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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Evangélicos: a ascensão do proletariado cultural

(Foto: Pedro Dias/Unsplash)

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Há duas semanas foi publicada uma pesquisa nacional do respeitadíssimo Instituto Atlas sobre o “Impacto da orientação sexual dos candidatos sobre a intenção de voto” e o “Posicionamento político do eleitorado LGBT”. A pesquisa on-line, realizada entre os dias 26 e 29 de julho, investigou a opinião dos brasileiros segundo região, faixa etária, gênero, faixa de renda, religião e orientação sexual, e foi divulgada com exclusividade pelo El País no último dia 11 de agosto.

A investigação mostrou que 60% dos brasileiros aceitariam bem a ideia de um candidato gay à Presidência da República, 24% a rejeitariam e 17% não sabem dizer; e que os evangélicos são o público mais avesso a essa possibilidade: 42% rejeitam a ideia, contra 17% dos católicos, 14% de outras religiões e 7% de agnósticos e ateus. Os que respondem positivamente a essa alternativa são 38% dos evangélicos, 66% dos católicos, 74% dos agnósticos e ateus e 76% de outras religiões.

Seria isso prova de homofobia generalizada em ambientes evangélicos? Meu julgamento é que se trata, sim, em parte, de homofobia; mas que a coisa é muito mais complexa do que isso.

O proletariado cultural

Consideremos outros resultados: entre os que rejeitam um candidato gay, 27% são os menos escolarizados, contra 16% mais escolarizados, e 73% dos mais escolarizados aceitariam tal candidato; na segmentação por faixa de renda, 47% dos que rejeitam um candidato gay ganham menos de R$ 3 mil por mês, e apenas 11% deles ganham mais de R$ 10 mil mensais. Por outro lado, 71% dos que ganham mais de R$ 10 mil votariam em um candidato gay. Aparentemente, a eleição de um candidato gay representa uma elite econômica e cultural, e a sua rejeição reflete o pensamento da classe trabalhadora, mais pobre e menos educada.

Como era de se esperar, a maior parte dos gays apoiaria a ideia (92%), mas apenas 58% dos heterossexuais seguem na mesma pinguela. Uma diferença, na mesma linha, se dá entre homens e mulheres: 69% das mulheres dizem sim, contra 50% dos homens; e 29% dos que rejeitam são homens, contra apenas 19% de mulheres. Tenho uma hipótese sobre essa diferença.

Finalmente, temos a questão regional: nas regiões Sul e Centro-Oeste o apoio à eleição de um candidato gay é mais pronunciado (72% e 65% respectivamente). No meio do caminho temos o Sudeste, com 61% dizendo “sim”, 22% “não”, e 18% não sabem. A rejeição maior se dá no Nordeste (56% “sim”, 27% “não”) e Norte (34% “sim”, 38% “não”). Isso pode refletir a porcentagem relativamente maior de evangélicos e católicos praticantes nessas regiões, mas também o peso dos grandes centros urbanos, variáveis não consideradas na pesquisa. Meu palpite é que as cidades mais cosmopolitas nas regiões mais ricas apresentariam números superiores de aprovação a um candidato gay.

Os evangélicos, juntamente com católicos praticantes, compõem uma espécie de “proletariado cultural”, e que o medo mútuo entre evangélicos e a comunidade LGBTQIA+ não é meramente “homotransfobia” versus “evangelicofobia”

Creio que a pesquisa teria sido muito mais interessante se incluísse outra variável de segmentação: a opinião de negros, pardos e brancos. E isso nos leva a meu palpite final: o público que sente mais mal-estar com a ideia de um candidato gay à Presidência da República é evangélico, mais pobre, menos escolarizado (e, assim, provavelmente pardo ou negro), mais distante dos centros urbanos mais cosmopolitas e, com certeza, distante da elite econômica e cultural nacional.

O uso imediato desses dados no debate político é, como sabemos, para discutir o problema da violência e da discriminação contra pessoas LGBTQIA+, como foi o caso do próprio artigo de Gil Alessi para o El País, que no primeiro parágrafo já anuncia o Brasil como “um dos países onde mais se matam pessoas LGBTQIA+ no mundo”. Ainda na entrevista o CEO da Atlas comenta a importância da educação para “quebrar resistências dentro da sociedade, principalmente com relação à aceitação da diversidade”. A perspectiva da pesquisa e do artigo, nesse sentido é, digamos, “terapêutica”.

Mas eu proponho outra leitura: que elite cultural e econômica é essa, que pretende educar o eleitorado evangélico, mais pobre, menos escolarizado, e menos cosmopolita? E que relações são essas que se desenham entre essas classes? Minha impressão, já há algum tempo, é a de que os evangélicos, juntamente com católicos praticantes, compõem uma espécie de “proletariado cultural”, e que o medo mútuo entre evangélicos e a comunidade LGBTQIA+ não é meramente “homotransfobia” versus “evangelicofobia”.

Mas, para esclarecer o meu ponto, convido o leitor a uma viagem para o Hemisfério Norte.

Como os “Bobos” quebraram a América – e o Brasil?

Apenas dois dias depois da publicação da pesquisa, David Brooks publicou outra de suas peças absolutamente indispensáveis de análise cultural na revista The Atlantic: “Como os ‘Bobos’ quebraram a América” (“How the Bobos Broke America”). Os “Bobos” aqui não têm nada de bobos, naturalmente. Trata-se de um acrônimo para “bourgeois bohemians”, ou a burguesia boêmia, um estrato social com valores progressistas, gostos metropolitanos, e altamente individualista, em oposição aos “bourbours” (“boorish bourgeoisie”), ou a burguesia tosca, a turma nacionalista, politicamente incorreta, mais coletivista e conservadora.

Em 2000, Brooks escreveu o livro Bobos no Paraíso, descrevendo a ascensão da Geração X com seus capitais culturais, criatividade e imaginação moral aberta, de um modo bastante otimista. Ele mesmo se via como parte desse movimento que gerou uma nova elite cultural, ligada a carreiras criativas, ao Tech Money, altamente escolarizada, urbana, liberal na economia, descolada das agendas de sindicatos e de trabalhadores, e progressista nos costumes. Mas, 21 anos depois, Brooks mudou radicalmente de ideia sobre o papel dessa classe. “Os bobos convergiram em uma elite brâmane insular, casando-se apenas entre si, a qual domina a cultura, a mídia, a educação e a tecnologia”.

Adotando para si mesmo a caracterização dessa classe feita por Richard Florida como a “classe criativa” (creative class), Brooks descreve uma verdadeira revolução, com essa classe dominando profissões, áreas nobres nas cidades mais ricas, a produção cultural e o dinheiro, e promovendo uma extensiva transformação política. Onde antes democratas representavam a classe trabalhadora e os republicanos concentravam a classe média, viu-se um giro de 180 graus, com trabalhadores emigrando para o Partido Republicano e o Partido Democrata sendo dominado por representantes da nova elite cultural.

O domínio cultural da classe criativa teria disparado a “rebelião bourbour”, com a burguesia tosca e os trabalhadores sem voz atirando-se no colo de Trump, tão somente por ser ele o representante do novo proletariado cultural. E assim formou-se a aliança entre as oligarquias conservadoras e o proletariado cultural. De uma guerra de classes tradicional, com a esquerda do lado dos trabalhadores e a direita do lado dos ricos, a divisão ideológica rompeu a divisão meramente econômica e invadiu o campo dos valores. Na corrente guerra cultural a classe criativa (pensemos aqui, por exemplo, na academia, produção cultural e big techs) usa os ressentimentos de minorias como a comunidade LGBTQIA+ como armas para subjugar o proletariado cultural e a oligarquia conservadora.

A Internacional W.E.I.R.D.

A nova luta de classes explodiu a partir de 2015 e se espalhou pelo mundo. “Repentinamente, partidos conservadores por todo o Ocidente – os antigos campeões da aristocracia de terras – se pintaram como os guerreiros da classe trabalhadora. E os partidos de esquerda – antes veículos da revolta proletária – foram atacados como prisioneiros de uma elite urbana supereducada.” Vale uma citação mais extensa:

“Viemos a dominar os partidos de esquerda ao redor do mundo que, antes, eram veículos da classe trabalhadora. Empurramos esses partidos ainda mais para a esquerda, em temas culturais (premiando o cosmopolitismo e questões de identidade), enquanto esvaziando ou revertendo posições tradicionalmente democratas sobre comércio e sindicatos. Na medida em que pessoas da classe criativa entram em partidos de esquerda, pessoas da classe trabalhadora tendem a sair. Por volta de 1990, quase um terço dos membros do Partido Trabalhista no Parlamento britânico vinham de contextos de classe trabalhadora; de 2010 a 2015, a proporção não chegava a um em cada 10. Em 2016, Hillary Clinton venceu os 50 condados mais educados da América por uma média de 26 pontos – ao mesmo tempo em que perdia os 50 condados menos educados por uma média de 31 pontos.”

Essa dimensão política da nova guerra de classes é um fato evidente, embora objeto de negação por analistas políticos. Brooks cita o cientista político Bo Rothstein: “A aliança de mais de 150 anos entre a classe trabalhadora industrial e o que poderia ser chamado de esquerda intelectual cultural chegou ao fim”. Ora, isso foi precisamente o que vimos ocorrer no Brasil, com a migração de votos de trabalhadores e pessoas de baixa renda de Lula para Bolsonaro. Se a incompetência do atual governo pode fazer com que muitos voltem à esquerda, esse retorno não será definitivo enquanto a nova guerra de classes não for pacificada.

Embora os “bobos” sejam poderosos, não são ainda hegemônicos; o embate tornou-se, então, rude, identitarista e reacionário dos dois lados

Brooks lamenta que os “bobos” tenham se tornado uma elite agressiva lutando por domínio cultural, protegendo seus privilégios, silenciando discursos oponentes e manifestando grande intolerância à diversidade ideológica, especialmente nas universidades, mídia, jornalismo e outras instituições de elite. Esse avanço seria a causa principal da reação conservadora e da nova aliança entre o proletariado cultural e a velha elite conservadora. O fato é que, embora os “bobos” sejam poderosos, não são ainda hegemônicos; o embate tornou-se, então, rude, identitarista e reacionário dos dois lados.

Embora Brooks tenha apenas sinalizado isso, chama a minha atenção o fato de que ambos os lados jogam com ressentimentos; a classe criativa usa minorias contra as velhas elites conservadoras, e as elites usam o proletariado cultural e os trabalhadores contra a classe criativa.

Não é preciso muito esforço para observar os paralelos entre a realidade dos EUA e no Brasil. É claro que a nova guerra de classes reflete processos transnacionais – daí as semelhanças da “nova direita” em todo o mundo – mesmo que existam particularidades locais. Seria o caso, por exemplo, de examinar como se formou a “classe criativa” local. Parece-me evidente, por exemplo, que há extensa convergência entre as ideias de emancipação e de “revolução brasileira” na academia, o identitarismo importado pelos partidos de esquerda brasileiros nos últimos vinte e poucos anos, e os valores do “capitalismo emocional”, que se espraiam pela produção cultural, pelos grandes grupos de mídia e pelo marketing. A “classe criativa” é uma grande internacional.

Quem educará os “educadores”?

Meus leitores habituais certamente notarão a convergência entre a modelagem da psicologia moral W.E.I.R.D. proposta por Jonathan Haidt em A Mente Moralista e os valores da “classe criativa”. A moralidade W.E.I.R.D., libertária, individualista e sentimental, parece ser o tipo de imaginação moral dominante na classe criativa. Isso ajudaria a entender por que os “bobos” não conseguem se comunicar com o proletariado cultural – e vice-versa.

Enfim, para ajustar o foco e ganhar uma imagem de precisão sobre os atores na guerra cultural brasileira, seria preciso investigar a imaginação moral desses grupos hipotéticos. Mas, se minhas impressões estiverem na direção certa, e os evangélicos forem realmente o núcleo ou um dos grupos representantes do proletariado cultural, seu conflito não seria tanto com gays, mas com a elite cultural que os usa como arma simbólica.

Toda a ênfase do movimento de Direitos Humanos no mundo corporativo tem sido no reconhecimento da diversidade afetivo-sexual, mas quase nada se fala sobre a liberdade religiosa e a escusa de consciência

Uma série de conversas urgentes precisa acontecer. Consideremos, por exemplo, o crescente movimento de Direitos Humanos no mundo corporativo, do que tivemos muitos exemplos em junho. Toda a ênfase desse movimento tem sido no reconhecimento da diversidade afetivo-sexual, mas quase nada se fala sobre a liberdade religiosa e a escusa de consciência. É quase certo que isso criará problemas para funcionários evangélicos em grandes empresas, que por motivo de consciência não podem aprovar os valores da cultura LGBTQIA+. Não me refiro aqui a gente homofóbica, que poderia perseguir, demitir ou prejudicar a carreira de pessoas homoafetivas ou transgênero, mas gente capaz de tolerar e praticar a amizade com essas pessoas, mas que não seria capaz de promover os valores dessa cultura. Essas pessoas religiosas terão problemas em suas carreiras. E, se não for encontrada uma forma de mediação entre o princípio antidiscriminatório e a liberdade religiosa, isso deve engrossar ainda mais a nova luta de classes.

Certamente é necessário educar evangélicos para reduzir o preconceito, cultivar o pluralismo e melhorar a convivência dessas comunidades; mas quem educará os “educadores”?

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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