O presidente da República, Jair Bolsonaro.| Foto: Joédson Alves/EFE
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“Dei o nome de ‘oferta do bruxo’ ao processo pelo qual o homem cede objeto atrás de objeto, e finalmente a si próprio, à Natureza, sempre em troca de poder... Tanto para a bruxaria quanto para a ciência aplicada, o problema é como subjugar a realidade aos desejos dos homens...” (C. S. Lewis, A Abolição do Homem)

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“Portanto, eu, Nabucodonosor, agora louvo, exalto e glorifico ao Rei do céu; porque todas as suas obras são corretas, e os seus caminhos, justos, e ele pode humilhar aqueles que vivem orgulhosamente.” (Daniel 4,37)

Ao longo da campanha presidencial de 2022 ouvimos inúmeras vezes declarações sobre qual seria a vontade de Deus para o país, mas neste domingo ela finalmente se revelou: em 30 de outubro, dia do Senhor, a providência divina removeu Jair Messias Bolsonaro e elevou Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência do Brasil.

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E, deixando clara a sua soberania, para ambos os lados da disputa, o Senhor concedeu a Lula uma vitória muitíssimo apertada, a mais apertada desde a redemocratização: mísero 1,8% dos votos. Num sentido, é como se Bolsonaro houvesse sido derrotado “por nada”, e Lula houvesse vencido “por nada” ou quase nada. Brancos e nulos somaram 5,7 milhões, muito mais que o dobro da vantagem de Lula; abstenções foram 32 milhões. Como muitos observaram, o país estava muito dividido e seguiu ainda mais dividido; houve uma vitória de números, mas não de razão pública, de convergência, de um sentido coletivo.

Não foi o Nordeste que derrotou Bolsonaro. Foi Bolsonaro quem derrotou Bolsonaro

Considerando a intensidade dos clamores de evangélicos e católicos conservadores, tem-se a impressão de que Bolsonaro perdeu porque Deus não fez questão mesmo. Pois Ele bem que poderia ter dado um empurrãozinho final, se quisesse... Mas Ele não deu, porque não quis.

Mas o que cabe nesse sumiço divino?

Por nada... e por tudo

Ao microscópio uma gota d’água é um mundo. E o olhar apurado mostrará que esse “nada” que derrotou Bolsonaro foi, na verdade, muita coisa. No Nordeste e Norte, Lula obteve as vitórias esperadas; no Sul, Bolsonaro reinou. Mas foi no Sudeste que a coisa se definiu, no que foi chamado de “Triângulo das Bermudas de Bolsonaro”: entre 2018 e 2022 o presidente perdeu 11,4 pontos porcentuais, caindo de 65,5 milhões para 54,1 milhões de eleitores. Nordeste? Lá, Bolsonaro cresceu pouco (130 mil eleitores a mais), mas cresceu. Ou seja: não foi o Nordeste que derrotou Bolsonaro. Foi Bolsonaro quem derrotou Bolsonaro.

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Mas o que fez o homem cair tanto? A esquerda alega que ele é contra os direitos humanos, que é racista, machista, contra a democracia e outras prendas; no entanto, essas acusações são velhas, anteriores a 2018. Elas continuam sendo o que são: sermões para convertidos, sem impacto eleitoral. Além disso, houve melhorias na economia, no emprego e na segurança pública, e o fato de que a direita teve um bom desempenho nas eleições para os estados, Câmara e Senado sugere que não houve uma migração importante de eleitores para a esquerda.

O aumento da rejeição só pode ter vindo de fatos novos, saliências ausentes em 2018, que vulnerabilizaram o próprio presidente, e que se tornaram oportunidades de exploração política pela esquerda.

De início houve uma articulação feroz das esquerdas e de grandes veículos de mídia, como o Jornal Nacional, contra a pauta dos “costumes”. A ministra Damares Alves foi objeto de um atroz assassinato de reputação; esses temas, no entanto, foram precisamente os que elegeram Bolsonaro e, com o andar da carruagem, tanto a esquerda quanto o jornalismo profissional abandonaram quase por completo essa linha de ataque. O que fez toda a diferença foi o surgimento de duas falhas fatais na armadura bolsonarista.

A seca e os enormes incêndios no inverno de 2019 serviram de gatilho para uma primeira e promissora linha de ataque: foram mais de 161 mil focos de incêndio na Amazônia, 45% a mais que em 2018. A imprensa usou isso para lançar o holofote sobre o governo, que se mostrou incapaz de dar uma resposta convincente. A política ambiental de Bolsonaro punha, por assim dizer, “lenha na fogueira”. Ele não apenas havia dado carta branca a Salles em seus esforços para enfraquecer a fiscalização ambiental (os autos de infração caíram 30% nos primeiros dois anos de governo) e quiçá relaxar as regras de proteção (“ir passando a boiada, e mudando todo o regramento”), como atacou em público o Ibama e o ICMBio – uma impropriedade. Até mesmo os gastos discricionários dos institutos foram reduzidos. Isso teve efeito objetivo, com aumento das atividades de grileiros, do garimpo e de madeireiros ilegais, e uma curva de ascensão consistente no desmatamento da Amazônia legal a partir de 2019, segundo os dados do sistema Desmatamento em Tempo Real do Inpe. O aumento do desmatamento chegou a 47% nos dois primeiros anos.

Com isso, a imagem do governo Bolsonaro foi alvo de intenso bombardeio nacional e internacional nos seus dois primeiros anos, flagelando seu notório descuido com a questão ambiental. Essa insensibilidade com o tema da conservação segue sendo partilhada pelo bolsonarista devoto, mas alienou muitos corações e muitas mentes, elevando significativamente a rejeição ao presidente. E a recalcitrância bolsonarista nesse assunto é notória; Salles, em entrevista nesta semana ao Poder 360, perguntado sobre uma autocrítica de sua passagem pelo cargo, mencionou vagamente o problema da má comunicação (culpando a esquerda) e destacou seu acerto com o Marco Legal do Saneamento, mas nada admitiu sobre a retórica anticonservação que grassava nos meios bolsonaristas com incentivo da Presidência.

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Em 2020 eu fui apenas um dos muitos que fizeram a mesma advertência: o fracasso de Bolsonaro em unir a nação durante a pandemia selaria o destino de seu governo

Mas o pior de tudo foi, realmente, o trato da pandemia de Covid-19, desautorizando instituições científicas, minimizando a gravidade da doença, permitindo “o caos de pequenos autoritarismos”. Como já observei em outro artigo, nada disso autoriza acusar Bolsonaro de “genocídio”, o que é realmente uma pecha ridícula, mas não cabe negar que o comportamento obtuso do presidente tenha estimulado comportamentos de risco, elevando o número de fatalidades, e atitudes insensíveis entre seus apoiadores. Quem se esqueceria das aglomerações em Brasília e alhures, da recusa da máscara e da vacina, da zombaria de gente se asfixiando e das horrendas dancinhas com caixões em praça pública? O fato é que essas barbaridades comunicacionais alimentaram gratuitamente os ressentimentos de muitas pessoas contra o presidente. Eu mesmo testemunhei inúmeros casos desse tipo.

Parte do problema é realmente o que Salles admitiu, obliquamente: uma comunicação ruim, que ele relacionou ao esgarçamento da vida política provocado pela esquerda. Mas é evidente que a direita bolsonarista, a partir do antigo núcleo ideológico do governo, adotou alegremente um estilo rude e agressivo de comunicação, em linha com seu espírito geral de “guerra cultural”. Esse estilo conflitivo piorou o que já era ruim, e inviabilizou qualquer diálogo racional nesses dois campos.

Em 2020 eu fui apenas um dos muitos que fizeram a mesma advertência: o fracasso de Bolsonaro em unir a nação durante a pandemia selaria o destino de seu governo. Eu me comuniquei abertamente sobre isso com meus amigos em Brasília. Quando apontei esses erros publicamente em artigo na minha coluna (“Bolsonaro sabotou o combate à pandemia?”) fui duramente atacado por bolsonaristas. Eu disse explicitamente que ele não seria reeleito, e aí está o resultado.

Adicionalmente, em janeiro de 2021 eu mencionei também, em artigo, que a questão ambiental poderia derrotar Bolsonaro em 2022, considerando a atitude positiva dos cristãos brasileiros em relação à causa da conservação. Novamente, a reação bolsonarista foi a pior possível. Quanto repeti a nota na semana passada, lembrando essa grande falha do governo Bolsonaro, fui novamente achincalhado pelos bolsonaristas.

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Uma grande parcela da direita e dos evangélicos segue fantasiando que Bolsonaro fez tudo certo, que a culpa da derrota foi do STF, do Nordeste, dos metacapitalistas. Pura tolice. Até mesmo os excessos do STF seriam insuficientes para derrotar Bolsonaro, se ele não houvesse aumentado seus níveis de rejeição pelo eleitorado. Lembrem-se: foram apenas 2 milhões de votos.

A direita não poderá avançar enquanto não entender seus erros, que consolidaram a grande rejeição ao bolsonarismo: a irresponsabilidade com a saúde pública e a leniência com o desmatamento, sustentados por pura teimosia e conflitividade.

Pró-vida pela metade

Tenho algo mais a dizer sobre esses dois temas, pandemia e desmatamento. São questões que atingiram diretamente os sentimentos morais das pessoas, diferentemente de questões mais técnicas sobre o bom governo. O bolsonarismo arvorou-se defensor da vida desde a concepção, antiabortista. No entanto, a união nacional para enfrentar uma doença mortal, que atinge principalmente idosos e pobres, é também uma questão de ética da pessoa e da vida. Sem o mesmo peso antropológico, mas não menos importantes, são as questões do desmatamento, da perda de biodiversidade e da mudança climática.

Não se trata de decidir se uma árvore é tão importante quanto um nascituro; é claro que não é. Mas esse é um falso dilema; sem árvores não haverá bebês. C. S. Lewis diz, em A Abolição do Homem, que uma ciência regenerada “não faria nem mesmo com minerais e vegetais o que a ciência moderna ameaça fazer com o próprio homem”. Há uma continuidade moral no respeito à mais importante das criaturas de Deus, até à menos importante delas, que pode ser um simples vegetal. E há uma hipocrisia quando a paixão para salvar bebês coexiste com dancinhas do caixão, em plena pandemia, e uma gelada indiferença com a destruição do patrimônio biológico nacional.

Lewis chama isso de “oferta do bruxo”. A oferta do bruxo é a disposição de vender qualquer coisa para aumentar o poder. Começa vendendo objetos inanimados, depois os vivos, e depois vende a própria mãe. Ela se manifesta na crença idólatra na tecnologia, na bioética ateísta, no movimento dos “direitos reprodutivos” (abortismo) e na engenharia social da família feita por militâncias judiciais progressistas. Mas se manifesta também quando a economia não pode ser desacelerada e as mortes de idosos são calculadas como “efeitos colaterais”, e quando o desenvolvimento econômico nacional justifica a destruição ambiental. É a mesmíssima bruxaria.

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Há uma hipocrisia quando a paixão para salvar bebês coexiste com dancinhas do caixão, em plena pandemia, e uma gelada indiferença com a destruição do patrimônio biológico nacional

E este foi um dos lugares (embora não o único) no qual o bolsonarismo mediano se tornou o vetor de uma esquizofrenia profunda e inédita nos ambientes evangélicos: angelical na luta antiaborto, infernal na consideração sobre as mortes na pandemia e sobre o futuro ambiental do Brasil e do planeta.

Vejo algo bastante irônico aqui: Marina Silva, campeã da conservação ambiental, derreteu-se politicamente a partir do dia em que, no debate com Bolsonaro, foi ambígua com a pauta antiaborto. Pagou caro, eleitoralmente. Mas agora, com Bolsonaro derrotado, entre outras razões, por sua recalcitrância nesse tema, Marina Silva voltará à pasta do Meio Ambiente. Eu me pergunto se Marina ou Bolsonaro aprenderão a lição ou seguirão batendo suas cabeças.

A derrota de Bolsonaro é uma chance para a igreja

A eleição de Lula será boa para o Brasil? Duvido, mas posso estar errado. Em alguns aspectos, Lula foi e provavelmente seguirá ruim, como em segurança pública e identitarismo; em outros, como investimento em ciência e conservação ambiental, será com certeza melhor que o finado governo. Talvez modere o tom e seja mais centrista, aproximando-se dos evangélicos. Esperto como ele é, talvez reconstrua politicamente o lulismo e deixe a direita fora da Presidência por mais oito anos.

No entanto, estou com Agostinho de Hipona no julgamento global das esperanças e temores históricos: a prioridade divina nunca está com o destino de nações, reinos e impérios. Enquanto pagãos acusavam os cristãos pela crise do Império Romano, Agostinho lembrava que a Cidade dos Homens, a Civitas Mundi, cairá a seu tempo e inevitavelmente, e que até lá, a Cidade de Deus seguirá, por todo esse saeculum, misturada à primeira. Mas é certo que o compromisso dos céus com a Civitas Dei permanecerá inabalável.

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Numa ótica agostiniana o Brasil não importa, num sentido último. Importa o povo de Deus, que por sua dupla cidadania também pertence a essa nação terrena. A igreja de Jesus existia antes de o Brasil nascer e existirá depois; e isso não deixa espaço para exageros patrióticos. “A nossa pátria está nos céus” – dizia Paulo, o cidadão romano, aos orgulhosos membros da colônia romana de Filipos. E, aos que tem dúvidas sobre as prioridades divinas, lembremos o que disse Paulo aos próprios romanos:

“Sabemos que Deus faz com que todas as coisas concorram para o bem daqueles que o amam, dos que são chamados segundo o seu propósito. Pois os que conheceu por antecipação, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.” (Carta aos Romanos 8,28-29)

Vamos assumir que esses que amam a Deus, a igreja de Cristo, correspondam de fato a uma parcela da cristandade brasileira, ou a seu núcleo duro; suponhamos que uma parcela significativa dos cristãos professos seja cristã de fato (o que pode, naturalmente, estar errado). Boa parte desse grupo apoiou Bolsonaro, absteve-se, ou votou reticentemente em Lula. Uma parcela pequena desses que votaram em Lula é lulista, e uma parcela menor ainda seria composta de esquerdistas convictos – todos sabem que esse grupo compõe uma minúscula minoria. Nesse caso, parece-me que uma grande e influente parcela dos cristãos foi derrotada nas urnas, no último domingo.

Mas, se todas as coisas concorrem, conjuntamente, para o bem dos que amam a Deus, devo entender, agora, que a providência revelou sua vontade, que a derrota de Bolsonaro foi uma coisa boa, seja diretamente, seja indiretamente (porque contribui para algum quadro que favorece o plano divino para o seu povo). “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”, é o que diz Paulo logo depois, no mesmo trecho da Carta aos Romanos. Isso não significa, evidentemente, que os crentes possuam uma invencibilidade incondicional; significa que a boa vontade de Deus em relação a eles não pode ser derrotada por ninguém que atente contra ela.

Parece-me possível e até provável que Deus tenha derrotado a vontade política majoritária dos evangélicos para preservar o Seu Nome e dar ao Seu povo uma oportunidade de repensar os seus caminhos

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Mas e quando a vontade dos crentes atenta contra eles mesmos? Quando, por alguma razão, eles tomam o caminho errado, seja por má vontade, seja por pura ignorância? Quando eles, por exemplo, aceitam a oferta do bruxo? Nesse caso, a boa vontade de Deus os derrotará. E isso se repete na história cristã, tanto na dos indivíduos quanto das comunidades de fé: Deus derrotará toda resistência contra a Sua vontade, pelo bem do Seu Nome e do Seu povo.

Por isso venho aventando essa possibilidade: que Deus tenha realizado um ato de libertação e de graça, fechando o caminho para Bolsonaro. Parece-me possível e até provável que Deus tenha derrotado a vontade política majoritária dos evangélicos para preservar o Seu Nome e dar ao Seu povo uma oportunidade de repensar os seus caminhos. Pode ser que Deus tenha derrotado os evangélicos para livrá-los de um casamento eterno com o conservadorismo nacional, e abençoá-los com uma revisão de sua consciência missionária e de seu imaginário ético e político. Nesse caso, a derrota de Bolsonaro pode ter sido um sinal do cuidado e proteção de Deus com Seu povo.

Mas que oportunidade seria essa? A oportunidade de abandonar uma moralidade cristã esquizofrênica, que transforma a sagrada bandeira antiaborto em um ás-de-copas capaz de justificar a destruição dos limites entre a igreja e a política partidária, e que tolera um espírito anticristão da guerra total. A oportunidade de integrar a ética cristã da vida, do corpo e da família com uma defesa universal da vida, incluindo a saúde pública e os biomas brasileiros. E o que recomendo aqui, meus amigos, não é nada diferente do que já consta, por exemplo, na Doutrina Social da Igreja Católica e da reflexão ética de muitos eticistas protestantes.

Se a derrota de Bolsonaro permitir que as igrejas repensem as suas agendas morais e a sua missão, graças a Deus por ela.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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