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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

A guerra dos deuses (brasileiros): Estado, Igreja e Ciência em tempos de pandemia

Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ajuda Jair Bolsonaro a passar álcool em gel.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o presidente da República, Jair Bolsonaro. (Foto: Carolina Antunes/Presidência da República)

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Na abertura de suas Memórias da Segunda Guerra Mundial (1959), Sir Winston Churchill relata a crise espiritual e a sequência de erros que levaram à ascensão de Hitler. Além de ressaltar o papel do ressentimento – um sofrimento moral que precisa receber muito mais atenção na interpretação da política contemporânea –, o estadista destaca a crise de autoridade pela qual a Alemanha passou durante o entreguerras. Sendo conservador, Churchill concordava com os que defendiam o estabelecimento de uma monarquia constitucional alemã como único caminho viável para unificar o espírito nacional sem mergulhar o país em uma ideologia revolucionária e totalitária. Mas, apesar dos esforços do primeiro-ministro Bruning, líder do Centro Católico, para convencer Hindenburg e os aliados, esse projeto foi derrotado, criando um vácuo de poder que permitiu a dispensação hitleriana.

Crises de autoridade são sempre, de um modo ou de outro, crises espirituais. A crise do lulopetismo criou um vácuo histórico, e a Peste é por si só uma familiar catalisadora de crises, uma aceleradora de processos históricos. Coisas velhas, e até mesmo algumas coisas saudáveis, morrem numa peste, e isso dá lugar a novas forças, algumas delas sãs e outras, demoníacas. É evidente que o demônico, no sentido tillichiano de força de ruptura e de anomia, está agora se movendo – esperanças utópicas e ódios imemoriais podem encontrar oportunidades.

Foi esse o tema de um oportuno artigo por Jamie Martin na revista on-line Quillete ontem: Will Covid-19 Mark the End of European Liberalism?. Martin observa corretamente que às pandemias sucederam-se, historicamente, regimes autoritários, e que isso teria relação com mecanismos psicológicos de defesa e repressão da “abertura à experiência” característica do pathos liberal. A despeito de seu otimismo quanto ao liberalismo político, do qual não compartilho – tendo a pensar, como Churchill, que a utopia democrática liberal não tem anticorpos contra os radicais –, o artigo de Martin é um alerta importante.

Crises de autoridade são sempre, de um modo ou de outro, crises espirituais

A Covid-19 fez transparecer a enormidade da crise de autoridade na qual a sociedade moderna e o próprio Brasil se encontram. E quero dar destaque especial, aqui, aos conflitos entre três campos de poder: Estado, Ciência e Igreja – omitindo a imprensa, por ora.

Dúvidas sobre a Ciência

Bastante nítida foi essa desordem generalizada. Em primeiro lugar, como pude notar enquanto ainda no interior do governo, entre o projeto político e as percepções de especialistas e técnicos da área de saúde, naturalmente inclinados a reconhecer as autoridades científicas pertinentes, sobre o perigo representado pelo novo coronavírus: quem questionaria um consenso crescente envolvendo o London Imperial College e o time de resposta à Covid-19, tendo entre eles o epidemiologista Neil Ferguson, o NIH de Francis Collins, a OMS e diversas autoridades em infectologia de projeção global?

Assim que essa informação me alcançou na terça-feira, 17 de março, e que eu soube que fora amplamente disseminada nos altos escalões do governo, chamou-me a atenção o fato de que narrativas negacionistas que já navegavam na internet a pleno vapor, e com apoio do núcleo ideológico, seguiram de vento em popa, para a consternação de quadros importantes da alta administração.

Sob o impacto das projeções do Report 9: Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce Covid-19 mortality and healthcare demand (“Relatório 9: Impacto de intervenções não farmacêuticas para reduzir a mortalidade de demanda de saúde da Covid-19”) publicado pela equipe de resposta à Covid-19 do Imperial College na segunda-feira, 16 de março, segundo as quais poderia haver até 550 mil fatalidades no Reino Unido, e entre 1,1 milhão e 1,2 milhão de mortes nos EUA, países importantes mudaram de estratégia. O próprio Ministério da Saúde de Luiz Henrique Mandetta adotou uma atitude bastante rigorosa na coletiva do dia 19, projetando um colapso do sistema de saúde brasileiro por volta do fim de abril. O Report 9 e a fala de Mandetta motivaram a live de Átila Iamarino no dia 20, oferecendo projeções de 1 milhão a 2 milhões de mortos no Brasil caso medidas de supressão (lockdown) não fossem tomadas.

A ciência foi desprezada quando não servia à narrativa, e depois invocada quando deu pequenos sinais de que poderia servi-la, com a tese da quarentena seletiva ou vertical

É verdade que posteriormente emergiram notas críticas de cientistas importantes, como a do israelense Dan Yamin no Haaretz, em 21 de março, e o paper do Imperial foi criticado por mentes perspicazes em artigos de opinião, como o de David L. Katz intitulado “É a nossa luta contra o coronavírus pior do que a doença?”, no New York Times do dia 20. No entanto, tais críticas não gozavam e ainda não gozam da devida validação científica, que precisa vir por canais formais em veículos de informação científica.

Mas antes mesmo de tais críticas emergirem, os criadores de narrativa da extrema-direita já “sabiam” que a OMS, o London Imperial College, o NIH, os infectologistas brasileiros, a imprensa e quem mais fosse estavam mancomunados em uma conspiração apocalíptica para criar pânico e impedir a reeleição do presidente Bolsonaro. E argumentos de toda ordem, mas principalmente com referência à ameaça de um colapso econômico, foram invocados como estratégia de contenção. Essa interpretação conspiratória e cínica atingiu os píncaros quando o falso profeta Olavo de Carvalho negou, em uma live publicada e depois removida do YouTube, a existência de uma pandemia.

Além do desgosto que tal dissonância produziu nos ouvidos de muitos, mostrando até onde o compromisso do núcleo ideológico com a narrativa é capaz de amputar seu juízo moral, revelou-se com clareza cristalina o desprezo pela autoridade da ciência. Esta foi desprezada quando não servia à narrativa, e depois invocada quando deu pequenos sinais de que poderia servi-la, com a tese da quarentena seletiva ou vertical.

A maré anticientífica vem se elevando de modo sustentado já há algum tempo, em movimentos como o criacionismo da Terra jovem, o movimento antivacina, o movimento terraplanista; no governo, a tendência se manifestou nos conflitos com educadores e cientistas, no negacionismo climático e, agora, com risco para a saúde pública, na zombaria contra um estudo científico autoritativo em nome de narrativas conspiratórias. Ora, certamente estudos científicos são falíveis, podendo e devendo ser questionados; mas tal questionamento deve ser também científico. Deve-se respeitar as esferas de soberania.

Leigos, políticos, religiosos, vovós, adolescentes, professores de Literatura e caminhoneiros não têm possibilidade de julgar com isenção e perícia textos científicos. Isso é coisa de profissionais

É como num jogo. A torcida pode gritar, e até mesmo o jogador no banco pode gritar. Mas faz gol quem está no jogo. No caso das ciências naturais e da saúde, não é que opiniões públicas e científicas não contem, mas que a voz formal da ciência tem seus canais próprios de validação. A ciência é soberana em sua própria esfera. Mas a zombaria de leigos, políticos e religiosos, em momento histórico tão singular, revela incompreensão dessa soberania e uma crise de autoridade.

Afinal, leigos, políticos, religiosos, vovós, adolescentes, professores de Literatura e caminhoneiros não têm, de fato, possibilidade de julgar com isenção e perícia textos científicos, tabular e correlacionar dados, hierarquizar a autoridade de publicações, evitar erros de julgamento estatístico etc. Isso é coisa de profissionais. A sociedade funciona, em grande parte, porque confiamos nos trabalhos uns dos outros e de pessoas e comunidades competentes.

No estudo sobre a Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil, publicado em 2019 pelo CGEE sob encomenda do MCTIC, evidenciou-se, para a tristeza da comunidade universitária, que praticamente um terço dos brasileiros não leva a ciência a sério, ou ao menos tanto quanto deveria. Em 2019, por exemplo, 31% dos entrevistados veem a ciência de modo otimista, contra 54% em 2015. É claro que isso é um problema de educação e de comunicação científica; mas não é só isso. Não podemos tratar a população como um sistema de processamento de dados, bastando alimentá-la corretamente. Não; a questão é de persuasão. E a persuasão envolve argumentos morais. É preciso convencê-la de que a ciência é uma coisa boa. Na base da crise de autoridade, há uma crise de confiança.

No entanto, quando dizemos que algo é “bom”, nosso discurso já não é mais científico. Ao menos, não ciência natural. O diálogo sobre o que é bom é de natureza filosófica e religiosa. E, ao entrar na seara dos debates sobre o que é bom e o que é mau, o cientista ou comunicador científico tende a agir, muitas vezes, como o colonizador europeu, que trata as terras indígenas como território vazio. O fato, no entanto, é que o campo dos debates morais se encontra densamente populado, com zonas de cooperação e de exclusão entre diversos grupos.

A sociedade funciona, em grande parte, porque confiamos nos trabalhos uns dos outros e de pessoas e comunidades competentes

Nessa seara, o comunicador científico não deve ser um colonizador, mas um embaixador. Deve construir termos de cooperação e mostrar o ganha-ganha entre ciência, cultura e valores. Não é de se admirar que os dois grandes sistemas de cultura acadêmica – o cientificismo das ciências naturais e o antirrealismo construtivo das ciências humanas, nas palavras do epistemólogo Alvin Plantinga –, ao pôr sob cerco a consciência das pessoas comuns, tenha colhido tal desprezo.

Particularmente, o exercício contínuo de desconstrução das ideias de “verdade” e “objetividade”, e o desprezo pela ideia clássica de virtudes cognitivas como dimensão ética do saber, criaram uma espécie de revolta neossofista. Os atuais criadores de narrativas em mídias sociais são sofistas modernos, e não têm interesse nenhum pela realidade. Mas o ninho da serpente se encontra lá dentro da universidade, no cultivo de ideias relativistas e anticientíficas nos departamentos de ciências humanas. Lá se encontra o nascedouro da pós-verdade.

Rodrigo Coppe Caldeira escreveu, nesta semana, que estaríamos em meio a uma “pandemia do anti-intelectualismo”. Não quero discordar; mas há intelectuais entre os sofistas. Talvez não possamos dizer que sejam verdadeiros intelectuais, sim; o que distingue os verdadeiros dos falsos, no entanto, pode habitar até os simples: uma paixão pela realidade e, por isso, pela verdade – e então, também por isso, uma reverência singela pela ciência.

Ameaças à liberdade religiosa

Também de modo simultâneo às narrativas negacionistas, e vinda de direções políticas completamente diferentes, salta à vista de todos a velha e conhecida mão abusadora do Estado, ameaçando as liberdades civis fundamentais e a liberdade religiosa. O primeiro fato momentoso foi a decisão judicial de 14 de março, em resposta a interpelação do Ministério Público, de proibir missas no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. A essa decisão judicial seguiram-se ameaças em diversos estados e municípios, com câmaras de vereadores e prefeituras tomando atitudes temerárias para suprimir a realização de cultos, sob a justificativa perfeitamente sensata de dispersar grandes aglomerações.

A coisa esquentou com o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, desafiando as autoridades e declarando que suas igrejas não seriam fechadas. O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Sérgio Seabra Varella acabou proibindo, na sexta-feira, dia 20, a realização dos cultos da Vitória em Cristo. No estado de São Paulo foi também concedida liminar em primeira instância proibindo cultos religiosos e estabelecendo punição em caso de descumprimento; mas a malfadada foi logo derrubada, na terça, dia 24, pelo desembargador Geraldo Pinheiro Franco, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. A justificativa foi a de que a liminar invadia competência do Executivo. As escaramuças judiciais se seguem, e outras administrações estaduais e municipais tomaram providências para suprimir cultos, de norte a sul do país.

Embora aparentemente racionais e de acordo com a orientação da saúde pública quanto a grandes aglomerações, essas iniciativas do poder público violam a Constituição Federal de modo flagrante. A Carta Magna veda, em seu artigo 19, caput e I, que a União, os estados, Distrito Federal e municípios tenham o poder de embaraçar o funcionamento de templos. Fechar-lhes o acesso é claro embaraço.

Além disso, tais atos intempestivos introduzem uma séria degradação institucional, com os poderes se antecipando ou se boicotando, e cancelando-se mutuamente em diversos níveis do Executivo.

Salta à vista de todos a velha e conhecida mão abusadora do Estado, ameaçando as liberdades civis fundamentais e a liberdade religiosa

Naturalmente o Estado pode agir de modo mais incisivo, para garantir o seguimento das orientações da OMS no combate à pandemia, mas restrições de liberdades civis fundamentais como o direito de ir e vir, o acesso à informação e a liberdade religiosa constituem exceção grave e que não pode se implementar sem ação do Executivo federal em conjunção harmônica com outros poderes. As condições para tal excepcionalidade estão dadas nos artigos 136 a 139 da Constituição, limitando-se à declaração de estado de defesa ou estado de sítio.

Para alguns essa discussão pode soar mesquinha, mas não é. Não são poucas as situações nas quais a aceitação das cargas da liberdade envolve também a admissão de certo nível de risco social. É por essa razão, por exemplo, que, embora se admita que alguns crimes pudessem ser evitados com medidas duras de vigilância e engenharia social, em um Estado Democrático de Direito não se admite a prevenção a crimes retirando direitos fundamentais.

Pensemos hipoteticamente: ao reconhecer estatisticamente que a maior parte dos crimes em uma cidade é cometida por indivíduos de certo perfil social, econômico, cultural e racial, por exemplo, não se justificará jamais a construção de preconceito contra esse grupo social e menos ainda a repressão preventiva dessas pessoas.

Há condições dentro das quais um direito fundamental pode sofrer restrição, mas elas não são arbitrárias. Como foi muito bem expresso no “Parecer acerca do funcionamento de templos religiosos durante o período de quarentena por conta do Coronavírus (Covid-19)”, publicado pelo Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) e o qual tive o prazer de assinar como membro, essas restrições não podem violar o princípio da legalidade, nem destruir o conteúdo essencial daquela liberdade por um excesso do Estado, e devem se demonstrar adequadas e razoáveis.

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O caso é que dificilmente se demonstrará ser esse o caso para toda e qualquer comunidade religiosa, das grandes, com milhares de membros, até as pequenas, com menos de 100, bem como para as igrejas em municípios do interior. E, mesmo que seja este o caso, ações tão drásticas precisam emanar do Executivo federal.

O leitor impaciente poderia retrucar nesse ponto: “isso é tudo, então? Nada se pode cobrar ou reivindicar das igrejas nesse momento? Seriam todo-poderosas?” Certamente que não, e a resposta também está na Carta Magna. Segundo o artigo 19, a existência de real interesse público como ponto de convergência entre o Estado e as religiões e cultos, a colaboração entre esses dois poderes é permitida, não podendo ser interditada em nome de um putativo “Estado laico”.

Ou seja: o Estado precisa buscar a colaboração das igrejas de forma ativa. Não meramente para obter suportes político-eleitorais, mas para construir um espírito de cooperação e civismo. Por que não adotar tal prática como política de Estado? Buscar ativamente as igrejas para estabelecer linhas de cooperação visando o bem comum, em vez de atuar como se elas não existissem? Isso é difícil de fazer, para alguns agentes públicos, porque tal seria uma admissão tácita de que as igrejas têm uma autoridade. Uma autoridade espiritual e moral, independente do Estado. E isso é mais do que o gestor público laicista consegue suportar.

Liberdade e libertinagem religiosa

As igrejas têm sem campo de ação e liberdade, e ponto final. Têm, sim; e não serei eu quem o negará. No entanto, isso não fecha a questão. A liberdade tem fins, não consistindo apenas em um campo do arbítrio, um espaço da “lei da natureza”. A liberdade empregada para fins irracionais, contrários a seus fins e estrutura, significa a autofagia da liberdade, o seu cancelamento.

É assim que as igrejas cristãs constroem muitas de suas justificativas morais e comportamentais. É assim, por exemplo, que as igrejas afirmam os ideais de castidade e de fidelidade conjugal, destacando que sexo sem compromisso e casual destrói as estruturas da relação de confiança que é necessária para que o sexo se torne veículo agápico, assumindo camadas morais e afetivas superiores acima do mero desejo venal, e possibilitando a estabilidade familiar indispensável para a formação de filhos saudáveis.

Há uma infinidade de lugares onde religiões tradicionais exigem a temperança; mas não seria nenhum exagero dizer que muitos pastores evangélicos se tornaram intemperantes quanto às liberdades religiosas. E falo como pastor evangélico que sou: se a liberdade religiosa é empregada de modo contrário a seus fins, colocando em risco a saúde pública, a saúde dos fiéis, e criando até mesmo um entrave ao reconhecimento e interesse da sociedade como um todo pela preservação da liberdade de culto, não é isso um caso muito particular de libertinagem?

Em minha perspectiva as igrejas precisam agir como cuidadoras das almas e corpos dos seres humanos e de seus fiéis. Por que seria tão difícil suspender temporariamente os cultos regulares das igrejas, investindo em outros meios tão facilmente disponíveis de comunicação e ajuda mútua?

A liberdade empregada para fins irracionais, contrários a seus fins e estrutura, significa a autofagia da liberdade, o seu cancelamento

É verdade que para algumas igrejas, como as mais sacramentalistas, a presença física é crucial. Em nome disso, ninguém menos que R. R. Reno, editor da famosa e influente revista First Things, publicou um tremendamente controverso artigo no dia 20 defendendo a abertura das igrejas (“Questioning the Shutdown” ). Sua justificativa foi ruim, no entanto; a necessidade de encarar a inevitabilidade da morte. Ora, eu concordaria se a pandemia fosse temporalmente infinita. Mas não é.

Sustento que isso é uma questão de pura e simples paciência. Ninguém está propondo violação da liberdade religiosa. O que se pede é paciência e cooperação. Como um pró-vida pode sentir tanta dificuldade para compreender o ponto? Como os crentes na Escritura podem duvidar de que “Há tempo para tudo debaixo do Sol”, como disse o autor sacro?

Em uma entrevista dada ao apresentador Ratinho em seu programa no SBT, no dia 20 de março, o presidente Bolsonaro defendeu as igrejas, alegando que elas seriam “o último refúgio das pessoas”, e que os pastores e padres “saberão conduzir” o povo. Ele não está errado, do ponto de vista formal. O problema é que, moralmente falando, essa não é a atitude correta. O presidente deveria ter dado o devido destaque ao que os pastores e padres deveriam fazer com a sua liberdade: instar seus fiéis a permanecerem em casa por tempo determinado, para suavizar a curva de contaminação.

E exatamente porque muitos líderes religiosos são responsáveis e não libertinos, a decisão do presidente de incluir as igrejas entre os serviços essenciais a terem liberada a sua atividade durante a quarentena, apresentada no decreto presidencial de quinta-feira, 26 de março, foi mal recebida. A CNBB e representantes de diversas religiões dispensaram esse favor presidencial. Várias igrejas manifestaram publicamente o seu compromisso com a saúde pública mantendo a suspensão dos cultos.

A desordem dos poderes

Nosso ponto, em destaque no artigo, é essa desordem dos poderes. Em algumas poucas igrejas houve, sim, expressões de credulidade e até potencial charlatanismo quanto às blindagens espirituais contra a doença, bem como incredulidade no discurso médico-científico e tentativa de manter abertos os cultos a qualquer custo, colocando em risco a população. Deveriam, essas igrejas, postarem-se como polos de informação de qualidade de cooperação com os esforços do Estado, e não como centros de disseminação da ignorância.

Por outro lado, age de forma duplamente absurda o Estado; nos níveis estadual e municipal, esquizofrenicamente ameaçando as liberdades civis fundamentais em diversos setores da administração e minando a liberdade religiosa; no nível federal, desautorizando a atividade dos cientistas de epidemiologia, infectologia e estatística, e combatendo o “pânico” com a maquiagem da gravidade da pandemia.

Finalmente, e voltando ao início, o campo científico entra em conflito com a religião ridicularizando em memes e palavras a existência aparentemente inútil dos líderes religiosos, sempre dependentes do futuro que só a ciência pode lidar. E se esquecem de que a ciência ajuda a sustentar a vida, mas será sempre insignificante ao enfrentarmos a morte de um ente querido ou a nossa própria. Mais do que isso, ao ignorar o papel das igrejas na mobilização de pessoas, o establishment científico assume caráter prepotente e convida ao conflito.

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Essa “guerra de todos contra todos” não é apenas entre indivíduos, mas entre campos de poder histórico e social: os campos científicos, o campo político e os campos religiosos.

Uma parte da dificuldade nasce da incapacidade de cada um desses poderes de reconhecer o outro, de admitir sua própria relatividade e finitude, de imaginar que amplos setores da existência possam operar relativamente alheios às lógicas internas, bens internos e autoridades internas dos outros campos. Esse não reconhecimento tem ligação com anseios tirânicos acolhidos em cada um desses campos, como nos admoesta, de modo genial, o filósofo e matemático cristão Blaise Pascal, desde o século 17:

A tirania consiste em desejar poder, universal e fora de sua própria esfera.
Há diversas companhias de fortes, de belos, de bons, de espíritos piedosos, cada qual reinando em sua casa, não fora.
Mas às vezes, quando se encontram, batem-se tolamente, o forte e o belo, para decidir quem será senhor um do outro, pois sua senhoria é de gêneros diversos. Não se entendem, consistindo seu erro em querer reinar por toda parte.
Ora, nada o pode, nem mesmo a força: esta não faz nada no reino dos sábios...
Tirania. Estes discursos são falsos e tirânicos: “Sou belo, logo devem temer-me; sou forte, portanto devem amar-me. Sou... et cetera.”
A tirania consiste em querer ter por uma via o que só se pode ter por outra. Damo-nos diferentes deveres a diferentes qualidades: dever de amor ao encanto; dever de medo à força; dever de crença ao conhecimento.

Do ponto de vista das “Esferas de Justiça” de Michael Walzer, ou das “Esferas de Soberania” de Abraham Kuyper, tensões entre campos de poder emergem quando um desses campos se omite ou se excede em suas tarefas, oportunizando uma expansão indevida de outros poderes, ou uma supressão de suas atividades internas. E a razão pela qual amplos setores da sociedade possam aceitar sem reclamação ou até aprovar alegremente uma hipertrofia ou uma supressão da autonomia relativa de um campo de poder social é que eles já se encontram espiritualmente empobrecidos e incapazes de reconhecer os bens internos de cada esfera da sociedade.

O pandemônio que a pandemia produziu resulta de uma pobreza espiritual já instalada no Brasil

Sem valorizar a ciência, a democracia e a espiritualidade, será difícil reconhecer o primado de lideranças, instituições e práticas sociais de cada campo social. Será impossível compreender suas musicalidades e suas gramáticas próprias. E, por sua vez, o que nos faz incapazes de reconhecer certos bens e hipervalorizar outros é nada menos que a idolatria dos valores: tomando algo de valor, algo comum e trivial ou algo mesmo belo e importante, e elevando tal valor a um grau de importância que não lhe pertence, mas pertence mesmo a Deus, destruímos o significado espiritual das coisas.

De modo que, no meu entender, o pandemônio que a pandemia produziu resulta de uma pobreza espiritual já instalada no Brasil. A falta de uma doutrina de ordens de poder, de uma teoria de bens compartilhada e, acima de tudo, a falta do reconhecimento do poder que se distingue do poderes terrenos (sejam eles os três poderes da República, o quarto poder, da imprensa, e o próprio poder zero, a igreja) – a proteção divina, invocada pela Assembleia Nacional Constituinte em 1988 –, tornam inevitável a guerra dos deuses.

E o pandemônio em curso nada mais é do que essa guerra dos deuses brasileiros. Guerra nascida de um vácuo espiritual no coração da República. Se passarmos bem pela Peste, ainda teremos de enfrentar esse problema. Sem uma renovação espiritual da nação que envolveria, mais do que uma acentuação da religiosidade, uma retomada do interesse pelo Bem comum, uma conversão à realidade e uma admissão da finitude das coisas diante do Eterno, corremos grave risco de ver tal vácuo drenar a força e o futuro do Brasil.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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