Monumento a Karl Marx na cidade alemã de Chemnitz.| Foto: Dirk Liesch/Pixabay
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Uma das categorias teológicas mais usadas nos últimos anos para interpretar teologicamente os fenômenos políticos recentes tem sido o conceito de “idolatria”. Foi um dos conceitos-chave no livro A Religião do Bolsonarismo, lançado por Yago Martins há poucos dias, e que foi objeto de nossa entrevista da semana passada.

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Esse conceito tem um papel central também no livro do cientista político canadense David Koyzis Visões e Ilusões Políticas: uma Análise & Crítica Cristã das Ideologias Contemporâneas. A primeira edição é de 2003, premiada no Canadá em 2004, e a tradução para o português veio apenas em 2014, pelo trabalho cuidadoso de Lucas Grassi Freire. A segunda edição revisada e ampliada, a qual tive a honra de endossar, foi publicada em 2019, e a tradução em português acabou de sair do forno pela editora Vida Nova.

Não se trata de uma peça de análise política nem de uma tese especialmente nova, mas de uma discussão original sobre as compatibilidades e incompatibilidades de diversos discursos políticos com a fé cristã. Nesse sentido, Koyzis nos deu uma obra singularmente útil para desanuviar as conversações difíceis e inevitáveis sobre os cristãos e as crenças políticas modernas.

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Dr. Koyzis, seu livro é uma introdução bastante incomum às ideologias políticas contemporâneas, assumindo um ponto de partida especificamente cristão para avaliar essas visões. Vamos começar com o próprio conceito de “ideologia”: você tentou aproximar esse conceito da ideia cristã teológica de “idolatria”. Pode nos explicar o objetivo deste movimento?

Isso foi algo que eu notei quando jovem, enquanto explorava os debates políticos daquela época. Mesmo lidando com as mesmas questões, as pessoas simplesmente praticavam um diálogo de surdos, porque estavam nas garras das visões alternativas da vida, juntamente com suas implicações para a vida política. Se você é socialista, verá as coisas de uma perspectiva diferente do que se você for um liberal, mesmo quando ambos são confrontados com os mesmos dados brutos da experiência humana. O termo “idolatria” me pareceu a melhor maneira de explicar o que estava acontecendo. Não estamos errados em estimar, por exemplo, liberdade individual, solidariedade comum, tradição, e assim por diante. Mas se superdimensionamos essas coisas, permitindo que elas expulsem o Deus que as criou, então nós, de fato, fazemos delas ídolos.

“Todas as ideologias de que trato no livro oferecem um tipo de história de salvação que seus seguidores veem como uma fonte de esperança para o futuro. São falsas esperanças, naturalmente, mas, se você não tem a esperança que encontramos em Jesus Cristo, você procurará um substituto de algum tipo.”

David Koyzis

Quais opiniões políticas você escolheu para explicar com este método?

O liberalismo, o conservadorismo, o nacionalismo, o democratismo e o socialismo, que são as principais ideologias do nosso mundo hoje.

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Desde a primeira edição em português do seu livro, temos visto algumas mudanças de cenário no debate político, tanto na América do Norte quanto no Brasil. Por aqui assistimos à ascensão meteórica das perspectivas liberais e conservadoras ao poder, depois de anos de domínio esquerdista, e nos EUA vimos o surgimento de críticas muito interessantes do liberalismo. Creio que você expandiu sua discussão dessas duas ideologias, certo? Pode falar um pouco sobre isso?

A maior mudança foi no meu tratamento ao liberalismo, que reflete uma mudança maior no foco no livro como um todo. Enquanto a primeira edição trata as ideologias como fundamentalmente religiosas na raiz, a segunda edição se concentra nas histórias redentoras que sustentam essas ideologias. Argumento que elas imitam a história bíblica da salvação, oferecendo uma contrapartida ao fluxo narrativo da criação, queda, redenção e consumação final. Na verdade, todas as ideologias de que trato oferecem esse tipo de história de salvação que seus seguidores veem como uma fonte de esperança para o futuro. São falsas esperanças, naturalmente, mas, se você não tem a esperança que encontramos em Jesus Cristo, você procurará um substituto de algum tipo.

Em relação à ideologia conservadora: algumas pessoas, seguindo as opiniões de Russell Kirk, diriam que esta não é uma ideologia típica. Como você responde a essa objeção?

Definitivamente há algo nisso. O conservadorismo é a única ideologia que eu trato da qual eu não poderia encontrar nenhuma verdadeira narrativa redentora dando-lhe sustentação. Ao contrário do liberalismo e do socialismo, que se baseiam em princípios que são, em alguma medida, coesos, o conservadorismo tem uma certa inclinação pragmática que reflexivamente adere à tradição, independente do que essa tradição seja. Sempre que leio alguém afirmando isso ou aquilo sobre supostos “princípios conservadores”, eu costumo balançar a cabeça. Normalmente, um conservador está acusando outro conservador de não aderir aos princípios conservadores. Mas as tradições são múltiplas, diferindo de tempos em tempos e de um lugar para outro. Isso diferencia o conservadorismo das outras ideologias do livro. Você vai procurar em vão um conjunto coerente de princípios conservadores. Essa falta é o que muitas vezes condena os conservadores apenas a reagir e os deixa impotentes na arena política.

Um dos pensadores com maior influência em suas opiniões é o filósofo holandês Herman Dooyeweerd. Você explicaria aos nossos leitores por que o vê como um pensador político contemporâneo tão relevante?

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Comecei a ler Dooyeweerd por volta dos 20 anos. Enquanto seu estilo escrito é um pouco túrgido, eu achei suas ideias convincentes. Como herdeiro do polímata holandês e primeiro-ministro Abraham Kuyper, sua filosofia cresce a partir da convicção fundamental de que não há parte da vida que esteja fora do escopo da criação, queda e redenção em Jesus Cristo. Além disso, ao distinguir entre as coisas da criação e as formas como elas funcionam, acredito que Dooyeweerd nos deu uma poderosa arma contra as várias formas de reducionismo que nos cegam à pura diversidade da criação de Deus. O liberalismo, por exemplo, faria com que toda comunidade humana se tornasse uma mera associação voluntária, sujeita apenas às vontades dos indivíduos componentes. Mas isso não pode explicar adequadamente instituições tais como o casamento, a família, a igreja e o Estado, que não são facilmente redutíveis às vontades dos membros. A filosofia de Dooyeweerd leva a sério a natureza interior das diferentes comunidades que compõem uma sociedade diferenciada típica.

Voltando ao seu livro, gostei muito da sua comparação entre o pensamento político neocalvinista e a doutrina social católica romana. Eu adoraria ver mais dessa cooperação entre visões reformadas e católicas; você apontaria casos interessantes de cooperação estratégica? Ou ainda é algo apenas teórico?

Não é apenas teórico. Nos Estados Unidos há um projeto ecumênico chamado “Evangelicals and Catholics Together” (Evangélicos e Católicos Juntos), fundado por Charles Colson e pelo padre Richard John Neuhaus em 1994. Questões como aborto, casamento e liberdade religiosa uniram os dois grupos. Embora o lado evangélico não seja necessariamente neocalvinista na orientação, o princípio kuyperiano da soberania em sua própria esfera tem muito em comum, especialmente do ponto de vista prático, com o princípio católico da subsidiariedade, como ensinado por papas como Leão XIII, Pio XI e João Paulo II. Ambos favorecem o que eu chamaria de pluriformidade social ou a pluriformidade das autoridades em contraste com o individualismo e os vários tipos de coletivismo.

“Não devemos esperar que todos acreditem como nós. No entanto, temos todo o direito de exigir um lugar à mesa, por assim dizer.”

David Koyzis

Concordo; mas as interpretações disso não são homogêneas no romanismo, não é? O que você diria, por exemplo, sobre o reputado integralismo católico de Adrian Vermeule? Não me parece muito compatível com a visão neocalvinista; gostaria de saber como os cristãos evangélicos estão vendo isso na América do Norte. Já vi alguns escritores brasileiros bastante chateados com suas ideias.

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Não conheço bem os escritos de Vermeule, mas notei que ele recentemente se tornou católico romano e, portanto, tem todo o zelo de um convertido. O integralismo católico ou qualquer coisa semelhante não decolará em uma sociedade caracterizada por uma diversidade de crenças religiosas, enquanto uma abordagem neocalvinista é totalmente capaz de levar essa realidade em conta. Não devemos esperar que todos acreditem como nós. No entanto, temos todo o direito de exigir um lugar à mesa, por assim dizer. O melhor que devemos esperar na era atual antes do retorno de Cristo é que os seguidores de diferentes visões de vida respeitem uns aos outros e estejam dispostos a compartilhar poder social, cultural e político. Isto concorda bastante com o profeta bíblico Jeremias, que instrui o povo exilado de Israel a “buscar a paz e a prosperidade da cidade para a qual eu o carreguei para o exílio. Ore ao Senhor por isso, porque se ela prosperar, você também prosperará” (Jeremias 29,7). Ou, em termos agostinianos, os cidadãos da Cidade de Deus e da Cidade deste Mundo têm interesse em manter a paz temporal, a estabilidade e a justiça no entretempos.

Outro desafio para esta ponte católica-reformada, pelo menos até onde eu enxergo, são essas versões de perspectivas de “dois reinos” de religião e política, como a de David VanDrunen. Outra, que temos em português agora, é As Chaves do Reino (Political Church), de Jonathan Leeman. Parece-me que essas visões reagem muito contra a visão neocalvinista clássica de um testemunho cristão em todas as esferas da sociedade. Você chegou a se engajar com o trabalho de Leeman?

Eu escrevi um endosso para o Political Church de Leeman, porque ele oferece uma brilhante análise do liberalismo. No entanto, estou menos entusiasmado com sua visão da igreja como uma “polis alternativa”, porque não explica adequadamente o lugar distinto da comunidade política no mundo de Deus. Quanto à abordagem dos “dois reinos” de VanDrunen, Hart e outros, ela deixa muita coisa sem explicação. VanDrunen confunde o liberalismo como ideologia com as chamadas “instituições liberais”, como o Estado democrático. A teologia de dois reinos me parece insuficientemente alerta para o papel desempenhado pelas visões espirituais fora da igreja institucional.

Imagino que a essa altura você também tenha tido algum tempo para pensar sobre essa perspectiva de extrema-direita e antiglobalista relacionada a nomes como Steve Bannon, Olavo de Carvalho e Alexandr Dugin. Benjamin Teitelbaum relacionou esses nomes a um movimento “perenialista”. Você tem alguma opinião sobre este fenômeno?

Quando nos deparamos com um novo movimento de qualquer tipo, precisamos primeiro dar um passo atrás e determinar quais são suas características positivas antes de podermos criticá-lo adequadamente. Com relação ao antiglobalismo, seu elemento de verdade é que as pessoas são naturalmente mais apegadas e inseridas em suas comunidades locais do que em uma humanidade abstrata como um todo. Além disso, a pandemia de Covid-19 demonstrou vividamente os perigos de uma comunidade global totalmente integrada com fronteiras porosas. Aqueles que defendem o globalismo são geralmente aqueles que mais ganham com isso, o que significa que os globalistas, longe de abraçar o mundo inteiro como afirmam, são, em alguma medida, leais à sua própria pequena comunidade de globalistas, os quais dificilmente são menos paroquiais do que as pessoas ligadas a comunidades e costumes mais tradicionais.

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Ao mesmo tempo, apenas reagir a algo não constitui, por si só, uma alternativa coesa. As várias formas de populismo que vimos chegando ao poder nas pessoas de Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro estão enraizadas nessa reação. Em contraste, uma justiça pública mais sintonizada com uma visão de mundo bíblica reconhece as múltiplas camadas das nossas lealdades e as diversas reivindicações sobrepostas que nossas comunidades fazem sobre nós. Nossas comunidades políticas são obrigadas a fazer justiça tanto no país quanto no exterior. O grau adequado de integração global é uma questão prudencial a ser determinada pelas condições no terreno, especialmente a situação dos mais pobres e menos favorecidos entre nós.

Mencionei o movimento perenialista, mas há outro tema político do qual muito senti falta no seu tratamento: o movimento global dos direitos humanos. Entendo que ele não representa uma ideologia política completa, claramente distinguível das outras que você especifica no livro, mas ainda assim me parece uma das ideologias mais poderosas atualmente em operação. Como devemos entender esse movimento aplicando o seu conceito de idolatria política?

Existem várias ideologias compostas, com as quais eu poderia ter lidado no meu livro; incluindo, por exemplo, a revolução sexual, o feminismo, o ambientalismo e a Teoria Crítica da Raça. O movimento dos direitos humanos é uma dessas. Na verdade, muitas vezes pensei que os direitos humanos se tornaram a religião estabelecida aqui no Canadá, porque são muitas vezes usados como um “trunfo” para silenciar outras considerações legítimas, incluindo a liberdade religiosa. Na vida política comum, se alguém ou algum grupo faz uma reivindicação de um direito, essa reivindicação precisa ser ponderada na balança para determinar se é uma reivindicação legítima e se essa reivindicação colocará em risco os direitos dos outros. Mas muitas pessoas usam os direitos humanos para cortar a deliberação no início: se você discorda da minha reivindicação de direitos, você é culpado de violar meus direitos humanos! Nesse respeito, sim, os direitos humanos são uma ideologia idólatra. E são uma ideologia mista, porque contêm elementos de liberalismo, socialismo, democratismo e nacionalismo jogados na mistura.

“O melhor que devemos esperar na era atual antes do retorno de Cristo é que os seguidores de diferentes visões de vida respeitem uns aos outros e estejam dispostos a compartilhar poder social, cultural e político.”

David Koyzis

Ouvi dizer (risos) que você gosta muito do Brasil e da língua portuguesa! Está acompanhando as notícias locais? Como você lê o cenário político brasileiro atual?

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Eu absolutamente amo o Brasil e seu povo! Como alguém de ascendência cipriota grega, eu facilmente abraço amigos quando os vejo. O Brasil é um país inteiro de pessoas que fazem a mesma coisa! A este respeito, acho profundamente frustrante o distanciamento social exigido pela atual pandemia. Estou ansioso por um retorno à normalidade. E espero que um dia possa voltar ao Brasil e abraçar todos que conheço!

Quanto ao cenário político brasileiro, penso que há três grandes problemas: 1. a corrupção endêmica que prejudica a vida política há décadas; 2. a confiança que as pessoas colocam em salvadores políticos na Presidência; e 3. a pandemia global, que tem afetado desproporcionalmente o Brasil. Acredito que esses três elementos estão interligados. É aqui que as ideologias políticas desempenham um papel. Se estamos vendo a realidade através de uma das lentes distorcidas por uma falsa narrativa redentora, erraremos em nossas soluções propostas para os males políticos e sociais contemporâneos. Além disso, pode ser que reformas políticas básicas, juntamente com uma mudança duradoura nas atitudes públicas, sejam necessárias para quebrar o domínio de figuras seminapoleônicas no imaginário público.

“Muitas pessoas usam os direitos humanos para cortar a deliberação no início: se você discorda da minha reivindicação de direitos, você é culpado de violar meus direitos humanos! Nesse respeito, sim, os direitos humanos são uma ideologia idólatra.”

David Koyzis

À medida que as boas notícias de Jesus Cristo continuam a se espalhar entre os brasileiros, vamos orar para que eles olhem cada vez mais para Ele como fonte de salvação, e que reduzam suas expectativas em líderes políticos. Ao mesmo tempo, imagine um Brasil onde um movimento de justiça pública esteja em condições de eleger candidatos ao Congresso e à Presidência. Um movimento dedicado a acabar com a corrupção e trazer integridade ao processo político. Ora et labora! Ore e trabalhe para que isso aconteça.

Entre suas leituras recentes, você vê algum autor a quem você acha que deveríamos prestar atenção especial agora?

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Eu gosto muito de Por que o Liberalismo Fracassou, de Patrick Deneen, e me refiro a ele na segunda edição do meu livro. Também destaco Ryszard Legutko, de The Demon in Democracy: Totalitarian Temptations in Free Societies (“O Demônio na Democracia: Tentações Totalitárias em Sociedades Livres”), e Carl R. Trueman, de The Rise and Triumph of the Modern Self (“Ascensão e Triunfo do Eu Moderno”). O livro de Trueman saiu depois que minha segunda edição foi publicada em inglês, então eu não mencionei isso, mas acredito que é um livro importante que nos ajuda a entender o que você chamou de Revolução Afetiva. Gostaria de pedir aos leitores que também vejam a bibliografia atualizada no meu livro em busca de mais recursos.