Na última terça-feira, dia 24 de janeiro, o Papa Francisco deu uma entrevista exclusiva à Associated Press na qual criticou como injustas leis que criminalizam a homossexualidade. O fato foi repercutido aqui na Gazeta do Povo. “Homossexualidade não é crime”, disse o pontífice; no entanto insistiu: “mas sim, é pecado”. Do ponto de vista da doutrina da igreja, de sua posição na exortação apostólica Amoris Laetitia, e de muitas declarações sobre o tema desde seu tempo como Arcebispo de Buenos Aires, nada mudou: a homossexualidade ainda seria intrinsecamente desordenada, contrária à ordem da Criação.
Mas o ponto do papa não era, de fato, debruçar-se sobre a questão de mérito, da doutrina moral da Igreja, e sim tomar um lado bem claro na batalha internacional pelos direitos LGBTQIA+: “primeiro é preciso distinguir entre um pecado e um crime”. Como a reportagem da AP destacou, 67 países ou jurisdições no mundo criminalizam a prática homossexual, com 11 países impondo a pena de morte. E o papa tomou um lado nesse assunto. A inclusão civil de pessoas LGBTQIA+ precisa ser completa, e nesse assunto a igreja precisa estar do lado deles.
Daí em diante a coisa fica, como sempre, bastante nebulosa, com a reportagem mencionando ativistas que lutam por uma instrução inclusiva sobre orientação sexual e diversidade de gênero nas escolas, o que evidentemente deixa o campo da descriminalização e ingressa na seara da doutrinação moral, o que por certo não foi o ponto do papa.
Fiquei pensando com meus botões em que o nosso novo ministro dos Direitos Humanos, o Dr. Sílvio Almeida, pensou a respeito disso, se é que pensou alguma coisa. Ou o que pensou a secretária LGBTQIA+, Symmy Larrat. Ou o que pensou Cida Gonçalves, a nossa Ministra da Mulher. O que planejam eles dizer ou não dizer aos católicos e evangélicos que pensam como o papa? Se não pensaram em nada, deveriam pensar. Afinal de contas, é muita gente.
No tocante à declaração e às reações da mídia, não houve, claro, novidade alguma. Sempre que o papa faz um pequeno gesto em direção a um líder político questionável, ou a uma religião diferente do Catolicismo Romano ou do próprio Cristianismo, ou quando se aproxima de algum representante de discursos oponentes, logo vemos aquela enxurrada de manifestações por parte de críticos da doutrina católica, na esperança de que a Igreja Católica finalmente abandone... o catolicismo. Parece difícil às mentes ordinárias imaginar que alguém proponha uma convivência, um respeito e até um amor no meio da divergência.
E sendo a minha mente igualmente ordinária, eu reconheço a dificuldade. É muito difícil amar em pleno desacordo, respeitar no meio da disputa, e incluir o que não posso aceitar. Pois é isso mesmo o que o papa tenta alcançar, essa missão impossível do cristianismo: amar enquanto dizemos não, e amar com firmeza cada vez maior enquanto deixamos cada vez mais claro o nosso não.
Certamente há, aqui, um processo evolutivo no discurso moral da igreja; enquanto João Paulo II e Bento XVI colocaram grande ênfase nos fundamentos da teologia moral da igreja, no tocante à doutrina do corpo, do sexo e da família, e buscaram atualizar a concepção de uma unidade radical entre ordem da Criação e evangelho, Francisco prioriza os desafios pastorais e políticos da resposta a uma sociedade crescentemente pós-cristã, na qual os cristãos precisam manter sua divergência moral enquanto imitam o amor do mestre pelos pecadores. É uma situação inédita na história da igreja. Trata-se de lutar pela dignidade existencial das pessoas LGBTQIA+ enquanto insistindo na indignidade moral, pela ótica cristã, dos modos de vida LGBTQIA+.
É muito difícil amar em pleno desacordo, respeitar no meio da disputa, e incluir o que não posso aceitar
A impressão que tenho é que isso agrava tremendamente o desafio de ser cristão na contemporaneidade. Fáceis eram os tempos em que lançávamos todos os pecados que condenamos na vala comum do crime e da perversidade (fáceis, naturalmente, para o establishment cristão, não para os outros). Mas o próprio Cristianismo alimentou o princípio da fraternidade, e um olhar caridoso para com o próximo que aprende a olhar com atenção e discernir os grandes e até mesmo os pequenos sinais da bondade divina naquilo que está fora da igreja: um ateísta amoroso, um muçulmano sábio, um umbandista carinhoso, um gay que é também um amigo fiel, um herege que ama a sua família. A constatação dessas coisas não atenta contra a verdade cristã, nem contra a boa teologia ortodoxa, mas contra o meu coração farisaico e tribal.
O desenvolvimento dessas duas dimensões da mente cristã – a afirmação de uma ordem criacional divinamente estabelecida, por um lado, e do universalismo agápico por outro – nos levou a um tremendo impasse histórico. Temos, à “direita”, uma forte ênfase conservadora na lei natural e na proteção da natureza humana, da vida e da comunidade; e à “esquerda” outra forte ênfase na dignidade da pessoa, na inclusão do diferente, no princípio da igualdade. E assim, a situação mais absurda e até mesmo cômica: uma guerra de valores cristãos, por extremos oportunistas e cada vez menos cristãos.
Falando sobre as turbulências ligadas ao movimento woke, o historiador britânico Tom Holland descreveu essa “guerra civil” no coração de nossa civilização cristã em termos incrivelmente iluminadores:
“Na realidade, evangélicos e progressistas foram ambos reconhecivelmente gestados na mesma matrix. Se os oponentes do aborto fossem herdeiros de Macrina, que vagueava pelos lixões da Capadócia atrás de infantes abandonados para resgatar, aqueles que argumentam contra eles se baseiam similarmente em uma suposição cristã profundamente enraizada: a de que o corpo de cada mulher é seu, e que ele deve ser respeitado como tal por cada homem. Apoiadores do casamento gay são tão influenciados pelo entusiasmo da Igreja pela fidelidade monogâmica quanto são aqueles tocados pelas condenações bíblicas contra homens que se deitam com outros homens. Instalar banheiros transgêneros pode realmente parecer uma afronta ao Senhor Deus, que criou macho e fêmea; mas recusar a benevolência aos perseguidos seria ofender os mais fundamentais ensinos de Cristo. Em um país tão saturado de suposições Cristãs como os Estados Unidos, não poderia haver qualquer escape da sua influência – mesmo para aqueles que imaginam ter escapado. As guerras culturais eram menos uma guerra contra o cristianismo que uma guerra civil entre facções cristãs.” (Tom Holland, Dominion: The Making of the Western Mind, 2019)
O historiador admitirá que muitas dessas facções cristãs nem mesmo se reconhecem como cristãs; é como se o cristianismo continuasse a reinar sem a necessidade de cristãos professos. Naturalmente, a definição de “cristão” de Holland é bastante elástica; não se trata de devotos de Jesus, mas devotos de princípios que tem nele a sua raiz definitiva. Sob outro ponto de vista, poderíamos legitimamente dizer que esses dois extremos são seitas, heresias do cristianismo, tentando separar o que não pode ser separado: a natureza e a graça, a lei e o amor, a verdade e a misericórdia. É de fato uma guerra civil na civilização cristã, mas ambos os lados andam muito distantes do próprio Cristo.
E esse cabo-de-guerra é o que torna tão improvável o caminho escolhido pelo papa Francisco, que escolhe manter unido o que Deus ajuntou: a afirmação da lei divina e o coração aberto para amar em demonstrações práticas, como assegurar a proteção civil para modos de vida moral contrários à mesma lei divina. Seria isso um suicídio para a igreja de Cristo? Eu não penso assim. Se não conseguimos imaginar uma sociedade que acomode as duas coisas, será necessário imaginar. E esses dois modos sentir não poderão ser impossíveis no mundo se forem possíveis no coração de uma pessoa.
Quanto a isso, eu gostaria que o nosso ministro dos Direitos Humanos ouvisse ao Papa Francisco e a tantos líderes cristãos que acompanham o pontífice. Eu já sei que ele concorda com o ponto principal do papa, sobre a plena cidadania LGBTQIA+. Mas no caso do Brasil, estamos muito perto dessa plena cidadania, e outro problema começa a se tornar muito mais grave: o problema da coexistência de pessoas secularizadas, que não adotam a ética sexual cristã, e as pessoas cristãs, que não aprovam as moralidades LGBTQIA+. Esse problema vem alimentando as chamas da guerra cultural. Será que o nosso ministro tem uma solução para isso?
Eu gostaria que ele pensasse como o papa Francisco: que é preciso construir um mundo no qual haja plena inclusão civil das pessoas LGBTQIA+, sem com isso promover o silenciamento das igrejas, nem a supressão da liberdade de expressão religiosa. Um mundo no qual o cristão possa dizer a seus amigos LGBTQIA+ que sua moralidade sexual é pecaminosa e inadequada, e que esses amigos possam retrucar ao cristão que suas ideias morais são pobres e ultrapassadas; um mundo em que moralidades sexuais mutuamente exclusivas possam ser sustentadas e discutidas por cidadãos igualmente plenos na comunidade política.
Mas para tanto, o Dr. Sílvio Almeida precisaria falar em algo mais do que “diversidade”, que sempre foi a política lulopetista nesses assuntos, e que não engana mais ninguém. Ele precisaria falar em pluralismo de verdade, e pluralismo de verdade é bem mais do que a mera diversidade cosmética, carnavalesca. Pluralismo é reconhecer a legitimidade da divergência. Será que o nosso novo ministro dos Direitos Humanos está disposto a reconhecer o direito dos líderes religiosos e dos pais cristãos de ensinar a seus filhos a divergência no campo da religião e da moralidade sexual? Está ele e sua equipe disposta a construir a convivência e a tolerância entre os divergentes, ou seguirá a prática estabelecida na política nacional, de pregar apenas para os convertidos, e fingir que os outros não existem? Está ele disposto a propor uma trégua nessa guerra civil da cristandade pós-cristã?
Não seria maravilhoso, para o nosso país, se o Ministro dos Direitos Humanos, nossa maior autoridade nesse campo, batesse um papo sobre inclusão LGBTQIA+ e liberdade religiosa com o papa Francisco?
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