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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Deus e a justiça pública

Mosaico da Arca de Noé na Basílica de São Marcos, em Veneza.
Mosaico da Arca de Noé na Basílica de São Marcos, em Veneza. (Foto: Wikimedia Commons)

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A presença da religião na vida pública brasileira tornou-se uma questão incontornável. Motivo de alegria para alguns, e de preocupação para outros, é frequentemente objeto de interessantes estudos sociológicos e políticos. Interessantes e, no mais das vezes, inócuos do ponto de vista prático. Tipicamente, essas investigações querem examinar o fenômeno “por fora”.

Mas e quanto ao que ele significa “por dentro”? Parece-me surpreendente que o tema da teologia política siga ainda relativamente ignorado entre formadores de opinião sobre a política brasileira. Perguntar sobre o mérito da questão – a relação entre Deus, a fé e as coisas públicas – é o único meio de entender a coisa “por dentro” e de adotar medidas “clínicas” em busca do bem comum.

Na semana passada demos a largada, em nossas meditações em teologia social e política, com a extração de três grandes temas éticos na abertura do livro de Gênesis: Imago Dei, trabalho e família. Juntos, eles comunicam a perspectiva hebraica sobre a vocação humana de um sacerdócio real no “templo” da criação; o ser humano como amigo de Deus e representante de seus interesses no mundo.

Hoje nosso assunto é a compreensão teológica do Estado e a questão da justiça pública.

As três regiões da felicidade

Dos três temas supracitados, que juntos dão forma à vocação humana, derivamos uma compreensão das condições básicas da felicidade humana: a espiritualidade e o reconhecimento da sacralidade da vida humana, tendo, entre suas expressões, a ideia de dignidade e de direitos humanos; a socialidade enraizada no casamento e na família, como ponto de referência para a constituição de comunidades cooperativas, ricas em capitais sociais e morais; e o trabalho não alienado, com uso do poder formativo humano para a produção do bem comum, sem exploração do trabalhador e sem destruir o jardim de Deus.

Parece-me surpreendente que o tema da teologia política siga ainda relativamente ignorado entre formadores de opinião sobre a política brasileira

Para os cristãos, esses três grandes campos são tanto lugares para expressar a fé quando áreas de cooperação com pessoas de outras crenças ou descrenças. Naturalmente, também, são campos de debate público e contestação, já que podemos divergir sobre direitos humanos, sobre modelos de família ou sobre emancipação do trabalhador, por exemplo.

Mas o que acontece quando a desordem e a injustiça invadem esses campos? A simples menção da pergunta mostra que uma presença social cristã pede muito mais. E a próxima parada em nossa jornada será em outro grande episódio da narrativa bíblica do Gênesis: o relato sobre o dilúvio e Noé. Por incrível que possa parecer, ele nos oferece importantes insights sobre política e justiça.

Atenção ao mérito do assunto!

Só de ouvir sobre “Noé” ou “dilúvio”, alguns de espírito mais “laico” já saltarão com a faca nos dentes! De fato, do ponto de vista das relações entre fé e história a narrativa do dilúvio e da Arca de Noé é um ponto de atrito. Minimalistas históricos tenderão a tratar o relato do dilúvio, nos capítulos 8 e 9 do Gênesis, como mera fábula, no máximo ecoando a memória antiquíssima de enchentes catastróficas que periodicamente atormentavam as primeiras cidades à beira de rios, nos primórdios da civilização.

Embora não me conte entre os defensores de um dilúvio universal, ainda sustento a plausibilidade de um dilúvio local e de um Noé histórico; mas essa questão não é essencial à discussão que vamos apresentar. Como se deu no artigo anterior a respeito do Éden, convido o leitor cético a um temporário exercício de simpatia.

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Prometo que não será difícil: nosso assunto aqui não é a factualidade histórica do relato, mas o sentido teológico-político da história da aliança de Deus com Noé: a chamada “aliança noaica”. Esse sentido importa muito, pois afeta o modo como os cristãos veem o moderno Estado Democrático de Direito.

Um tempo de injustiça

Entre o relato da expulsão do Éden, no capítulo 3 do Gênesis, e a narrativa do dilúvio, a partir do capítulo 6, o relato é curto e triste: Caim e Abel, a história da traição e do homicídio, sinalizam que a humanidade está descendo morro abaixo. Há coisas boas, como o nascimento de Sete, no lugar de Abel, dando origem à linhagem de Noé; mas o assunto geral é, basicamente, a piora da raça humana: injustiça, excesso, morte e maldade.

Na mitologia suméria os deuses decidiram mandar um dilúvio à terra porque havia gente demais no mundo e a humanidade era barulhenta demais: ninguém tinha sossego no céu caldeu, o ruído era insuportável (não muito diferente do que temos hoje, na era do som portátil) e o deus Enlil não conseguia mais dormir. Afogaram todo mundo, menos Utnapistim, o Noé sumério.

Se a profissão humana era representar o Criador no planeta e cuidar dele, ao chamar Noé para uma conversa Deus entregou o seu “aviso prévio”.

Em contraposição a essa história curiosíssima e absolutamente tosca, a razão por que o Criador envia o dilúvio, na narrativa bíblica, é que a raça humana se mostrou um poço de corrupção. O tema bíblico é claramente moral; violações, arbítrio, negação da ordem criada, levantam uma interrogação sobre a pertinência da existência do ser humano – uma interrogação que, comparativamente, não difere da interrogação sobre o valor de uma espécie inteligente de animais que destrói o seu próprio planeta.

Se a profissão humana era representar o Criador no planeta e cuidar dele, ao chamar Noé para uma conversa Deus entregou o seu “aviso prévio”.

Uma aliança de preservação

Vamos saltar dos detalhes da história para os seus desdobramentos. Depois de sair da arca com os animais, Noé oferece um sacrifício ao Senhor. E, em resposta, Deus assume um compromisso: “Enquanto a terra durar, não deixará de haver plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”.

Aqueles familiarizados com o Gênesis se lembram de que no princípio havia as águas e o caos, e Deus progressivamente coloca ordem no mundo. A água representa esse estado de desordem; daí que o juízo divino sobre o mundo tenha sido o dilúvio, uma espécie de reversão da criação, como se as coisas voltassem ao seu estado original. É contra esse fundo que devemos ler a narração do pacto do arco-íris em Gênesis 9:

“Deus também disse a Noé e seus filhos: Faço agora a minha aliança convosco e com a vossa descendência, e com todo ser vivo que está convosco, com as aves, com o gado e com todo animal selvagem; com todos os que saíram da arca, sim, com todo animal da terra. Sim, faço a minha aliança convosco; todas as criaturas nunca mais serão destruídas pelas águas do dilúvio; nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra. E Deus disse: Este é o sinal da aliança que firmo entre mim e vós e com todo ser vivo que está convosco, por gerações perpétuas: Coloquei o meu arco nas nuvens; ele será o sinal de uma aliança entre mim e a terra.” (Gênesis 9,8-13)

A permanência do mundo e a manutenção da lei natural são, para a cultura judaico-cristã, um gesto da graça divina e um pressuposto para a exploração da ordem cósmica.

O assunto do pacto, estabelecido com os homens e com todas as criaturas, é a preservação do mundo. O que Deus está efetivamente prometendo não é que ele jamais destruirá o mundo com “água”, tão somente, como se ele estivesse com os dedos cruzados planejando explodir o planeta com algum asteroide. O ponto da promessa é que o risco de uma reversão da ordem criada para as águas do caos original está afastado. O arco no céu é a garantia de que uma graça foi dispensada ao mundo, no sentido de preservá-lo, de manter sua funcionalidade básica. Ele não garante a redenção final, ou a perfeição dos seguidores de Jesus, mas a continuidade da vida.

Isso representa algo de muito significativo: que, a despeito da realidade do mal e da alienação do ser humano em relação a Deus, a ordem cósmica será preservada. Esse é o ponto de o texto sagrado mencionar não apenas a manutenção da vida das criaturas, mas de seus ciclos vitais: fertilidade, estações, dia e noite.

O que temos aqui, numa linguagem antiga e pré-filosófica, é o que se convencionou chamar de “lei natural” no mundo greco-romano e moderno. Só que, no caso hebreu, essa ordem natural é contingente. O mundo poderia não ser como é, e sua existência não é uma necessidade metafísica, mas uma promessa divina. Sua ordem e beleza é entendida a posteriori, pela observação de seu comportamento. Na tradição bíblica essa descrição da ordem natural e moral recebeu o nome de “sabedoria”.

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A permanência do mundo e a manutenção da lei natural são, para a cultura judaico-cristã, um gesto da graça divina e um pressuposto para a exploração da ordem cósmica. Vale mencionar, aqui, que essa não é uma ideia trivial; sem a noção de uma harmonia praestabilita não haveria esperança de uma descrição matemática do mundo, por exemplo; e sem a crença em uma ordem divina e contingente, como notaram historiadores de religião e ciência como R. Hooykaas ou Thomas Torrance, é possível que a Revolução Científica fosse atrasada ou até mesmo não acontecesse, mesmo na presença de importantes avanços técnicos ou matemáticos, como foi o caso da China ou do mundo árabe.

Se o Criador garante a manutenção da ordem do mundo, seus amigos lhe devem o máximo de atenção, examinando, compreendendo e cultivando essa ordem. Essa seria uma dimensão ética e espiritual de nossas modernas investigações científicas e filosóficas.

Os termos do pacto

As garantias divinas da preservação da ordem do mundo são parte de uma aliança com todas as criaturas por meio do homem – Noé e sua família. E os pactos de suserania e vassalagem, segundo os costumes do antigo Oriente Próximo desvendados por estudiosos como George Mendenhall e Meredith Kline, envolviam tanto a proteção do rei quanto os deveres dos Estados vassalos. O que se pede dos seres humanos?

Um importante debate se levantou há alguns anos pelo trabalho inovador em teologia política desenvolvido por David VanDrunen, advogado e professor Robert B. Strimple de Teologia Sistemática e Ética Cristã no Westminster Seminary California. VanDrunen, que publica seus artigos em revistas importantes como o Journal of Church and State ou o Journal of Law and Religion, lançou uma série de livros de grande importância, um deles na prestigiosa Emory University Studies in Law and Religion, defendendo uma interpretação distintivamente protestante da concepção de Lei Natural, compatível com uma visão liberal-conservadora para o Estado constitucional moderno. Seus livros foram resenhados em revistas acadêmicas e portais populares como Mere Orthodoxy, The Public Discourse e The Gospel Coalition.

Na interpretação de VanDrunen, um dos aspectos mais significativos de Gênesis 9 é que Deus estabelece um ordenamento para a totalidade da raça humana, mas esse ordenamento não envolve nenhuma orientação especificamente religiosa. Nada é dito sobre o modo de crer ou de cultuar a Deus, e nenhuma condição religiosa é estabelecida para a manutenção do pacto. Trata-se de uma situação notavelmente distinta, por exemplo, das alianças de Deus com Abraão, com Moisés e com Davi.

Daí VanDrunen infere que a religião bíblica não apenas admite, mas pressupõe a existência de uma ordem natural e moral universal, acessível e válida para todos os seres humanos, independentemente de sua orientação religiosa. Essa ordem mínima e universal seria o ponto de partida para a justificação religiosa para um sistema de Estado liberal baseado na lei natural e pluralista, do ponto de vista das religiões ou crenças.

Mas o que encontramos, colocando o texto do Gênesis sob a lupa? Temos uma repetição da bênção criacional e uma ordem para ser frutífero e multiplicar-se (9,1-7), e uma repetição da ordem para dominar e sujeitar a terra, incluindo, agora, uma orientação sobre não comer a carne com o sangue (9,3-4). Mas há uma significativa modificação com referência ao trato com a injustiça:

"Certamente cobrarei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; eu o cobrarei de todo animal, como também do homem; sim, cobrarei da mão de cada um a vida do seu próximo. Quem derramar sangue de homem terá o seu sangue derramado pelo homem, porque Deus fez o homem à sua imagem.”

Aos olhos frequentemente sentimentalistas do indivíduo moderno, a lex talionis pode parecer algo cruel ou vingativo; mas a retribuição jurídica proporcional foi um grande avanço na Antiguidade

Temos uma verdadeira novidade aqui. Deus dá claras orientações referentes à administração da justiça e à repressão da violência. O que faz todo o sentido, se considerarmos que essa foi precisamente a razão por que o dilúvio foi enviado à terra. Independentemente do que se pense sobre a questão histórica e científica de um dilúvio universal ou local, o ponto do trecho é marcar esse episódio como o momento da instauração do que poderíamos chamar de “justiça pública”.

Gênesis 9,6 estabelece a lex talionis, o princípio da retribuição jurídica. Aos olhos frequentemente sentimentalistas do indivíduo moderno, pode parecer algo cruel ou vingativo; mas a retribuição jurídica proporcional foi um grande avanço na Antiguidade: proibiu os ciclos intermináveis de vingança, constituiu uma das bases do direito romano e moderno e, segundo a teoria dos fundamentos morais de Jonathan Haidt, parece derivar de nossa psicologia moral, com bases evolutivas.

O núcleo de sentido da justiça é, de fato, dar a cada um o que lhe é devido e de direito, e obrigação de compensar qualquer violação disso. O princípio retributivo responde a uma necessidade inata dos seres humanos por respeito, vindicação e proporcionalidade.

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Naturalmente, a administração da justiça levanta a questão do ofício. Quem teria as prerrogativas para tal tarefa? A questão da autoridade é básica e incontornável para qualquer sistema político.

Ora, o mesmo trecho bíblico acima estabelece que os seres humanos têm, na terra, a autoridade para administrar a retribuição jurídica, por uma razão: eles foram feitos à imagem de Deus. Aqui a Imago Dei retorna; a sacralidade da vida humana proíbe o assassinato. Mas uma verdade mais ampla se apresenta no trecho; Imago Dei, conforme foi muito bem estabelecido nos estudos de Richard Middleton, tem relação direta com o poder de representação, com o ofício. O ser humano foi vocacionado para representar a divindade na organização da adoração cósmica, como vimos. Agora, na situação pós-queda e pós-dilúvio, essa relação com Deus confere legitimidade para o julgamento e a execução de penalidades contra ofensores da justiça.

Por óbvio, o modo como diferentes sociedades estabelecem sistemas de justiça como right order, ou ordenamentos que garantam o cumprimento dos deveres e a responsabilização dos injustos pode variar; e não há qualquer indício de que sistemas democráticos constitucionais sejam os únicos legítimos, uma vez que é a imagem divina, e não a força da maioria, o que funda o direito. Ainda assim, é possível construir bons argumentos para sustentar que sistemas democráticos constitucionais são os mais apropriados para maximizar a implementação da justiça pública.

Justiça pública e a forma do Estado

Essas considerações nos transportam imediatamente para Romanos 13,1-7, onde encontramos o trecho mais denso do Novo Testamento lidando com a natureza do governo civil. Será útil relermos o que o apóstolo Paulo escreveu:

“Todos devem sujeitar-se às autoridades do governo, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram ordenadas por ele. Por isso, quem recusa sujeitar-se à autoridade opõe-se à ordem de Deus, e os que fazem isso trarão condenação sobre si mesmos.
Porque os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal. Não queres temer a autoridade? Faze o bem e receberás o louvor dela. Porque ela é serva de Deus para o teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não é sem razão que ela traz a espada, pois é serva de Deus e agente de punição de ira contra quem pratica o mal.
Por isso é necessário sujeitar-se a ela, não somente por causa da ira, mas também por causa da consciência. Por essa razão também pagais imposto; porque eles são servos de Deus, para atenderem a isso.
Dai a cada um o que lhe é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra.”

Os fatos básicos do trecho são de fácil interpretação: os magistrados que existem com o fim de louvar o bem e punir o mal, exercitando o Ius Gladii, o fazem com autoridade divina. Deus criou os poderes, tanto terrenos quanto celestiais, na teologia do poder de Paulo, como se lê, por exemplo, em suas cartas aos Efésios e aos Colossenses. Trata-se, obviamente, de uma consequência necessária da doutrina da Criação contingente: todas as ordens de poder resultam, de algum modo, do Criador, independentemente de seu bom ou mau uso do poder.

É possível construir bons argumentos para sustentar que sistemas democráticos constitucionais são os mais apropriados para maximizar a implementação da justiça pública

Aqui VanDrunen trouxe uma contribuição original. À pergunta sobre a fonte da autoridade dos governantes, que recebe apenas uma resposta genérica em Paulo, devemos responder retomando a aliança noaica: a Imago Dei. Ao estabelecer esse outro pacto, no qual os mandamentos criacionais são, na linguagem do teólogo, refratados para as condições “fora do Éden”, Deus confere aos homens uma prerrogativa adicional. Assim, além de exercer o domínio por meio do trabalho, da cultura e da história, os seres humanos deverão promover a justiça pública. E assim se estabelece, teologicamente, a autoridade do Estado.

O estabelecimento de um sistema de repressão da injustiça e, por paridade, de promoção da justiça é um dever universal, baseado na promessa de manutenção da lei natural. E, voltando às nossas considerações iniciais, é preciso destacar que a prerrogativa de governar para administrar a justiça é independente de religião ou crença. Diz VanDrunen:

“Assim, uma teoria político-legal construída sobre o pacto Noaico, embora reconhecendo a ordenação e governança divina da ordem social, propriamente contempla uma ordem social marcada pela tolerância de várias profissões religiosas e a igualdade de todas as pessoas na vida social. Enfaticamente, essa tolerância e igualdade não são coisas concedidas por essa teoria político-legal em bases utilitárias, mas são coisas positivamente afirmadas como parte do decreto pactual de Deus. Isso não significa que a diversidade religiosa na sociedade seja algo a celebrar ou que o Cristianismo não seja a única religião verdadeira... O que uma teoria legal e política Noaica sugere é que qualquer tentativa de impor a uniformidade religiosa é uma opção inadequada.”

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E nesse ponto VanDrunen defenderá a sua própria versão do liberalismo clássico, com um Estado pequeno e pouco interventor, focado nas questões de justiça legal, e um sistema de liberdades civis fundamentais de modo a garantir o pluralismo das crenças. Em vez de um liberalismo ideológico, secularizante ou último (do tipo criticado, por exemplo, por Patrick Deneen), teríamos um liberalismo pragmático, secular ou penúltimo.

Temos, portanto, limites para a atividade do Estado. Os oficiais autorizados precisam agir tendo em vista o bem comum, reconhecer outras autoridades estabelecidas pela comunidade, ou por outras comunidades, e atuar de forma responsiva.

Esse último ponto importa muito: o Estado (ou a assembleia constitucional) não funda a comunidade. A atividade de julgar, regular e administrar a justiça ocorre a posteriori, quando as atividades humanas primárias como a religião, o trabalho, a família, o comércio, e a miríade de interações que surgem a partir dessas, são interrompidas ou mutiladas por uma violação da justiça. Nesse momento o Estado atual, não tanto como um arquiteto da utopia terrena, mas como um supervisor e facilitador da vida social, realizando seus atos de julgamento (na expressão de Oliver O’Donovan) à medida em que a injustiça interfere no fluxo da vida comunitária.

Os oficiais autorizados precisam agir tendo em vista o bem comum, reconhecer outras autoridades estabelecidas pela comunidade, ou por outras comunidades, e atuar de forma responsiva

O estadista, reformador e teólogo Abraham Kuyper tinha uma concepção teológica particular para expressar isso: em sua visão, o Estado seria uma estrutura “mecânica” e não orgânica, estabelecida após a queda do homem no pecado. Ele não compartilharia da naturalidade das outras formas de atividade social humana, como a criação artística, a indústria, as trocas comerciais ou a família. A teoria das “esferas de soberania” representava bem essa compreensão de uma limitação estrutural à soberania do Estado. VanDrunen expressou uma visão similar com sua tese de “policentrismo político”.

Mas qual justiça?

Eu concordo substancialmente com as teses de VanDrunen sobre a aliança noaica como corroboração da lei natural e estabelecimento da autoridade para implementar a justiça pública, como ponto focal para a organização de um Estado pluralista e não confessional. Do ponto de vista do fluxo narrativo das Escrituras, ao menos, ela é bastante consistente.

Mas são muitas as perguntas em aberto. VanDrunen acredita que a lei natural e a justiça são diretamente acessíveis a todos os homens, a despeito de nosso estado de alienação em relação a Deus, e que a sabedoria seria o empreendimento lento e cumulativo de discernir e aplicar essa lei natural em nossa governança político-legal. E que o evangelho da graça não teria nenhum papel diretivo na constituição desses sistemas.

Essa perspectiva tem sido classicamente descrita como a teoria dos “Dois Reinos” (ou “2K” nos debates anglófonos), que estabeleceria uma marcada separação entre vida política e vida eclesiástica (ainda que fundindo teoria política e teologia). Trata-se de uma tradição teológica venerável e influente, mas oposta ao neocalvinismo, ao pensamento teológico da “missão integral latino-americana”, e às ideias de teólogos contemporâneos como o britânico N. T. Wright.

Há vários indícios de que princípios derivados da ação salvadora de Deus, ao longo da história, foram necessários para a constituição de sistemas político-legais melhores e mais justos

Preliminarmente, eu diria que essa visão não corresponde nem às Escrituras, nem à história política moderna. Há vários indícios de que princípios derivados da ação salvadora de Deus, ao longo da história, foram necessários para a constituição de sistemas político-legais melhores e mais justos.

Um exemplo bastante óbvio, para mim, é o do Êxodo, do qual ainda vamos tratar nessa coluna. Ali temos a história de um libertador, Moisés, que livra o povo de Deus da tirania do faraó. Notavelmente, os descendentes de Abraão estavam aprisionados sob uma autoridade que se tornou violadora da justiça e da dignidade humana oprimindo toda uma nação. Os hebreus sofriam sendo proibidos de adorar ao seu Deus, forneciam trabalho escravo e eram proibidos de ter filhos homens – precisamente as três condições básicas da felicidade humana estabelecidas no Gênesis.

Ora, o mesmo Deus que estabeleceu a autoridade da governança e implementação da justiça é quem envia Moisés para libertar o povo de um rei injusto. Ali nasce, portanto, um outro tema de importância política: o tema da emancipação da autoridade opressiva, e da liberdade para constituir a comunidade em oposição ao império. Vamos nos lembrar de que o Êxodo foi um dos temas mais cruciais no púlpito e na prática de espiritualidade política de Martin Luther King, nos primórdios do movimento pelos direitos civis nos EUA.

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Outra interrogação vem do trecho supracitado da carta de Paulo aos Romanos, no capítulo 13. Ali se diz com toda a clareza que a autoridade política é “serva de Deus para o teu bem”. Penso que aí se estabelece não apenas a autoridade de ofício do magistrado, mas a autoridade do “bem”. O bem é um dos grandes temas dos capítulos 12 e 13 dessa carta apostólica, e Paulo diz muitas coisas sobre como devemos fazer o bem uns aos outros e até mesmo aos inimigos. Dizer que a autoridade pertence, em última instância, ao bem significa que a lei positiva não tem a permissão de operar alienada de considerações morais, e que autoridades que não operam tendo como o centro a promoção do bem comum são imediatamente desqualificadas como tais.

Mas o que é coberto por esse princípio republicano? Promover o bem é, certamente, bem mais do que passar assassinos ao fio da espada. O próprio texto menciona que a prática do bem deveria trazer o louvor das autoridades, e que elas são servas do bem. Ora, como a autoridade política poderia promover e proteger o bem sem uma teoria de bens? Penso que temos aqui uma razão para considerar outra tarefa pelo Estado: recomendar, facilitar e até premiar a prática do bem. Isso poderia ser entendido como a constituição e manutenção de estruturas que viabilizem o conjunto das atividades ordinárias e não políticas das comunidades humanas.

Sim, isso inclui um dos meus assuntos preferidos: nudges comportamentais, para fomentar capitais sociais, fraternidade e bem comum.

Um “Estado mínimo” não é suficiente para os cristãos. Certamente é preciso um aparato governamental mais extenso para promover equidade e evitar situações de desamparo. Mas é certo que um Estado grande e paternalista não é aceitável

Em conclusão, eu gostaria de mencionar que a concepção bíblica de justiça não permite sua compressão numa noção minimalista de “justiça criminal”. Justiça, nas Escrituras, envolve cuidar dos vulneráveis e proteger seus direitos, incluindo o direito de receber cuidado. Isso é explicitamente afirmado no caso de pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros, em diversos trechos legais, litúrgicos, sapienciais e proféticos do Antigo Testamento; não apenas como dever moral de indivíduos, mas como critério de julgamento das autoridades.

“Pois o Senhor, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores; o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz discriminação de pessoas nem aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe comida e roupa. Amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” (Deuteronômio 10,17-19)

Esse é um exemplo de vários; a justiça bíblica não é menos do que retributiva, mas também é muito mais do que isso; envolve também equidade, e a falha em prover as condições mínimas de sobrevivência digna e participação social a pessoas com vulnerabilidades é claramente rotulada como negação do direito e injustiça. O pastor Tim Keller produziu um livrinho intitulado Justiça Generosa, utilíssimo para introduzir o leigo à visão cristã da justiça.

Deus e o Estado hoje

Em conclusão, eu diria que um “Estado mínimo” não é suficiente para os cristãos. Certamente é preciso um aparato governamental mais extenso para promover equidade e evitar situações de desamparo. Mas é certo que um Estado grande e paternalista não é aceitável. Ele contradiz a estrutura limitada e responsiva de soberania concedida às autoridades temporais, e cria uma ameaça potencial ao pluralismo de religiões ou crenças, quando definições minuciosas e detalhadas sobre o conjunto da vida humana começam a se tornar imposições legais, forçando a escolha de uma única visão de mundo sobre todos. A única forma de garantir as liberdades fundamentais é limitar o alcance do Estado e resistir às suas tendências messiânicas. Quanto a isso eu recomendaria a obra Contra a Idolatria do Estado, do colega teólogo Franklin Ferreira.

Para promover a justiça, tal Estado deverá ser coercivo no campo retributivo; mas, para promover equidade, apenas facilitador da justiça social; do contrário, suas invasões poderão destruir a ecologia social da comunidade, da qual ele é mero servidor. Mas nessa tarefa positiva há muito o que fazer – muito mais do que o “mínimo” de reprimir o crime, como vimos. Penso que, aqui, a noção de “paternalismo libertário” de Cass Sunstein e Richard Thaler pode contribuir como um recurso moderno para que o “lado B” da tarefa governamental seja realizado: não apenas punição da injustiça e garantias legais, mas o “louvor ao bem” e a promoção da justiça social.

A única forma de garantir as liberdades fundamentais é limitar o alcance do Estado e resistir às suas tendências messiânicas

Naturalmente as grandes áreas que o Estado deve proteger, em sua função de administrar a justiça pública, são a religiosidade e a dignidade da pessoa humana; a coesão social e a fraternidade, a partir do casamento e da família; e o funcionamento otimizado dos diversos campos de trabalho produtivo e criação cultural. Injustiças resultantes da alienação nesses três campos deverão receber resposta.

Mas, voltando ao “lado A” da atividade governamental, gostaria de destacar uma implicação direta do pacto noaico para nossas prioridades políticas. O mínimo para a justiça pública é a segurança jurídica e o acesso à justiça, a segurança pública e a repressão à corrupção dentro do próprio Estado. Ao lado das “pautas edênicas”, as pautas “noaicas” seriam também temas dominantes numa política cristã contemporânea.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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