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Detalhe de “Zaqueu”, de Niels Larsen Stevns.
Detalhe de “Zaqueu”, de Niels Larsen Stevns.| Foto: Wikimedia Commons

O “cancelamento” virtual tornou-se um lugar comum tão comum que muita gente nem liga mais. A depender da torcida, ser cancelado por um lado é crescer ainda mais do outro, nessa grande e interminável partida de vale-tudo que se tornaram as mídias sociais.

“Crescer” de um ponto de vista midiático, sem dúvida; mas não de um ponto de vista humano. Para quem ainda se interessa pela conversação, a cultura do cancelamento segue tóxica e deletéria como sempre, reduzindo a imaginação a dimensões liliputianas. Como testemunhei várias vezes, tanto em mídias sociais quanto em minha própria coluna, as principais vítimas são os próprios canceladores, que cancelam sistematicamente sua capacidade de pensar – do cancelamento moral ao cancelamento cerebral é um pulo.

O filósofo, teólogo e pedagogo Gustavo Arnoni, com especialização em Ensino de Filosofia e em Cristianismo e Política, é apenas um entre tantos que viram essa tragédia acontecer bem diante dos seus olhos. Ele lançou recentemente o livro Pais de Filhos Doentes: encontrando Deus no sofrimento de uma criança, pela editora Encapse, e, juntamente com a alegria da publicação, teve de provar o amargor das tentativas de cancelamento por militantes virtuais. Embora fracassadas, as tentativas de cancelamento impulsionaram o autor a se debruçar um pouco mais sobre esses fenômenos do cancelamento, dos boicotes e do silenciamento. E, na coluna de hoje, compartilho com meus leitores a bela reflexão de Gustavo Arnoni.

Para quem ainda se interessa pela conversação, a cultura do cancelamento segue tóxica e deletéria como sempre, reduzindo a imaginação a dimensões liliputianas

Sobre cancelamentos, boicotes e silenciamentos

Dias atrás passei pela temida experiência de cancelamento. Fui convidado para lançar meu livro, intitulado Pais de Filhos Doentes: encontrando Deus no sofrimento de uma criança, em uma conferência sobre pessoas com deficiências. Vale explicar que o livro é uma reflexão cristã acerca do sofrimento, especialmente infantil, que comecei a fazer devido aos sérios problemas de saúde do meu filho, diagnosticado com Hipoplasia Cartilagem-Cabelo, que inclui nanismo e foi seguido de falência intestinal e pneumopatia.

A repercussão crítica ocorreu por eu usar “doente” no título, uma vez que deficiência física e mesmo nanismo não são classificados como “doença”. “Está aí a evidência do capacitismo!” (preconceito contra pessoas com deficiência), disseram. E mais: o uso do termo “encontrando Deus no sofrimento” soou como uma exploração religiosa perversa do sofrimento infantil. Chegaram mesmo a dizer que seria melhor escrever “encontrando Deus no sexo”, pois isso seria menos abusivo que no sofrimento infantil.

O curioso de tudo isso é que meu livro não havia chegado sequer às minhas mãos, mas já estava instaurado o processo inquisitivo de silenciamento pelo título. Com a mínima paciência necessária, os críticos constatariam que na Apresentaçãodo livro eu explico que doença, transtorno, síndrome e condições possuem classificações próprias, mas que peço a gentileza de o leitor suportar quaisquer usos de termos indevidos, pois a categoria doença é um modo inicial de os pais começarem a entender diferenças nos filhos até que, posteriormente, compreendam o universo dos termos corretos.

O lançamento do livro foi bem-sucedido; além de os críticos não comparecerem na entrevista, eu já estava conhecido no meio, tendo a oportunidade, logo na primeira pergunta, de esclarecer o título da obra. O cancelamento teve, na verdade, o efeito contrário! No entanto, nem todos têm essa mesma sorte.

O senso comum produziu algumas explicações bastante populares para a cultura do cancelamento: o famigerado “mimimi”, o “politicamente correto”, até sugestões do tipo “foi falta de disciplina física na infância” ou falta de lidar com uma guerra e problemas reais. Creio que, por mais que se possam comprovar casos assim, essas explicações são basicamente palpites, carentes de uma análise mais profunda do que ocorre na sociedade. O boicote não é um fenômeno meramente progressista. Com facilidade é possível encontrar movimentos cristãos e conservadores tentando silenciar certas propagandas ou movimentos, especialmente se tocam na temática LGBTQIA+. O fenômeno está aí, e as causas são complexas.

Exibicionismo moral

No livro Virtuosismo moral – Grandstanding: as ideias por trás dos cancelamentos, boicotes e difamações nas redes sociais, os filósofos morais Justin Tosi e Brandon Warmke desenvolvem uma teoria interessante sobre as causas do cancelamento. Eles atribuem esse novo movimento ao exibicionismo moral. Em outras palavras, a tentativa de impressionar os outros com o próprio virtuosismo. O termo mais familiar a nós seria arrogância. Para os autores, a arrogância moral tem dois componentes: desejo de reconhecimento e a expressão de arrogância. O desejo de ser reconhecido nada mais é que o anelo que o indivíduo tem para ser notado como possuidor de qualidades morais, independentemente de serem elas reais ou não. Não é ser virtuoso que importa, mas ser reconhecido como virtuoso. A expressão de arrogância são os modos de dominar e intimidar o oponente para que este seja cancelado.

No Brasil, esta parece ser uma armadilha ainda mais intensa, creio eu. Existe um parasita vaidoso que faz hospedeiros em todas as esferas e instituições sociais. Desde o sujeito chamando a atenção para si com caixas de som gigantescas no carro até os autodenominados “profetas”, “profetisas” e “teólogos” sedentos de ovação na igreja e nas redes sociais. No evangelicalismo brasileiro, por exemplo, a vaidade de reconhecimento ganhou roupagens de relevância, unção e poder; e penso que a degradação da religião é o primeiro indício de degradação social. Como ressaltam os autores, a base da cultura do cancelamento está justamente neste querer ser visto ou colocado como superior ao oponente e até mesmo ao cidadão comum.

Não é ser virtuoso que importa, mas ser reconhecido como virtuoso. A expressão de arrogância são os modos de dominar e intimidar o oponente para que este seja cancelado

Existe um modo de operação para que a cultura do boicote e cancelamento se consolide. Em primeiro lugar, nota-se o conglomerado de pessoas acerca de uma causa. Essas pessoas ao redor de uma causa se reúnem para simplesmente concordar com a causa, assumindo um aspecto mais de torcida organizada que de debatedores públicos. Pouco importa ouvir o outro lado, seja da empresa, da pessoa, do artista, do político ou do pastor. O que importa é concentrar as forças para silenciar o oponente. Democracia de uma via só. O ato de silenciar o oponente é identificado com o próprio ato da justiça. Sem levantamento de provas, averiguação, julgamento e, então, sentença. O que importa é ir diretamente para a sentença, uma vez que os que silenciam são em si os padrões da justiça e moral.

Todo esse processo é embebido por sensacionalismo. Os agentes exageram suas reivindicações, não para mostrar a importância da sua pauta, mas para converter consciências no processo de destruição do oponente. Evidentemente, eu destruo meu oponente me colocando como a alternativa moralmente superior.

Moralismo e sentimentalismo

Esse exibicionismo da moral faz com que todas as pautas sejam, no fundo, moralizadas. É importante no processo de cancelamento moralizar pautas que não são essencialmente morais, ainda que toquem na questão da moralidade. Um exemplo claro que surgiu no Brasil é o da intervenção do Estado na economia. O Estado intervir ou não em setores estratégicos (pense na Petrobras, por exemplo), sempre foi alvo de debates. Era ponto comum, poucos anos atrás, que fez setores da direita e da esquerda concordarem em certa estatização do petróleo. E havia os destoantes, mas isso era matéria de crítica ideológica. O que veio ocorrendo nos últimos 5 a 10 anos foi um exagero do elemento moral nessa discussão. Aqueles que são contra a intervenção são tidos como a favor da injustiça (moralmente inferiores), e o mesmo ocorre do outro lado.

Pense também na moralização do voto. De certo ou errado, coerente ou incoerente, a declaração de voto se tornou uma classificação ética rígida entre ser uma boa ou má pessoa. A ausência do envolvimento também foi classificada como má. Falando teologicamente, como cristão protestante e herdeiro de Lutero: chegamos a um ponto em que a justificação pela fé foi transferida e imanentizada na justificação diante de Deus pelo voto político. O exibicionismo, nessa forma comum à direita e à esquerda cristã, está em tratar o oponente político como certamente alguém que ainda não conhece a fé.

Só é possível a consolidação desse processo com o exagero da retórica emocional. No discurso coloca-se o objeto de silenciamento e cancelamento sempre como uma ameaça à vida e à sociedade. Emoções cativam os ouvintes. As discordâncias que surgem no hiperemocionalismo político não são mais entre oposições de ideias, mas oposição por ódio. Da mesma forma, você não apoia uma figura por causa das ideias, mas porque a ama. A retórica da paixão transferida para a esfera pública gera os extremos da indignação moral.  Próprio do espírito brasileiro, poucos se destacam pela ponderação. O “choque”, o amedrontamento e o heroísmo, próprios do despertar das emoções, é o que trazem fama aos agentes políticos.

Cancelando o espaço cívico

Os efeitos sociais do virtuosismo moral são muitos. A polarização política, cada vez mais acentuada, não dá sinais de recuo. Não apenas o diálogo deixou de existir, mas a própria possibilidade do diálogo também desapareceu. Lembro-me que o principal opositor ao meu livro disse que iria lê-lo apenas para mostrar que eu estava errado. Eu estava errado sobre um conteúdo a que ele nem havia tido acesso! O comprometimento com uma pauta fecha o acesso à própria realidade.

Além disso, pelo abuso das pautas morais no debate público, espera-se a ineficácia do discurso moral gerado pelo desgaste. A moralidade se tornou tão explorada e viciada que, quando surgirem pautas morais reais e necessárias, as pessoas estarão indiferentes, enjoadas pelos excessos.

Outra consequência comum e já notada é a exploração que surge do erro de alguém que é flagrado em uma falha moral. Houve a politização do termo exposed. Ou seja, a pessoa foi “exposta” em seu vacilo. Essa tem sido a “pérola de grande valor” do debate político. A melhor oportunidade de se mostrar como superior moralmente é diante de alguém caído. Os agentes políticos abusam disso sem dó. Até a hora deles chegar…

É importante no processo de cancelamento moralizar pautas que não são essencialmente morais, ainda que toquem na questão da moralidade

Por fim, a última consequência é que o desejo de reconhecimento atesta o fracasso da virtude cívica. Quando o debate se concentra em autopromoção e cancelamento, tudo aquilo que é necessário para uma sociedade é perdido. Por quê? Porque a virtude cívica é justamente a qualidade necessária para a manutenção da república. Se virtudes são construídas sobretudo na individualidade e em processo de silenciamento do outro, não é possível a construção para o bem comum.

A proposta de solução de Tosi e Warmke parte do princípio da educação, conscientizando sobre os efeitos negativos da arrogância moral. Eu desconfio, porém, que o evangelho possa ser ainda mais esclarecedor nesse sentido.

O evangelho contra o cancelamento

Diz o apóstolo Paulo, escrevendo aos Filipenses:

“Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros. Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus…” (Filipenses 2,3-5)

Paulo contrasta duas formas de existir no mundo: a de autoafirmação vaidosa e a de autoesvaziamento. Essa ideia de esvaziamento (negação de si) se tornou algo bastante incomum em nossa sociedade. Toda a demanda de autoestima e bem-estar emocional fortaleceu os discursos de amor-próprio e valorização. Contrariando a tendência geral, o apóstolo fundamenta a ação cristã do esvaziamento na atitude de Cristo. O esvaziamento de Cristo não significou uma renúncia da sua divindade, mas a não reivindicação de direitos divinos que ele possuía por natureza. Em outras palavras, significou o colocar-se numa situação de cancelamento e anulação de sua própria reputação. Jesus agiu quase como um cúmplice no assassinato da sua própria reputação!

O antídoto do evangelho para o cancelamento é justamente considerar que o outro, aparentemente tão sem razão e inferior, talvez traga vestígios da verdade

Se um grupo religioso buscava reputação em orações longas e visíveis nas esquinas, Jesus ia orar no meio do mato, em cima das montanhas, sem a menor preocupação de os outros o acharem muito ou pouco espiritual; se o grupo moralista estava atento aos contatos sociais, mantendo uma aparência piedosa, Jesus entrava na casa de pessoas socialmente proscritas. Se os virtuosistas estavam preocupados com lavar as mãos para comer, Jesus entrava no meio da multidão, tocava leprosos, pessoas com hemorragias, e ainda dava atenção às pessoas que em nada poderiam auxiliá-lo a ascender socialmente.

O antídoto do evangelho para o cancelamento é justamente considerar que o outro, aparentemente tão sem razão e inferior, talvez traga vestígios da verdade. E quando considero esse outro mais digno que eu, como alguém que tem algo a me ensinar, toda a minha discordância se torna profética, e não imperial. A discordância imperial busca silenciar as religiões rivais e impor a sua própria. A discordância profética vai proclamar que o outro possui um falso deus, mas não vai tratá-lo como o próprio ídolo a ser quebrado.

Quando presumo que o outro é alguém tão ou até mais digno que eu, percebo que não são só os meus interesses que contam. Que eu não sou o único portador de virtude na terra. E que, se o Rei se submeteu à condição de servo, por que eu, servo, quero me colocar na condição de rei para silenciar todas as vozes discordantes?

O desafio para nós é a identificação de que a única fonte absoluta de virtude, regada a humildade, está em Cristo. Nem nós, nem algum outro ser humano pode fornecer todos os valores e exemplo necessários para nossa vida.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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