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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Análise

Educação e sabedoria em uma cultura polarizada

(Foto: Ilustração Felipe Lima)

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Em agosto de 2012 a revista Psychological Science publicou um paper que se tornou referência nos estudos científicos sobre sabedoria baseada em evidências: Aging and Wisdom: culture matters (“envelhecimento e sabedoria: a cultura importa”).

Adotando uma concepção formalizada de sabedoria, envolvendo esquemas “metacognitivos” como a incorporação de opiniões de outras pessoas, sensibilidade para mudanças, flexibilidade na resposta a conflitos, humildade intelectual, interesse pela resolução de conflitos e por acordos, e capacidade de prever resolução de conflitos, os estudiosos buscaram comparar os padrões de resposta de americanos e japoneses jovens e velhos. A ideia era checar se a diferença cultural produziria algum resultado diferente.

Os resultados foram interessantíssimos, embora não surpreendentes, dependendo do ponto de vista. Igor Grossmann e a equipe de pesquisadores descobriram que a sabedoria pessoal, manifesta especialmente na capacidade de gerenciar e superar conflitos, cresce bastante com a idade, entre americanos, mas que isso não acontece entre os japoneses. E a razão seria que jovens japoneses mostram desde cedo níveis de sabedoria similares aos de japoneses idosos.

Por outro lado, ao comparar idosos das duas culturas, a equipe descobriu que eles se equivalem na gestão de conflitos interpessoais, mas os americanos seriam um pouco melhores na gestão de conflitos intergrupais; uma hipótese para explicar isso seria a longa experiência na gestão de conflitos, que tendem a ser exacerbados na cultura americana.

As medições do grau de capacidade cognitiva, ou inteligência baseada em conhecimento, não apresentaram qualquer modificação no comparativo entre as culturas japonesa e americana; a variância detectada claramente dizia respeito aos fatores metacognitivos que sinalizam a sabedoria prática.

O resultado mais importante do estudo foi o reconhecimento de que a cultura interfere diretamente na constituição da virtude da sabedoria, e que uma cultura mais individualista e conflitiva aparentemente atrasa o processo de aquisição de sabedoria:

“Os resultados reportados aqui indicam que japoneses, cuja cultura encoraja a harmonia interpessoal, ganham sabedoria sobre conflitos sociais e como evita-los antes que os americanos. Quando pensam sobre conflitos interpessoais ou intergrupais, japoneses jovens e de meia-idade, na média, dão respostas mais sábias que os americanos.” (Grossmann et alii, 2012).

A sabedoria será enfim obtida também pelos americanos, embora mais tarde, mas isso pode envolver algum tipo de custo pessoal e social. Mas o que dizer sobre essa diferença cultural?

Educação na cultura Weird

Em ocasiões diferentes nós levantamos aqui o tema da cultura W.E.I.R.D., como a descreve Jonathan Haidt: Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic (“Ocidental, Educada, Industrializada, Rica e Democrática”): ao interpretar o especial do “Porta dos Fundos”, na explanação da polarização política e da “guerra civil dos sentimentos morais”, e na crítica da “ideologia dos direitos humanos”. A cultura WEIRD parece estar diretamente associada aos resultados de Grossmann.

Segundo a psicologia moral de Haidt, culturas sociocêntricas tendem a apresentar um discurso moral mais variado, com escrúpulos morais que incluem respeito a normas coletivas, como honra a autoridades, lealdade e sentido do sagrado, além das normas que enfatizam a dignidade do indivíduo. Os grandes centros urbanos ocidentais, e pessoas mais alinhadas com seus valores individualistas, teriam um discurso moral mais centrado no indivíduo, e menos comunitário.

É assim, por exemplo, que na maior parte do mundo zombar de coisas sagradas seria inadmissível, mas isso seria aceitável a pessoas de páthos WEIRD. Por outro lado, questionar a moralidade sexual de um indivíduo é admissível em culturas sociocêntricas, mas inadmissível para pessoas WEIRD.

Discutindo os resultados de Grossmann, o jornalista americano David Robson juntou os pontos, citando outros estudos que indicariam uma visão de mundo muito mais holística e interdependente entre os japoneses, com menor foco no “Self”. E testes comparando a percepção de Self de americanos e de outras culturas confirmariam o ponto:

“Em um dos mais simples testes ‘implícitos’, pesquisadores pediram a participantes para desenhar um diagrama de sua rede social, representando suas famílias e amigos e seus relacionamentos uns com os outros…
Em países WEIRD como os EUA, as pessoas tendem a representar a si mesmas maiores que seus amigos (em torno de 6mm na média), enquanto pessoas da China ou do Japão tendem a desenhar a si mesmas levemente menores que as pessoas a seu redor. Isso também se reflete nas palavras que elas usam para descrever a si mesmas: Ocidentais são mais propensos a escrever seus próprios traços de personalidade e realizações, ao passo que povos da Ásia Oriental descrevem suas posições na comunidade. Essa forma menos individualista e mais ‘holista’ de ver o mundo a seu redor pode ser vista na Índia, no Oriente Médio e na América do Sul, e há alguma evidência emergente de que pessoas em culturas mais interdependentes acham mais fácil adotar diferentes perspectivas e absorver outros pontos de vista – elementos cruciais que poderiam melhorar a qualidade do pensamento.” (David Robson, The Intelligence Trap, 2019).

Se Robson estiver correto, a cultura moral WEIRD, marca registrada do liberalismo terapêutico estadunidense, epitomizado nas políticas identitárias dos EUA mas enraizado em sua educação liberal, disseminado na cultura pop e replicado na própria religiosidade americana – em todo o “capitalismo emocional” (Eva Illouz) contemporâneo – traria, com todos os benefícios da autonomia individual, uma espécie particular de atraso cognitivo entre os jovens. Ou, para empregar a linguagem técnica do campo, um atraso metacognitivo.

Esse atraso seria um traço inevitável da socialização segundo o paradigma moral do Homo Sentimentalis, segundo venho argumentando já há algum tempo. Penso que cabe muito bem aqui o lamento de Mark Lilla, em “O Progressista de Ontem e o de Amanhã” a respeito desse sistema de produção e reprodução da retração narcisista que acomete a vida política ocidental:

“De todos os desdobramentos que discuti neste livro, o mais autodestrutivo do ponto de vista liberal é a educação baseada na identidade… A pedagogia liberal da nossa época, com seu foco em identidade, é na verdade uma força de despolitização… ao enfraquecer o “nós” democrático universal, sobre o qual a solidariedade pode ser desenvolvida, o dever, instilado, e a ação, inspirada, desfaz em vez de fazer cidadãos. No fim, essa atitude apenas intensifica todas as forças de atomização que dominam nossa época…” (Mark Lilla, The Once and Future Liberal, 2018)

Se os jovens na cultura WEIRD – que não se restringe aos EUA, segundo Jonathan Haidt, mas a todos os grandes centros urbanos e à elite cultural ocidental de hoje – vêm realmente sendo formados com menor capacidade de troca intergeracional, menos disposição comunitária e com um déficit em demonstração de sabedoria prática, há pouca esperança de despolarização política e elevação do sentido de bem comum sem uma reforma pedagógica bastante intencional.

Educar para a sabedoria

A admissão de que sabedoria é mais do que inteligência é um passo que muitos educadores ou gestores educacionais já deram. O problema é o passo seguinte: alterar nossas práticas pedagógicas e tirar a inteligência lógico-analítica do pedestal. Mesmo onde se reconhece, por exemplo, a tese das “inteligências múltiplas”, o conceito de sabedoria não recebe a devida atenção por sua dimensão de virtude moral, que faz defensores de pedagogias liberais ou libertárias torcerem o nariz.

Não seria justo colocar toda a carga sobre educadores, no entanto. O desinteresse pela resolução de conflitos e pela mediação criativa de tensões se espraia por todo o espectro político, pelo campo do mercado, pela universidade e pelo jornalismo. Trata-se de uma enfermidade crônica.

Mas o que se pode fazer além de análises pessimistas? Eu sugeriria uma série de ações possíveis para o médio e o longo prazo:

Em primeiro lugar, projetos educacionais voltados para a educação básica e a educação superior com foco na criação de capitais sociais e no bem comum. Em termos práticos, tais projetos visariam engajar a comunidade estudantil e ações cujo foco seria o melhoramento físico, psicológico e social do espaço comum. Trabalhando juntos no cuidado de suas coisas, os estudantes poderiam se aproximar afetivamente e assumir protagonismo cívico; essas condições seriam facilitadoras da sabedoria prática. A experiência revolucionária do Projeto Estudantes de Atitude, iniciada no DF pelo trabalho pioneiro de Henrique Ziller (atual Controlador Geral de Goiás), Everton Kischlat e Diego Ramalho, entre outros, é um bom exemplo do tipo de política educacional que deveria ser nacionalizada.

Outra ação importantíssima seria um projeto extracurricular de formação para a sabedoria a ser disponibilizado para os pais de estudantes do ensino básico. Essa poderia ser uma política sistemática envolvendo cooperação da Secretaria Nacional da Família, Ministério da Educação e as secretarias de educação estaduais e municipais.

Seria também interessante que a ciência contemporânea da sabedoria, como vem sendo desenvolvida no Chicago Center for Practical Wisdom, ou segundo o Berlin Wisdom Paradigm desenvolvido no âmbito do Max Plank Institute for Human Development, se tornasse categoria de formação política, sendo incorporada em programas educacionais de partidos, coletivos políticos e projetos de formação política.

O desafio da educação nas mídias sociais

Penso que um destaque especial precisa ser dado para o ambiente virtual, que evidentemente fervilha de tensões, desrespeito e confrontos inúteis – ou melhor, bastante úteis para os que se aproveitam de mecanismos de contágio social para manipular opiniões e gerar dinheiro, votos e outros dividendos.

Ambientes virtuais que concentram a conflitividade, como o twitter, são excelentes fontes de informação para a investigação científica sobre o páthos contemporâneo. Mas eis a pergunta crucial: seria possível desenvolver programas de informação e estímulo ao aprendizado da sabedoria prática, desenhados para esses ambientes, capazes de contrabalançar essa conflitividade?

Poderia o twitter deixar de ser uma ferramenta WEIRD e se tornar uma estufa para o cultivo da sabedoria?

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