Com algumas semanas de atraso, apresento-me para elogiar a declaração Dignitas infinita sobre a dignidade humana, publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé há pouco mais de um mês, em 8 de abril. O colega Marcio Antonio Campos já apresentou uma análise preliminar do documento em sua coluna, mas considero necessário compartilhar com os leitores algumas impressões gerais.
O lugar crucial da ideia de “dignidade humana” para todo o debate internacional sobre direitos humanos e a necessidade de recuperar a sua importância foram o que levou Ján Figel, à época enviado especial para a Promoção da Liberdade de Religião ou Crença Fora da União Europeia, a articular e publicar em 2018 a Declaração de Punta Del Este sobre a Dignidade Humana para Todas as Pessoas em Todos os Lugares. Entre os colaboradores e signatários originais estava Vitorino Souza Alves, professor da UFU e responsável pela publicação do documento em língua portuguesa, através do Cedire.
A declaração afirma, em seu primeiro artigo, que “A dignidade humana inerente a todas as pessoas e a importância de respeitar, promover e proteger a dignidade humana de todos em todos os lugares é o princípio fundamental e a finalidade ou objetivo chave dos direitos humanos”, argumentando ser esta a intenção original da DUDH de 1948, e que ela seria o “critério inestimável” para julgar leis, políticas públicas e ações governamentais na ótica dos direitos humanos.
À medida que proliferam as reivindicações de direitos e proteções especiais em nome dos direitos humanos, inúmeros pontos de conflito começam a se desenhar
Mas, além disso, ela seria necessária como um foco convergente para diferentes teorias sobre direitos humanos e como uma espécie de chave hermenêutica interna para o sistema de direitos humanos, como se vê em alguns trechos dos artigos seguintes:
“A dignidade humana para todos em todos os lugares é valiosa como um ponto de partida para explorar e entender o significado dos direitos humanos, como uma base para encontrar pontos comuns em relação aos direitos humanos e um consenso referente a seu conteúdo e significado. Ela fornece uma abordagem para a construção de pontes entre várias justificativas normativas dos direitos humanos, incluindo aquelas com fundamentos teóricos religiosos e seculares. Respeitar a dignidade humana de todos em todos os lugares facilita o debate sobre diferentes concepções de valores compartilhados. A dignidade humana é um conceito amplo que, entretanto, convida a uma reflexão profunda em meio a diferentes tradições e perspectivas.”
“O reconhecimento da dignidade humana para todos em todos os lugares é um importante princípio constitucional e legal para reconciliar e resolver demandas envolvendo direitos humanos, assim como demandas entre direitos humanos e outros importantes interesses nacionais e sociais.”
“O reconhecimento do caráter universal e recíproco da dignidade humana atua como um fator corretivo para posições que defendem direitos para alguns e não para outros. Isso ajuda a apaziguar a hostilidade que é comumente associada às controvérsias sobre os direitos humanos e a promover um diálogo construtivo. Também favorece a mitigação da distorção, do desvio e do reconhecimento seletivo da dignidade humana.”
O problema é muito real; à medida que proliferam as reivindicações de direitos e proteções especiais em nome dos direitos humanos, inúmeros pontos de conflito começam a se desenhar. No caso brasileiro, como já destacamos por aqui, vê-se uma tensão crescente entre o direito à vida e às liberdades fundamentais de religião ou crença e expressão, por um lado, e diversos novos direitos e proteções de quarta ou quinta geração, como os “direitos reprodutivos” da mulher (um guarda-chuva para o aborto), a proteção contra o “racismo religioso” (e a criminalização do proselitismo), e o direito à identidade afetivo-sexual, fundamentando a noção de homotransfobia e sua equiparação ao racismo pelo STF.
A Declaração de Punta Del Este saiu em 2018, e em março de 2019 a Congregação para a Doutrina da Fé já tomava providências no sentido de produzir um documento clarificando a relação entre a antropologia cristã e o conceito de dignidade humana. O trabalho levaria cinco anos para ficar pronto, segundo a apresentação do cardeal Victor Fernández.
Mas, enquanto isso, o papa Francisco levantou a bola na carta encíclica Fratelli Tutti, focalizando o princípio da fraternidade, na qual introduziu a expressão “dignidade infinita”, e afirmou que apenas “reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, podemos fazer renascer entre todos uma aspiração mundial à fraternidade.” A declaração Dignitas Infinita informa explicitamente, no parágrafo 6, que a Fratelli Tutti – que tivemos a oportunidade de discutir em vários artigos nessa coluna – “já constitui uma Magna Charta dos deveres atuais voltados a salvaguardar e promover a dignidade humana”.
Não que a Igreja Católica tivesse começado a pensar no assunto apenas em 2018, evidentemente; o tema da dignidade humana é, na verdade, derivado em grande medida da própria tradição cristã, e já estava na boca do papa João Paulo II em 1979. Tenho a impressão, no entanto, de que a percepção de uma progressiva corrupção no discurso de direitos humanos estimulou processos paralelos de reflexão crítica.
A estratégia geral do Vaticano consiste em um embate intelectual qualificado, disputando as definições dos princípios fundamentais dos direitos humanos, a partir da teologia moral cristã
Seja como for, a Dignitas Infinita oferece de modo sumarizado, mas bem claro, uma concepção teológico-filosófica de dignidade humana. Começa estabelecendo as utilíssimas distinções entre “dignidade ontológica”, “dignidade moral”, “dignidade social” e “dignidade existencial”. A dignidade ontológica seria inerente à pessoa humana, independente de suas circunstâncias e universal – o único modo de realmente bloquear usos desiguais e arbitrários do conceito. A dignidade moral, por outro lado, diria respeito às responsabilidades humanas, derivadas da própria dignidade ontológica, de viver à altura da vocação humana. De modo que o ser humano poderia se tornar “indigno da sua dignidade”, pela perversão moral e pela contradição de sua natureza. A dignidade social se refere às condições nas quais uma pessoa vive; e a dignidade existencial, à sua percepção e experiência de vida, que por muitas razões pode cair em miserabilidade. Em seguida o texto apresenta a sua discussão teológica, desde as Escrituras até o ensino da Igreja, fundando a dignidade humana nas doutrinas da Criação, da Encarnação e da Redenção.
Depois da fundamentação teológica, a declaração passa à definição mais detalhada e à defesa do conceito de dignidade humana, e finalmente o aplica em uma série de casos contemporâneos: pobreza, guerra, migrantes, tráfico de pessoas, abusos sexuais, violência contra a mulher, aborto, maternidade sub-rogada, eutanásia e suicídio assistido, descarte das pessoas com deficiência, teoria de gênero, mudança de sexo e violência digital.
Como a própria imprensa não deixou de notar, o Vaticano fala a linguagem dos direitos humanos em um dialeto diferente do que domina hoje o movimento internacional de DH, o jornalismo e a militância progressista. Pois, a partir da sua definição da coisa, a igreja observa graves distorções:
“... o conceito de dignidade humana foi às vezes usado de modo abusivo também para justificar uma multiplicação arbitrária de novos direitos, muitos dos quais em contraste com aqueles originalmente definidos e, não raro, postos em contraste com o direito fundamental à vida, como se fosse devido garantir a expressão e a realização de toda preferência individual ou desejo subjetivo. A dignidade se identificaria então com uma liberdade isolada e individualista, que pretende impor como ‘direitos’, garantidos e financiados pela coletividade, alguns desejos e algumas propensões subjetivas. Mas a dignidade humana não pode ser baseada sobre standards meramente individuais, nem identificada somente com o bem-estar psicofísico do indivíduo.”
“Sempre mais frequentemente existe o risco de limitar a dignidade à capacidade de decidir de modo discricional sobre si e sobre o próprio destino, independentemente daquele dos outros, sem ter presente a pertença à comunidade humana. Em tal compreensão errada da liberdade, os deveres e os direitos não podem ser mutuamente reconhecidos, de modo que se cuide uns dos outros.”
Esses dois trechos, nos parágrafos 25 e 26, tocam na alma do problema, em minha opinião, e revelam a estratégia geral do Vaticano. A questão, que levantei em meu primeiro artigo como colunista da Gazeta, em 2020, é que o dialeto liberal-progressista dos direitos humanos, com uma ênfase unilateral e distorcida nos direitos do indivíduo, alimenta a proliferação de direitos individuais, confundindo a sacralidade da vida humana com a sacralidade da vontade humana, e criminaliza qualquer doutrina que se oponha ao epicurismo moral dominante no mundo contemporâneo. Precisamente por essa razão, o princípio da fraternidade, um dos fundamentos da DUDH de 1948, perdeu completamente o seu lugar no debate e na advocacia por direitos humanos.
Mas não podemos confundir um dialeto com a língua. E uma língua mais fiel ao espírito da DUDH precisa resgatar e aplicar bem os seus princípios fundamentais. Isso tem sido feito nas encíclicas do papa Francisco, a despeito de seus problemas, e é feito com qualidade na Dignitas Infinita. É assim que essa declaração, como já observei, descreve o aborto, a prostituição, a barriga de aluguel, a teoria de gênero (corajosamente descrita como “ideologia”) e a medicina de mudança de sexo (exceto em casos de anomalias genitais) como doutrinas e práticas violadoras da dignidade humana.
É claro que o propósito da Igreja ao esclarecer o princípio da dignidade humana focaliza, acima de tudo, a defesa da dignidade humana. Mas me parece evidente um elemento apologético subsidiário. E, nesse sentido, a estratégia geral do Vaticano consiste em um embate intelectual qualificado, disputando as definições dos princípios fundamentais dos direitos humanos, a partir da teologia moral cristã.
Trata-se, assim, de um dos mais importantes esforços de teologia pública atualmente em curso, e aqui vai o meu elogio protestante: esse esforço é indispensável para impedir que o movimento internacional de DH mergulhe na decrepitude moral, e para orientar a formação moral das igrejas cristãs. E, quanto aos evangélicos, penso que eles deveriam se unir aos católicos na renovação da linguagem dos Direitos Humanos.
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