Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Ativismo judicial

Direitos afetivos: o salto é alto, mas as pernas são curtinhas

(Foto: Tú Ahn/Pixabay)

Ouça este conteúdo

Entre as muitas definições de “ideologia”, a mais conhecida e repetida é a de caráter negativo, derivada de Marx: uma falsa consciência. É claro que sua definição era inseparável de sua teoria de luta de classes, mas herdeiros posteriores suavizaram um pouco essa amarração. A versão de Karl Mannheim, em Ideologia e Utopia, tornou-se muitíssimo popular nos círculos progressistas: se entendemos que uma visão de mundo é ideológica, consideramos que “as ideias expressas pelo sujeito (...) são funções de sua existência. Isso significa que as opiniões, afirmações, proposições, e sistemas de ideias não são tomados ao pé da letra, mas interpretados à luz da situação de vida daquele que as expressa”.

No entanto, para Mannheim as ideologias seriam necessariamente conservadoras; visões de mundo e discursos que mascaram a realidade para mantê-la inalterável. Por outro lado, as utopias, também incongruentes com a realidade, seriam representações transformadoras, capazes de descolar a consciência do status quo e produzir mudanças revolucionárias.

Em outras palavras, o que o discurso ideológico está fazendo não é o que diz que está fazendo, mas outra coisa, que ele precisa mascarar. É uma definição útil, enquanto não tornarmos a crítica da ideologia em uma panaceia hermenêutica, com o fim de desqualificar sistematicamente tudo o que o adversário político tenta dizer. Seguir por essa estrada nos tornaria completamente surdos no debate político com os outros. Penso que as ideias de alguém podem sempre ser consideradas por sua consistência interna e seu mérito, à parte de sua função social e política objetiva.

No caso do movimento dos direitos afetivos e do trabalho político do campo afetivo como um todo (incluindo a classe psicológica, largas partes do jornalismo, da indústria cultural e as classes criativas nacionais), temos uma ideologia revolucionária

O filósofo político David Koyzis não foi o único a apontar o problema nessa distinção sedutora (e por si mesma ideológica) de Mannheim entre ideologia e utopia: o impulso transformador e progressista de uma mentira utópica não a torna menos mentirosa e, assim, menos ideológica. Não seria melhor admitir que falsa consciência é falsa consciência, e ponto?

A falsa consciência pode ser conservadora ou revolucionária; e, no caso do movimento dos direitos afetivos e do trabalho político do campo afetivo como um todo (incluindo a classe psicológica, largas partes do jornalismo, da indústria cultural e as classes criativas nacionais), temos uma ideologia revolucionária.

Temos trabalhado nessa coluna para explicitar melhor o que a revolução afetiva procura mascarar, para legitimar seu trabalho revolucionário. Relacionamos essa revolução, de modo sistemático, ao fenômeno do capitalismo emocional e aos esforços dos campos afetivos modernos, os propagadores do paradigma afetivo. Na coluna de hoje vamos colocar nossa lente diretamente sobre a falsificação que define o discurso afetivista.

Transformando o “fato” em norma

Em O Princípio da Afetividade no Direito de Família, o jurista Ricardo Calderón, ao qual nos referimos em artigos anteriores dessa coluna, ao descrever o processo que, em nossa opinião, constitui um patológico centramento subjetivo-sentimental na vivência familiar contemporânea, exemplifica a dinâmica existencial interna desse processo em seu próprio julgamento do processo histórico.

Segundo sua interpretação, ao fim do século 20 as relações familiares, mesmo mantendo aspectos biológicos, matrimoniais e registrais, passaram a expressar uma nítida dimensão afetiva, e algumas relações familiares eram sustentadas “apenas pelo vínculo afetivo”. Num primeiro momento, diante desse fato, “não restava possível verificar uma supremacia, sobreposição ou qualquer hierarquia entre tais critérios”.

Mas, vivendo nós a modernidade “líquida” também no mundo das famílias, não seria o papel do direito, por um “dirigismo legislativo”, impor um caminho à sociedade nesse respeito, mas tão somente interpretar e mediar conflitos, segundo o eminente jurista. Desse modo, reconhecendo que a afetividade teria assumido, “em muitas das relações familiares, o papel de verdadeiro vetor de tais relacionamentos”, Calderón conclui que “a sociedade adotou gradativamente o aspecto afetivo como suficiente” nessas escolhas e, assim, “restou possível perceber a centralidade que a afetividade assumiu em grande parte dos relacionamentos”.

Desse modo, Calderón sustenta que a família perdeu suas funções institucionais desenvolvendo uma função essencialmente afetiva, cujo foco ou telos seria a função eudemonista, ou seja, a felicidade emocional de cada um de seus membros individualmente e independentemente de fins reprodutivos, morais ou religiosos.

A leitura de Calderón mostra-se acrítica por negar a existência de um ponto de referência normativo para julgar o processo histórico, mas, ao mesmo tempo, tratar normativamente os resultados desse mesmo processo histórico estandardizando a eudemonística emotivista. Por um lado, alega-se a ausência de uma concepção substantiva de justiça para avaliar diacronicamente a revolução afetiva, negando-se a existência ou a importância de qualquer alegada “hierarquia de critérios” na dinâmica familiar. Por outro lado, o centramento afetivo, a despeito de sua emergência recente e de sua não universalidade (pois o autor admite que ele ocorre apenas “em grande parte” das relações), é elevado à posição de norma social (estabelecida por uma abstração nomeada como “sociedade”) e vem a ser proposto como categoria descritiva suficiente para todo o fenômeno chamado “família” e, assim, como o princípio dominante na regulação jurídica das relações familiares.

A família eudemonista é, mais honestamente, parte de uma configuração moral positiva, e o direito emotivista não participa do verdadeiro criticismo se permanece alheio a seus compromissos morais radicais

Tendo em mente, no entanto, que o emotivismo moral é um discurso moral, ainda que de uma moralidade carente de fins racionais e subserviente às intempéries emocionais do homem contemporâneo, torna-se insustentável a abordagem assumida por Calderón de que o modelo eudemonístico de família seria uma necessidade moderna de caráter amoral e histórico. A família eudemonista é, mais honestamente, parte de uma configuração moral positiva, e o direito emotivista não participa do verdadeiro criticismo se permanece alheio a seus compromissos morais radicais.

A abordagem de Calderón pode ser considerada ideológica na medida em que oculta seu programa substantivo por meio de uma naturalização e normalização do processo histórico, sem expor à luz do dia os absolutos a partir dos quais efetivamente julga esse processo histórico do ponto de vista diacrônico. Por meio desse ocultamento é que se torna capaz de alegar neutralidade e furtar-se à acusação de “dirigismo legislativo”. Cria-se, com isso, uma falsa consciência.

Chamando o mal de bem

Uma observação verdadeiramente crítica e não dogmática desse processo não pode satisfazer-se com legitimação de mutações sócio-históricas sem verificar se tais processos seriam progressivos ou regressivos, ou se envolvem aumento ou diminuição de situações de injustiça. Em especial, não pode satisfazer-se com a negação de existência de uma agenda histórica substantiva, ocultada nesse caso sob o véu do “mero processo histórico”. Na verdade, o próprio Calderón apresenta de modo cândido a agenda substantiva desse movimento:

“A percepção da família como espaço para a livre realização pessoal de seus integrantes é de importância singular, passando a ser descrita como precípua sua função eudemonista. A família passa a ser reconhecida como relevante esfera privada, vindo a se configurar como espaço para o livre desenvolvimento da personalidade individual. As pessoas buscam uma realização efetiva em cada uma das relações que travam socialmente, e a satisfação é o que justifica a sua permanência, ainda que por um curto período.”

O advento da “família eudemonista” não constitui tão somente um “fato social”, mas um fato de natureza moral; e sua compreensão crítica não está completa se suspende o julgamento crítico na descrição social saltando, diretamente daí, para o gesto inerentemente moral da ação jurídica.

Ora, faz-se suficientemente claro que a ética emotivista, por sua vez expressão moral do paradigma do Homo sentimentalis, é aqui normatizada pelo instrumento do direito, através de um colapso descritivo da ontologia da família sob as categorias reducionistas do fenômeno histórico do centramento subjetivo-sentimental.

O que é chamado de paradigma “eudemonista”, corretamente associando-o à moderna busca da felicidade, é a contrapartida moral do capitalismo de hiperconsumo; uma “mitologia eudemonista”, como Lipovesky notou com acerto, própria da presente fase do capitalismo global: “A felicidade é o valor central, o grande ideal celebrado sem tréguas pela civilização consumista”. Um ideal claramente irrealizável, pois fantasia um inexistente controle do destino:

“Assim, sob as aparências de um psicologismo triunfante, é pura e simplesmente o pensamento mágico que retorna ao universo contemporâneo. O hiperconsumidor tornou-se um demandante de neomagia, de remédios miraculosos baseados na onipotência da consciência, de fórmulas e rituais encantatórios que garantam que a felicidade é coisa que depende inteiramente de nós.
Não o ocultemos: como não ficar desconcertado diante dessa cascata de programas de beatitude, veiculando tanta ingenuidade quanto falsas promessas? Pois se existe uma coisa que a experiência da vida ensina é que somos realmente incapazes de nos tornar senhores da felicidade.”

O paradigma eudemonista-emotivista não é capaz de produzir outra felicidade que não a alegria evanescente da experiência de consumir; “famílias” eudemonistas não podem, a não ser acidentalmente, formar crianças capazes de ser algo mais do que isso

Temos aqui o pecado capital das tentativas do movimento dos direitos afetivos de vincular o princípio constitucional da dignidade humana com a tese eudemonística-emotivista, de modo a tornar moralmente inquestionável o laissez-faire afetivo, e a reconstruir o Direito de Família de modo a reestruturá-lo ao redor da “felicidade” de cada indivíduo: trata-se de promessas vazias e pensamento mágico. Alterar a natureza das coisas pela força das palavras, como se a vontade do mago se impusesse sobre a natureza, fazendo da abóbora uma carruagem: é a “oferta do bruxo”. Na realidade não pode alterar a natureza das coisas, e ainda compromete a alma que emprega seus serviços.

Pode-se, a partir do modelo eudemonista-emotivista, cultivar capitais morais e hábitos de virtude de modo a formar novos indivíduos aptos à vida em comunidade e à felicidade compartilhada? Isso parece ser uma aporia, uma vez que minimizar as frustrações e adaptar-se ao devir do capitalismo é o próprio gênio desse modelo:

“Outro fator sustenta a epidemia hipermoderna do mal-estar: trata-se das alterações relativas à educação familiar. [...] a educação de tipo tradicionalista e autoritário foi substituída por uma educação psicologizada, ‘sem obrigação nem punição’, voltada para o desabrochamento do filho, sua satisfação completa, sua felicidade imediata. Não mais ‘disciplinar’ e punir, mas fazer tudo para que o filho não fique insatisfeito e infeliz [...] a coerção parental é assimilada a um mau tratamento, uma ‘ofensa’, a uma forma de violência condenável [...]. Se essa psicologização da educação concretiza, por excesso, certos caminhos abertos pela psicanálise e pelas novas pedagogias no começo do século 20, ela só pôde se impor socialmente com o desenvolvimento da civilização do consumo e seus ideais hedonistas, apresentando-se a recusa de frustrar o filho como o estilo educativo concordante com os valores do conforto e do bem-estar individualista: sociedade consumista e educação sem coerção formam um sistema.
[...] Daí resulta uma forte insegurança psicológica, personalidades vulneráveis que não dispõem mais de disciplinas interiorizadas, de esquemas estruturantes que permitiam, em outros tempos, fazer face às provas difíceis da vida.”

O que citamos, aqui, é o próprio Lipovetsky, o mesmo referenciado por Ricardo Calderón para nos explicar a ascensão do paradigma eudemonista. O que se fez do trabalho crítico do professor Lipovetsky? Evaporou-se?

Evidentemente o paradigma eudemonista-emotivista não é capaz de produzir outra felicidade que não a alegria evanescente da experiência de consumir; portanto, “famílias” eudemonistas não podem, a não ser acidentalmente, formar crianças capazes de ser algo mais do que isso. Esse paradigma reduz-se, enfim, a uma versão epicurista e narcisista da ideia de felicidade que estabelece insolúvel e perigosa tensão entre o Self moderno e a ordem social, ao mesmo tempo em que o entrega ao domínio do capitalismo emocional. Esse ponto de vista emotivista, naturalmente, é defensável; ainda assim, não é neutro; é um programa moral substantivo, mas antinômico, que precisa ser enunciado como tal.

O que temos, ainda que num esquema socioconstrutivista e, assim, historicista, não é nem mesmo apenas uma normalização do centramento afetivo-sentimental, mas também uma padronização desse paradigma por meio do ativismo jurídico. Longe, desse modo, de apenas agir como humilde mediador de conflitos, o ativismo representado por este autor legitima a hipertrofia da dimensão afetivo-sentimental da experiência e o predomínio de um campo de poder social a partir de sua elite na formação do sujeito contemporâneo, cujo perfil identitário será constituído no contexto da “família eudemonística” afetivo-sentimental ou emotivista.

O STF pôs os direitos afetivos num salto alto, mas não tem jeito: as perninhas da mentira são curtas

Escondendo o jogo

Inúmeros exemplos similares dessa leitura ideológica do processo histórico poderiam ser coletados em publicações e falas de defensores do revisionismo na visão do casamento e da família, não apenas no campo afetivo e em suas extensões judiciárias, mas por todos os cantos de nossa academia e indústria cultural. O ponto é sempre o mesmo: a mudança é tratada como uma questão de “reconhecimento de direitos”, “progresso social”, “mudança histórica”, “saúde psicológica”, “emancipação individual”, e nunca como o que de fato é, em sua raiz: uma doutrina espiritual e moral imposta por uma elite cultural. E, mascarando esse caráter espiritual e moral, o campo afetivo e suas extensões jurídicas podem alegar laicidade, diversidade e universalidade para a sua agenda, como se ela não refletisse uma doutrina moral particular.

Por meio desse disfarce “democrático”, o particular é passado como universal, o monismo como pluralismo, a devoção como laicidade, o viés como neutralidade. E num passe de mágica semântica – sempre a mágica – a defesa da visão conjugal do casamento e da prioridade da família natural se torna “ideológica” (posto que conservadora) e os revisionistas se tornam emancipadores, libertadores da opressão doutrinária, em busca de uma utopia social.

O STF pôs os direitos afetivos num salto alto, mas não tem jeito: as perninhas da mentira são curtas.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.