busque reformar a vida intelectual e religiosa de sua comunidade. Nesse sentido, a crítica do sagrado pode cumprir uma importante função pública, em uma sociedade plural. Pode, até mesmo, inspirar uma “concorrência do bem”, em que cada sistema de espiritualidade se vê obrigado à autocrítica.
Passemos aos finalmentes: em defesa do movimento evangélico, menciono que o apoio de grande parcela dos evangélicos ao governo não é incondicional, e que o debate interno sobre como responder a seus gestos de afastamento da fé cristã vem aumentando. O hábito de debater teologia e moralidade, o sentido de responsabilidade pela presença cristã pública, e a noção crítica de idolatria política, a qual tem progressivamente ganhado espaço no movimento evangélico, podem ajudar a manter viva a chama do princípio profético-protestante, e impedir que a verdadeira catolicidade cristã seja substituída por uma hegemonia de extremos políticos.
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