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Entre os dias 23 e 25 de março ocorreu o Primeiro Simpósio Brasileiro de Liberdade Religiosa: Fundamento para Convivência, Justiça e Paz, no Rio de Janeiro. Organizado pelo Centro Brasileiro de Direito e Religião (Cedire) da Universidade Federal de Uberlândia em parceria com o Centro Internacional de Estudos de Direito e Religião Reuben J. Clark, da BYU, o evento se conta entre os mais importantes do campo realizados no Brasil.
Contando com participantes de vários países (como Chile, Uruguai, Itália, Portugal, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos e Brasil), diversos movimentos religiosos (como a Igreja Católica, sinagogas brasileiras, além de espíritas, religiões de matriz africana, mórmons, adventistas, islâmicos e evangélicos) e organizações representativas, como a Anajure, o IBDR, o Conic e o Conib, o evento foi um passo singular para a construção de pontes e a busca de uma linguagem comum para a promoção da liberdade de religião ou crença no Brasil.
Estive no evento como painelista, e minha perspectiva particular – mas compartilhada por muitos no evento – é a de que o foco apropriado para semelhantes iniciativas, no momento atual, não é tanto o diálogo ecumênico ou a promoção da “diversidade” religiosa per se (o que entraria no mérito da teologia interna a cada religião e da agenda multiculturalista), mas o reconhecimento e a proteção de liberdades fundamentais e a educação sobre a extensão e o sentido das liberdades de crença, consciência, expressão religiosa e culto. Essa ideia me parece implícita no título do simpósio: a liberdade religiosa é fundamental e estruturante para a construção de outros objetivos como a convivência, a justiça e a paz.
“O que se observa é a centralização do discurso no tema da liberdade de religião ou crença, no qual há (ou deve haver) espaço para todas as pessoas, grupos e comunidades interessadas, ainda que a esse debate sejam conectados temas como laicidade estatal, diálogo inter-religioso, colaboração inter-religiosa e ecumenismo.”
Rodrigo Vitorino Souza Alves, pesquisador-líder do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião e professor de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
Convidamos Rodrigo Vitorino Souza Alves, pesquisador-líder do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião e professor de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, para esclarecer a perspectiva geral e as intenções desse simpósio histórico.
O Brasil tem visto, nos últimos anos, uma série de iniciativas voltadas ao tema da liberdade religiosa, como a Anajure, o IBDR e o próprio Cedire, entre outras, e tem-se a impressão de um deslocamento em relação a discursos mais antigos, voltados para o ecumenismo religioso e para a laicidade estatal. Essas impressões têm algum fundamento?
No cenário brasileiro contemporâneo, a liberdade religiosa tem alcançado diferentes espaços enquanto objeto de discussão e de promoção. Organizações da sociedade civil, órgãos governamentais, espaços colegiados, comunidades religiosas, entre outros, vêm se dedicando ao tema, seja como foco principal de sua atividade (com algum recorte específico), ou como um tema relevante para sua atuação ou seus participantes.
Nota-se, sobretudo na última década, a institucionalização de variadas ações, a exemplo de entidades associativas como Anajure, IBDR, Idafro, Anaji, Atea e outras, orientadas por alguma confessionalidade religiosa ou filosófica, e aquelas que não ostentam orientação particular, a exemplo da ABLIRC e do Fonaper. Além dessa categoria, comissões e comitês de participação social têm sido estabelecidos pelo poder público em diferentes entes da Federação por todo o país, voltando-se para temas como diversidade, liberdade e intolerância religiosa, sobretudo a partir do Poder Executivo, embora no Legislativo também haja tentativas de fomentar perspectivas mais abrangentes sobre o tema, por meio de frentes parlamentares de liberdade religiosa não confessionais, a exemplo do Congresso Nacional e da Assembleia Legislativa de São Paulo, com seus respectivos comitês da sociedade civil. No meio jurídico, são as comissões de Direito e Liberdade Religiosa das seções e subseções da Ordem dos Advogados do Brasil que se ocupam de modo dedicado à temática, desde a criação da primeira comissão na OAB São Paulo; recentemente, em março de 2022, o Conselho Federal da OAB instituiu sua própria Comissão Nacional de Liberdade Religiosa.
No contexto acadêmico, o Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (Cedire), sediado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, completa dez anos de existência. Enquanto grupo de pesquisa jurídica certificado por uma universidade pública, o Cedire tem encorajado o estudo do Direito e Religião e fomentado a colaboração entre estudantes, pesquisadores, programas de pós-graduação e instituições de ensino superior de todo o país.
Embora houvesse outros grupos e iniciativas relacionados com o tema, especialmente a partir de outras áreas do conhecimento e com foco em temas como a laicidade do Estado e o ensino religioso, dos quais se destaca o Observatório da Laicidade do Estado, o Cedire é um grupo pioneiro e que busca promover a discussão de vários temas no campo do Direito e Religião com seriedade e rigor científico (sendo que muitos dos seus resultados são apresentados durante nosso evento anual, o Encontro de Pesquisa sobre Direito e Religião, que irá para sua oitava edição), ao mesmo tempo que desenvolve iniciativas voltadas para a transformação social, por meio de suas ações e projetos de ensino, extensão e assessoria jurídica.
Em todos esses casos, o que se observa é, de fato, a centralização do discurso no tema da liberdade de religião ou crença, no qual há (ou deve haver) espaço para todas as pessoas, grupos e comunidades interessadas, ainda que a esse debate sejam conectados temas como laicidade estatal, diálogo inter-religioso, colaboração inter-religiosa e ecumenismo.
O tema do simpósio foi “Liberdade Religiosa: fundamento para convivência, justiça e paz”. O que se quis comunicar com essa formulação? A liberdade religiosa tem um lugar especial ou distinto na busca da paz e da justiça?
Neste ano, o Centro Internacional de Estudos sobre Direito e Religião (ICLRS), sediado na Universidade Brigham Young, nos Estados Unidos, realizou o Simpósio Brasileiro sobre Liberdade Religiosa. Este evento é tradicionalmente realizado nos EUA, e desta vez houve o interesse por parte da organização de realizá-lo no Brasil, em parceria com o Cedire. O tema central do evento, “Liberdade Religiosa: fundamento para convivência, justiça e paz”, foi pensado em função da relevância da liberdade religiosa para todas as pessoas, sejam estas religiosas ou não.
A liberdade religiosa assegura a todas as pessoas o direito de ter, não ter e mudar de religião, sendo, por isso, um direito de grupos majoritários e minoritários, de pessoas que professam religiões históricas ou que participam de novos movimentos religiosos, de povos tradicionais, enfim, assegura a todas as pessoas que não haja coerção ou imposição de uma religião ou crença sobre elas, ao mesmo tempo que assegura a livre escolha, a proteção e o respeito nessa matéria. Somente quando se assegura a liberdade religiosa de maneira plena é que se pode falar em uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua a própria Constituição Federal brasileira.
“A liberdade religiosa assegura a todas as pessoas o direito de ter, não ter e mudar de religião, sendo, por isso, um direito de grupos majoritários e minoritários.”
Rodrigo Vitorino Souza Alves
E de que modo o Cedire e a Brigham Young University convergem aqui?
O Cedire, com atuação sobretudo nacional, e o Centro Internacional de Estudos sobre Direito e Religião da BYU, com atuação global, convergem em suas finalidades existenciais: a promoção da pesquisa científica no campo do Direito e Religião, ao lado da promoção do direito humano e fundamental à liberdade religiosa para todas as pessoas, especialmente por meio de eventos, ações educativas, consultorias, assessorias e elaboração de conteúdos para capacitação.
Vimos que no simpósio houve uma boa representação de igrejas, religiões, lideranças políticas e organizações jurídicas de defesa da liberdade religiosa. Como você vê essa iniciativa entre outras similares, e o que o Cedire tem em mente com a inauguração desses eventos?
O simpósio teve essa característica particular, de representatividade. Buscou-se, na medida do possível, incluir variados segmentos religiosos, sociais e governamentais na participação, embora tenham sido prestigiados na condição de painelistas representantes não governamentais, pela proposta deste primeiro evento. A ideia é que possam ser realizados outros simpósios nesta série de eventos colaborativos entre ICLRS e Cedire, além dos eventos, capacitações e outras atividades que têm sido realizados pelo Cedire no Brasil nesta última década.
Em termos de espectro temático houve bastante amplitude também – temas como liberdade religiosa e mídia, diálogo inter-religioso, promoção de reconciliação, pluralidade, profissão jurídica, liberdade religiosa e trabalho –, mas devo observar algumas ausências. Uma delas foi mencionada em uma das mesas: a presença de educadores e de uma conexão com a educação escolar. De fato, há iniciativas educacionais sobre literacia religiosa e pluralismo, mas desconheço projetos interessantes para ensinar explicitamente sobre direitos e liberdade religiosa. Você vê algo no horizonte?
No Cedire, alguns de nossos pesquisadores se dedicaram, em algum momento, ao tema da religião e educação escolar, sobretudo em função dos debates surgidos em torno do ensino religioso nos últimos anos, que culminaram com a permissão do ensino religioso confessional nas escolas públicas pelo Supremo Tribunal Federal. Isso, contudo, no lugar de resolver o problema, coloca novas questões, sobretudo a sua operacionalidade no contexto de uma sociedade religiosamente plural como a brasileira. Por essa razão, temos amadurecido internamente um projeto voltado para a capacitação de educadores em matérias relacionadas à liberdade religiosa e à separação entre Estado e religião, fundamentais para que haja respeito à pluralidade religiosa no contexto escolar.
Temos esse assunto “quente” no momento, dos direitos das famílias de dar a seus filhos a educação religiosa e moral de sua preferência. Parece-me um assunto premente, mas que não apareceu no simpósio.
Pelo que tive notícias, foi um tema mencionado em conversas na sequência dos painéis de discussão – tema, de fato, quente e muito interessante. Aos painelistas foi dada ampla liberdade para escolha das abordagens dentro dos temas de cada painel e não houve essa escolha desse tema em específico por qualquer painelista.
“A objeção de consciência é um direito fundamental, previsto explicitamente na Constituição Brasileira, com diferentes possibilidades de aplicação, sendo a este tema também associada a discussão da acomodação razoável.”
Rodrigo Vitorino Souza Alves
Outro tema que me parece crucial é o de liberdade religiosa e saúde, e particularmente da saúde mental. Meu amigo Alexander Moreira-Almeida, psiquiatra e professor na UFJF, tem escrito extensivamente a respeito da evidência científica quanto ao valor terapêutico da religião, e a necessidade de maior abertura para a fé. Ao mesmo tempo, o avanço de ideais laicistas no campo da saúde tem causado certa tensão com profissionais e instituições que integram a expressão religiosa com o cuidado da saúde. Como você vê esse embate? O Cedire tem planos para descascar esse abacaxi?
Não tivemos ainda essa discussão de maneira estruturada no Cedire. Todavia, temos debatido outras questões que podem se relacionar com esse tema, na interface entre saúde, direito e religião, incluindo-se o respeito pela liberdade religiosa no contexto dos estabelecimentos e saúde, com aplicações para as instituições, os profissionais e os pacientes. Em breve, publicaremos um material orientativo para estabelecimentos de saúde nessa matéria.
Estive na audiência de uma das mesas, sobre liberdade religiosa no local de trabalho. Durante a sessão de perguntas levantei a questão da objeção de consciência no trabalho, que me parece crítica no momento atual, tanto para profissionais da saúde que, por exemplo, se recusam a realizar certos procedimentos (como o aborto) quanto diante do fenômeno novo da exigência, em muitas empresas, de envolvimento dos funcionários em ações afirmativas da cultura LGBTQIA+. Mas nem todos colocam grandes expectativas no conceito de “objeção de consciência”. Alguma opinião a respeito?
Embora estes sejam assuntos bastante polêmicos dos pontos de vista moral, ético, jurídico e social, a objeção de consciência é um direito fundamental, previsto explicitamente na Constituição Brasileira, com diferentes possibilidades de aplicação, sendo a este tema também associada a discussão da acomodação razoável. É matéria de grande importância em uma sociedade democrática e plural, e que suscita debates em função da tensão que se coloca, quando de sua realização, entre as convicções religiosas e filosóficas de alguém com as normas que se impõem a todo um grupo, a exemplo da obrigatoriedade do serviço militar para jovens do sexo masculino, das normas trabalhistas para todos os trabalhadores e das políticas internas de uma empresa para seus empregados.
No setor público, o tema foi enfrentado no Brasil, em que o STF decidiu favoravelmente em relação à possibilidade de realização de ajustes e acomodações para atender, ao mesmo tempo, as convicções religiosas de uma pessoa e as normas gerais, sejam estas relacionadas aos horários e dias de trabalho, ou à realização de concursos públicos.
Internacionalmente, recomendações de órgãos internacionais de direitos humanos são no sentido de que todos os Estados devem assegurar às pessoas em seus respectivos territórios a objeção de consciência. A partir dessas considerações é que os debates propostos devem ser enquadrados.
Estive também como painelista na mesa sobre “Comunidades religiosas, paz e reconciliação”. Muito proveitosa, por sinal, especialmente com o belo testemunho do rabino Guershon Kwasniewski sobre o diálogo judaico-católico em Porto Alegre. Mas notei, nessa e em outras mesas, um discurso crítico à noção de “tolerância religiosa”, que deveria ser substituída por “respeito”. Confesso meu ceticismo com esse alegado melhoramento. Não perderíamos algo essencial abandonando o conceito de “tolerância”?
Há diferentes sentidos utilizados para o termo “tolerância”. Rainer Forst, um dos maiores filósofos políticos contemporâneos, ganhador do Prêmio Gottfried Wilhelm Leibniz, apresenta-nos quatro sentidos fundamentais para a tolerância: tolerância como permissão, coexistência, respeito e estima. Nesse sentido, para discutir ou criticar tolerância, é preciso primeiro compreender o que com ela se busca expressar: a permissão concedida por alguém que detém o poder superior, a decisão estratégica de não atacar os outros para assegurar sua própria existência, o respeito pela autonomia e dignidade alheias, ou a apreciação ou admiração pela diferença.
Em minha perspectiva, a tolerância é um termo que pode ser usado sobretudo para afirmar o modo de relação entre particulares que têm visões de mundo ou opiniões diferentes, mas que devem abster-se de buscar sua imposição aos demais em respeito por sua dignidade e autonomia pessoal. Tolerância como permissão é pouco, tolerância como coexistência é frágil, tolerância como estima é excessiva: tolerância como respeito deve ser o paradigma. Respeito não porque me vejo em condição de superioridade para exercer benevolência, ou porque tenho interesses e razões estratégicas para tanto, ou porque admiro ou concordo com a opinião ou crença do outro. Respeito porque valorizo o outro como um ser humano dotado de dignidade, que merece ser tratado com igualdade e ter a sua liberdade garantida, o que o faz capaz de tomar decisões com autonomia e ser responsável por elas, inclusive em matéria religiosa.
Entendo que um termo como tolerância tem o seu valor e importância, uma vez que, por meio dele, afirma-se a possibilidade de diferenças radicais em um ambiente de respeito e liberdade.
“Tolerância como permissão é pouco, tolerância como coexistência é frágil, tolerância como estima é excessiva: tolerância como respeito deve ser o paradigma.”
Rodrigo Vitorino Souza Alves
Entre os documentos entregues aos participantes do simpósio esteve uma versão impressa da Declaração de Punta del Este sobre a Dignidade Humana, patrocinada pela BYU Law. Você é um dos signatários originais dessa declaração. Qual é a importância desse documento e de que forma ele pode reforçar a promoção da liberdade religiosa no Brasil?
Esse documento poderá, certamente, contribuir para o avanço das discussões sobre o tema da dignidade humana em diferentes lugares. Não se trata de uma declaração com conceitos muito fechados sobre o tema, mas sim que busca apresentar caminhos e possibilidades de sentido e aplicação da dignidade humana como um princípio para a proteção dos direitos humanos de todas as pessoas, em todos os lugares. São dez tópicos que abordam desde questões mais fundamentais até a necessidade do emprego de esforços colaborativos para combater as mais graves violações da dignidade humana. A tradução do documento foi feita pelo Núcleo de Traduções do Cedire e está disponível em sua versão digital, gratuitamente.
A partir da experiência acadêmica e dialógica que você acumulou, qual seria sua perspectiva para uma política nacional de promoção da liberdade religiosa? Se você pudesse contribuir como uma estratégia sistêmica, qual seria a sua abordagem, em linhas gerais?
Esta é uma questão complexa, considerando as dimensões continentais do Brasil e a sua diversidade regional. No entanto, essa política, caso seja bem construída, pode contribuir para a efetivação da liberdade de religião ou crença em todo o país.
“Deve-se buscar proteger, promover e respeitar a liberdade de todas as pessoas, sem que essa atuação seja orientada por vieses religiosos, antirreligiosos ou político-partidários.”
Rodrigo Vitorino Souza Alves
Entendo que se deve buscar subsídios, não apenas nos princípios e regras gerais estabelecidos em instrumentos normativos – os quais devem ser o ponto de partida –, mas também em experiências de sucesso e boas práticas desenvolvidas nacional e internacionalmente que promovam a liberdade religiosa.
De maneira fundamental, deve-se buscar proteger, promover e respeitar a liberdade de todas as pessoas, sem que essa atuação seja orientada por vieses religiosos, antirreligiosos ou político-partidários. Além disso, entendo que a sua construção deve considerar perspectivas vindas das próprias comunidades e demais interessados, sendo sensível às questões religiosas, e considerar o potencial das comunidades religiosas e das organizações da sociedade civil para contribuírem, em diálogo e colaboração com o poder público, para a construção e manutenção de uma sociedade pacífica, justa e solidária.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos